A. M. Pires Cabral

O DIABO VEIO AO ENTERRO

CASAMENTO E MORTALHA

O tio Zé das Candeias deve ter estado a cismar que raio de sainete encontrarei eu nas suas contas, coisa tão espontânea nele como nos pássaros a voz e que, como a voz nos pássaros, ele não sabe explicar em si nem na verdade tem explicação. Conta contas, pronto; outros fazem cestos de vime ou compõem ossos deslocados, ele conta contas. E a forma como eu lhas aplaudo e festejo, a seu ver fora de toda a proporção, ao mesmo tempo que o lisonjeia deve-lhe causar a sua aquela. Esteve a cismar nisso, como me capacito quando hoje vem sentar-se comigo na adega e se põe com estes rodeios:

– O Menino gosta de oubir cá o belhote... Caem-le no goto as cousas que digo. Se calha, é por serem desparates, e o Menino gosta de mangar por bias disso. Mas olhe que tamém num me enbregonho de falar consoante sei. Nunca 'studei gramática (ele é assim que se dize?), nunca assentei o cu das calças nos bancos da 'scola, que isso nasquéis tempos era luxo de poucos. O que sei, aprendi-o no libro da bida, a falar co'este e aquele, umas bezes com doutores, outras com craboeiros, consoante Deus era serbido. De forma que quem dá o que tem, a mais num é obrigado. O Menino nunca oubiu aquele berso assim:

– Pilriteiro que dás pilritos,
Porque num dás cousa boa?
– Cada qual dá o que tem,
Conforme a sua pessoa.

«Já oubiu? Peis aí tem. Sou pr'aqui um pilriteiro reles, num posso dar senão pilritos. O Menino sabe o que é um pilrito, num sabe? É assim um fruto a modo duma amêixoa braba, azedo c'mò rabo do gato, que a bem d'zer nim os pássaros le metem-no bico. Peis pilritos é o que posso dar. É pouco? Mou santo... Mas a modos que o Menino le encontra graça e ou atão tamém faço gosto de o contentar.

Bom tio Zé das Candeias! É então por gosto, são e estreme, de me contentar que se vem sentar comigo na adega ou faz lugar para mim, quando está no adjunto e eu chego. Gosto de me contentar... A gratidão começa por ser um nozinho mínimo na garganta e breve ma tem entalada com o seu volume, ao mesmo tempo que me faz acudir aos olhos uma pontinha de água, que facilmente dissimulo dos olhos perscrutadores, como de felino, do tio Zé das Candeias.

Para disfarçar a comoção, pergunto-lhe pelo amigo.

– O D'mingos? 'Stá doente, c'uma pontada nos rins. Já de manhã s'andaba a queixar. Agora ficou-se pori na cama. Dá-le muntas bezes.

«Mas o Menino há-de querer uma conta das minhas... E ou que 'steja praí birado, num é, sou maroto? Atão que conta há-de ser? Sei tantas... Quem munto bibeu, munto tem pra contar. O ponto é que as cousas le acudam à lembrança. Uma conta... Ora deixe cá ber...

Mete uma azeitona à boca e negoceia a mastigação, entre o único dente disponível e a gengiva nua, enquanto faz – ou finge fazer, que às vezes gosta destas pequenas imposturas – um esforço de memória.

Por felicidade, passa-nos defronte da porta aberta o pretexto: passa, de cântaro à ilharga, uma raparigaça, à maneira das varinas que lembravam pilastras a Cesário Verde. Saúda-nos brevemente e logo desaparece, caminho do tanque.

– Olhe, passou agora ali a Céu do tio Celestino, que a modos que anda às turras c'os pais por bia de se querer casar contra bontade deles. Por-i-a ber, alembrou-me a história dum que le tchamabam-no Inzaías. Já la contei? Não? Atão num é tarde nim é cedo.

«Dize o pobo que casamento e mortalha no céu se talha, e é bem certo. Senão prò quê, já bai ber. Tanto monta correr c'mo saltar: a gente lá acaba por juntar os trapinhos com quem Deus é serbido. 'Scusam-no tio Celestino e a mulher de guerrear o casamento da rapariga: se 'stiber 'scrito no libro d'bino que há-de ser c'o tal rapaze da Junqueira que ela há-de casar, é ali mesmo que bai bater, mais certo que o tordo na aboiz. Assim 'steja ele 'scrito.

«Peis bou-le atão contar c'mo esse tal Inzaías, que era de Castro Roupal – sabe onde é, uma pobeca pra lá do Santo Ambrósio, cortando à mão 'squerda nas Lagas, a caminho de Binhas -, 'stebe pra casar e num casou, porque num 'staba 'scrito que casasse, e o mais que por bias disso assucedeu.

«O Inzaías era filho de pai incnómico e duma desinf'liz quaisquera, que morreu inda noba, dizem, 'stragada de tanto home conhecer. Habia munto zorro naquele tempo, e ou que o diga, que só soube quem era mou pai quando fui tchamado ò tribunal, num le contei já? Mas de m'nha santa mãe, Deus le fale na ialma, ninguém pode d'zer que tibesse conhecido outro home. Faltou-le Deus co'a fortaleza pra d'zer que não, naquela hora do diabo. Mas ò despeis nunca se oubiu d'zer dela tanto como isto.

Exibe uma parte mínima do dedo mindinho, em abono da honestidade da mãe. E o gesto é termo de comparação equivalente, pela insignificância, ao nada absoluto.

– O mou pai num quis casar co'ela, como era sua obrigação, tendo-a desonrado? Peis bai-te à tua bida, que ou bou à minha. Queitadinha, mourejou munto pra me criar de cara alebantada, Deus a tenha à sua mão direita. Num le faltaba quem-na requestasse, mas aguantou-se sempre firme c'm'uma rocha.

É inevitável, ninguém faz impunemente oitenta e três anos, as vigilâncias afrouxam, as resistências relaxam-se, um homem mesmo que não queira chora às vezes, e aí temos o tio Zé das Candeias de olhinho a reluzir de humedecido, rendido às pungentes lembranças que traz revolvidas na história do Isaías. Mas breve dá um suspiro, que parece funcionar como mata-borrão daquela lágrima intrusa.

– A mãe desse tal Inzaías é que era outra casta de mulher, queitada, tinha o fadário pra cumprir, e ninguém diga desta iauga num buberei. Bolta e mêa alquinaba c'os amigos por esse mundo de Cristo e deixaba o filho sozinho, tão garotinho ainda. Que criação habia de ser a do desinf'liz? Lá foi crecendo ò deus-dará, curtido de fomes e frios, trabalhando de paquete a troca da malga de caldo pra um que le tchamabam-no Belchior, que era um dos mais ricos de Castro e lá tebe dó do pobrezinho. A esse Belchior inda le comprei ou uns freixos que tinha num lameiro e por sinal que num era home de grandes contas; inda marralhemos bem, por bia dos freixos, e inda bi jeitos que tinha de le dar uns murros. Já lá 'stá onde as pague.

«Criado deste jeito, o Inzaías nim tchigou a botar corpo que se bisse, tanto que nim o quijeram na tropa e quando foi às sortes os of'ciais inté se le riram das costelas, que pracia que le qu'riam furar o fole. E atão quanto a bonitezas, 'stemos conbersados.

«Peis mesmo assim 'stebe pra casar, e munto bem casado, fique o Menino sabendo. Num acredita? Peis olhe que num minto tanto c'mo isto, e inda há por aí munto quem tenha oubisto falar do caso. É que o Inzaías, sendo um pelintra e um fracas-chichas c'mo era, tinha uma prenda de grande 'stimação: a graganta. Peis atão? A graganta e o engenho de poeta, e estas duas cousas é que por um pêlo o num fizeram rico. Mas quê? Num 'staba 'scrito...

«Nesse tempo, Castro era – agora dizem que já num é tanto – terra de gente alegre e amiga de folgar. Tristezas num pagam díbidas, quenquera o dize; haija saúde e alegria, d'ziam os de Castro, e com mêa côdea de centeio e uma pinga de café mal coado no butcho, logo sentiam desposição pra armar bailaricos e descantes lá no largo defronte da igreja. Era uma festa pegada, mormente im entrando Maio, ò end'reitar o tempo, assim sobre o fim da tarde. Binha tudo-m'nha-gente prò terreiro, fora os fidalgos, que se deixabam ficar na baranda, a oubir as desgarradas. Às bezes dize que tchigaba a pontos de bir o padre im pessoa a arrebanhar as beatas à má-fila prò mês-de-Maria, que inté elas se pelabam por aquele destraimento. Inda assisti a isto, quando por lá passei a falar nos freixos ò Belchior. Habia um guarda reformado, tchamado Bicente, grande crapinteiro de carros-de-beis, o ponto era qu'rer, que tamém tocaba biolão. Assim c'mo quem num quer a cousa, assentaba-se num banco, ac'modaba o biolão à pança, que num era piquena, e punha-se a puxar bordões, tim-terlão tim-terlão, c'mo se num fosse nada co'ele. O Ramos, que era o taberneiro, cerraba a tasca e binha de lá c'o bandolim. Guitarra num habia, nim fazia míngua. Às duas por três, 'stabam a tocar a par, o bandolim a entoar o fadinho e ò biolão por trás, assim a modo de arremedar: tim-terlim, casou Maria, tim-terlim, com quem seria...

Impagável!

O tio Zé das Candeias leva o copo aos lábios, que se lhe secam apesar das frequentes passagens da língua, ao mesmo tempo que, aos cantos da boca, pequenas massas de espuma branca assomam e se avolumam à medida que vai falando. Percebo que está a rever a cena, tal como a viu nesse longínquo Maio em que a sua estrela de madeireiro o levou até terras de Castro Roupal a negociar os freixos do Belchior.

– Num era p'ciso puxar munto. Adiantaba-se logo um dos do adjunto e botaba um berso. A bantaige ò despeis era outro responder, pegando-le na palabra, e ò despeis outro e outro, consoante a jeiteira de cada qual. Às bezes saíam cousas bonitas. Outras bezes pegabam-se de rijo, que nim regateiras da praça do Bolhão, e inté carbalhadas metiam plo mêo, se p'ciso fosse. Num foram uma nim duas bezes que a fidalga, tchamabam-le a dona Aninhas Pimentel, biúba e munto debota, mandou a criada a poribir asquéis desaforos. Atão calaba-se tudo. Outros tempos, inda se respeitabam-nos fidalgos...

«Por bia desses usos, habia quem tchamasse "cigarras" òs de Castro, nos pobos b'zinhos. Qu'ria-se co'isto d'zer que cantabam munto e trabalhabam pouco. Bô bagar! Os de Castro num qu'riam saber. Cantabam-le forte e fêo, e alguns deixaram fama nestes descantes. Mas, berdade berdadinha, nium c'mò Inzaías lá para esses feitios. Home dum raio! Era criatura pra ajeitar um berso que 'scapou ò diabo, enquanto este 'sfrega um ólho! E atão a boz? Oubem-se cantar agora uns fulanos na telebisão, c'uma bòzinha tão tem-te-num-caias, que parecem mesmo os cães a ladrar à lua. O Inzaías era cantador doutra casta, tinha uma boz que se podia oubir, puxada de dentro, que inté pracia mintira im criatura tão rõezeca.

«Peis foi por bia desta jeiteira que 'steve bai-num-bai pra abezar mulher, como le 'staba a contar ò Menino. E que mulher! Logo a Clarinha do Aires, que era o ai-Jasus do pobo, a quem arrastabam-na iasa, c'mòs pirus, os moços mais bizarros das redondezas, Limãos, Morais, Binhas. Aquilo, quando se bêo a saber im Castro, foi uma 'scândula. E c'mo num habera de ser? A Clarinha, que podia pedir por boca o noibo mais pimpão, namorar-se assim do Inzaías, que era mesmo um jó tchapado, afora a riqueza da graganta, que nisso num tinha sigundo im Castro. Mas quê? Isto de raparigas nobas e esparboadas é assim mesmo: dão mais balor a duas tretas puxadas do peito do que òs bens que um home tem ò luar. Mais tarde trocem-no narize...

«O Inzaías, que num era burro de todo, lá tirou bentos da inclinação da rapariga, que os olhos e os modos dela num mintiam. Assubiu-se-le atão ò peito uma tal paixão, que uma neite, im beze de responder òs bersos dos outros, botou uns munto declarados à Clarinha. Outra cousa num queria ela oubir. Ficou toda intchada e no dia seguinte piscou-le o ólho ò passar, sinal que 'staba por tudo. Atão, alebantado, nessa neite, neite alta, o Inzaías perdeu de todo as 'stribeiras e botou-le semelhante serenata à jinela, sim biola nim bandolim, que deixou toda a gente abismada da desfaçatez. Mas quer saber a milhor? Inda o Inzaías num tinha acabado a cantata, já a mãe da Clarinha, tchamabam-le a senhora Donzília, era má c'màs cobras, le atiraba pela jinela os despejos do casal. Ou seja ceguinho, se minto! O Inzaías ficou c'm'um pito, todo molhado dos pés à cabeça! Aquilo tamém num se fazia a um cristão. Foi caso munto comentado e na neite seguinte, à hora das desgarradas, num le perdoaram e saiu-se um cantador co'esta, de mangação:

Se ou fosse a ti, Inzaías,
Era milhor calar o bico,
Num bá a senhora Donzília
Despejar-te outro penico!

«Co'essa é que o coseram! Nessa neite perdeu o pio.

«Mas agora quer o Menino saber? Co'a paixão que entrou co'ele, o Inzaías pracia outro. Se já era um geadas, mais rõe ficou, amarelo c'mà cera, e num botaba berso que num fosse pra dar entenderes à Clarinha.

«Ela, por sua beze, andaba alceira c'm'uma labandisca, toda delambida e contcha do namoro. Balia-o bem!

«Mas a senhora Donzília! Isso sim, consentia ela! Pracia uma fera, sempre a crecer prà filha, a intcher-le os oubidos:

«- Sua cabra! Tantos rapazões que te andam a tcheirar o rabo, e logo te habias de agradar daquele baldebinos!

«- Que é que bossemecê quer? – tornaba a filha, munto fouta e desenganada. – Fique sabendo que o bem-qu'rer num se compre nim se bende. Bossemecê num casou com quem munto bem quijo? Só quero aquele rapaze e, se num casar co'ele, descanse que nium outro se gozará de mim.

«Mas retiraba-se ligeira, num fosse algum cabaco boar-lhe à cabeça.

«A senhora Donzília num lubaba aquilo à pacência. O Aires, a princípio, ia pela mulher; mas por fim encostou à Clarinha, bá lá agora uma pessoa saber por quê. O mais certo seria temer-se que o Inzaías fizesse a desfeita à rapariga, que lá alebantada era ela, e rompesse no pobo alguma 'scândula. Hoje já ninguém tem medo dessas cousas: mocidade a botar o carro à frente dos beis é o que mais se bê, e quanto mais cedo milhor. Mas naquele tempo, uma cousa dessas inda enbregonhava as barbas dum pai de filhas. De maneiras que o Aires lá teria pensado que era milhor deixar ir a bem aquilo que os pombinhos podiam munto fácil alcançar a mal, e marralhaba co'a mulher.

«– As raparigas, im tchigando à idade, querem-se casadas. A nossa já bai nos binte e um, bô é que se arrume. Quer-se c'o Inzaías? Lá se abenham.

«– Peis é, tu bem falas. E do que comem, quando se le acabar o que le deixarmos?

«– Que comam da abebra dela e do pupino dele...

«Pra cima de seis meses, andaram asquelas criaturas à porra e à maça, e foram-numas teimas naquela casa por bia do namoro, que só bisto. À senhora Donzília, por bia dos nerbos, davam-le bolta e mêa umas bascas de pôr os cabelos im pé. Atiraba-se ò tchão, 'spumaba da boca, uma cousa medonha. O Aires só d'zia:

«– Ai dão-te bascas? Peis atão a mim dão-me rebascas!

«E dize que le acalmou muntas bezes as bascas, manteando-le o lombo com a tenaze e o badil e aquilo que calhaba. Aquilo dize que era um pratinho.

«A senhora Donzília encarniçou-se de tal maneira contra o Inzaías, que num podia passar por ele na rua que num rompesse logo a tchamar-le nomes e a rogar-le pragas:

«– Azeiteiro! Malino! Deixa-lá te naça semilhante fruntcho no cu tamanho c'm'um nabo, que purgue c'mà fonte da Bolta e te lebe pràs parafundas do inferno, 'sc'mungado!

«O Inzaías ria-se, munto sonso, e deixaba correr o marfim.

O tio Zé das Candeias já fez jus a outro copo. Com a língua agilíssima de batráquio, remove a espuma acumulada aos cantos da boca. Depois estende-me o copo para que eu, que tenho a caneca mais à mão, lho encha de novo. Bebe pusadamente e, no fim, dá um estalido com a língua. A pausa, maior do que habitualmente, destina-se a dar-me a entender que terminou um capítulo da conta e outro vai começar.

– Seja c'mo for, tchigou a cousa a pontos que o casamento 'staba concertado. De nada baleu à senhora Donzília ateimar. O Aires era munto senhor do seu narize e, im se birando pra um lado, num habia quem-no fizesse birar prò outro, nim à mão de Deus-padre. Teimoso c'm'um burro!

«O Inzaías tinha tudo apalabrado, padre e tudo, e inté tinha mandado fazer im Macedo, a um alfaiate que lá habia, o Celeirós, um fato de fazenda prà boda. É berdade! Ele, que nunca tinha bestido na bida outra cousa senão cotim e serrobeco, foi-se ò Maldonado e mandou rasgar um corte da milhor fazenda que biu. O senhor Antoninho Dezassete, ò bê-lo tão pelintra, inté dubidou que ele tibesse com que pagar e quis-le ber a cor ò dinheiro, antes de le passar a fazenda prà mão. Peis pagou, sim senhor, e lá lubou o corte ò Celeirós, que le talhou uma béstia toda catita. Merecia milhor sorte, a béstia, ò que era de bô pano e ò que 'staba de bem feita. Mas cala-te, boca; já lá bamos.

A negacear com o desfecho, o senhor José das Candeias! Maravilho-me uma vez mais desta instintiva arte da fábula, que teria chegado sei lá onde, se tivesse ido à escola, aprendido a ler, feito lastro com uma boa biblioteca. Ou que, pelo contrário e se muito bem calha, teria sido arruinada por essas comodidades.

– Mas nunca oubiu d'zer que o diabo é tendeiro? Quis a pouca sorte do rapaze que o Aires, ò boltar da feira dos binte-nobe d'acabalo na égua, desse um tombo dela abaixo. Pelos modos, a besta 'spantou-se c'uma lebre que se le alebantou òs pés, ali já perto das Lagas, e o Aires num tebe mão nela. Pelo menos, ele foi assim que contou. Mas quem tinha 'stado co'ele na bila, jura que já trazia uma cardina de caixão à coba. Dize que num passou im claro niúma das tabernas da rua da 'Stação, e olhe que num são poucas. No Cambulho, já se le trocabam-nas pernas. Ò tchigar ò Naita, já cantaba a caninha-berde. Fosse c'mo fosse, caíu da égua, e de nada le baleram os caldos de galinha: im menos duma semana apagou-se. Aquilo foi pori mossa nos pordentros. Se tibesse botado sangue, pode ser que 'scapasse. Num botou, foi pior.

«Ó Inzaías, quinquera o dize, praceu-le o caso de mau agouro. Por sinal que ele inté já trazia a pedra no sapato, que a Clarinha num pracia a mesma de há uns tempos pra cá. Porquê? Ora! O Menino sabe c'mo são-nas treboadas de b'rão? Naquela mêa hora tchobe que parece que bai tudo raso; im menos dum credo, 'stá tudo enxuto c'mo se nada tibesse sido. Peis c'os amores da rapariga assucederia pori outro tanto: ligeiros bieram, ligeiros se foram. Segue-se que ò Inzaías já a cousa tinha começado a tcheirar mal, e mais mal le tcheirou no mortório. Tinha-se tchigado, munto ronceiro, com medo que a senhora Donzília o impontasse, e que bê ele? A descarada da Clarinha a derreter-se toda diante dum primo dela, de Calbelhe, uma aldêa longe c'mò diabo, pra lá de Izeda, que tinha bindo a dar os pêsames. No mortório, senhores! Inda o pai a bem d'zer num tinha arrefecido na urna, já ela fazia olhinhos ò tal, por sinal tão fêo, bisonho e malfeitão que inté le tchamabam de nomeada o 'Spantalho.

«Dali a uma semana, a Clarinha mandou tchamar o Inzaías, que qu'ria falar co'ele. Julga o Menino que le deu algum baque o coração? Qual o quê, mais que sabia ele o que ela le qu'ria. Lá foi. Saiu-le a senhora Donzília, toda embiocada de preto, e foi direita ò assunto:

«– Bossemecê diga lá quanto quer e tira o sentido da m'nha filha.

«– Quanto quero?! Essa num 'stá má! Quanto hei-de qu'rer? Casaba co'ela, sendo de bontade. Num é, pacência!

«Apareceu atão a Clarinha e atirou, munto 'strela-e-beta, c'mo só ela:

«- Gostei de ti, Inzaías, num to nego, e 'staba disposta a casar contigo, com penas de me enforcar se me tolhessem-na deboção. Agora já num gosto, acabou-se! Mou santo... Prècura outra, que outro prècurarei. O casar e ò calçar é ò gosto.

«- M'nha santa – disse o Inzaías, assim c'mo quem dize: que se le há-de fazer? O que num tem romédio, romediado 'stá.

«Peis decerto. Que adiantaba porem-se a despicar um c'o outro, e tchigarem às do cabo? Foi-se mas é embora, de rabo entre as pernas, c'm'um cão corrido à lapada. Mas lubaba pena, olha que admiração! Tinha 'stado à porta da fertuna e bia ir tudo por auga abaixo. E inda se fosse só a legítima do Aires... O pior era a paixão. A paixão, sim senhor, que toda a gente dize que ele ò despeis feze o que feze deribado à paixão. Mas cala-te, boca, lá te 'stás tu outra beze a adiantar, inda num tchiguemos lá.

«Bote terceiro, Menino!

O tio Zé das Candeias dá esta ordem com o arreganho de quem se municia para uma guerra sem quartel. Obedeço, ainda que admirado da sede inusitada, e ele bebe até ao fundo.

– Peis, c'mo ou dizia ò Menino, isto de raparigas é assim mesmo. Inda num tinha passado um mês, já se constaba no pobo que a Clarinha ia casar c'o 'Spantalho. A senhora Donzília num le cabia um tchítcharo no cu, de contente. O 'Spantalho bolta e mêa 'staba im Castro a pôr e a despor, como bilão im casa de sou sogro. E a Clarinha andaba outra beze toda alceira. Casabam prò São Mateus, pra dar tempo de alebiar o luto.

«O Inzaías é que, queitado, perdeu de beze o pio. Não, que desgosto assim! Nunca mais ninguém le oubiu uma cantiga. Sumia-se pelos cantos, inda mais miserable do que dantes. Às bezes, quando alguém o rogaba pra um serviço, surribar uma binha ou carrear pedra pra um muro, cousas da laboura, bá, e ganhaba co'isso o sou t'stão, metia-se na taberna do Ramos a entornar copinhos de augardente e a resmonear que se habia de bingar. Mas riam-se-le na cara, que ninguém o tomaba a sério. Tomaba-se ele, e tanto tomaba que se bingou mesmo, e inté com certa laracha, afora o remate que dou ò caso.

«Foi assim atão a bingança do Inzaías.

«Na neite da boda, seriam essas três horas da manhã, bêo ele prà porta dos noibos, se calha inda entretidos nos gostinhos do casar, que admiração!, e pôs-se a fazer um 'spantalho. Assim: crabou uma rodriga no tchão; c'umas braçadas de palha, feze o corpo; uma cabaça pòrqueira a fazer de cabeça, com deis olhos miudinhos e uma bocarra de orelha a orelha, tal e qual c'mò noibo; no lugar das partes, um pupino bem taludo; e, de béstia, a fatiota por 'strear que ò Inzaías tinha madado talhar im Macedo. Aquilo o fato, dize que foi por 'scárnio dele mesmo, Inzaías; o resto, claro 'stá, era por 'scárnio dos noibos. E atão, pregado na lapela do casaco c'um alfinete, um papel co'estes d'zeres por claro:

As Claras são todas putas
E lubadas do carbalho:
À falta dum home a sério,
Agarram-se a um 'spantalho.

«Quem dou por isto, logo ò romper do dia, foi a senhora Donzília, que ia a ac'modar os porcos e as pitas. Rompeu logo ali num 'scarcéu, que parece que tremiam céus e terra. Imagine agora o Menino o rebuliço que se armou e a fúria do 'Spantalho. Tal fúria foi, que saiu logo de casa, armado de fueiro, à cata do Inzaías. Num p'cisou de prècurar munto, porque logo se oubiram gritos que tinha apracido pindurado duma trabe na loije onde o tio Bentura, bô home, le deixaba armar a alcoba por 'smola.

«Foi de paixão que se matou, d'ziam. Seria. Seria tamém de 'star farto da má 'strela, que um home num é de ferro. Queitado do Inzaías! Quem-no biu naquele porparo, antes de a justiça bir alebantar o corpo, dize que 'staba c'um ar tão inocente, afora a língua ò pindurão, que ninguém d'zia ter sido ele o autor da facécia.

«Alembrei-me disto por ber há bocado a Céu do tio Celestino. Anda às turras c'os pais, porque tchora e grita que há-de casar co'esse rapaze da Junqueira, que bem por aí numa carrinha a bender peixes do rio. Ou inté já le disse ò Celestino:

«– Home, num bale a pena tanta guerra. Casamento e mortalha no céu se talha, e ela há-de casar com quem Deus munto bem quiser. Senão prò quê...

«Ele torna-me que não, que há-de casar à bontade dele, ou atão num casa. B'remos, c'mo dize o cego...


O Diabo Veio ao Enterro, 1985 (reprodução autorizada pelo autor)


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