Eugénio de Castro

A Despedida de Eugénio de Castro

Eugénio de Castro e Almeida (1869-1944) nasceu e faleceu em Coimbra. Foi director da revista Arte entre 1895 e 1896, onde colaboraram, entre outros, Verlaine e Mallarmé. É considerado o introdutor do Simbolismo em Portugal. Obras: Cristalizações da Morte (1884), Canções de Abril (1884), Jesus de Nazareth (1885), Per Umbram (1887), Horas Tristes (1888), Oaristos (1890), Horas (1891), Sylva (1894), Interlúnio (1894), Belkiss (1894), Tirésias (1895), Sagramor (1895), Salomé e Outros Poemas (1896), A Nereide de Harlém (1896), O Rei Galaor (1897), Saudades do Céu (1899), Constança (1900), Depois da Ceifa (1901), A Sombra do Quadrante (1906), O Anel de Polícrates (1907), A Fonte do Sátiro (1908), O Cavaleiro das Mãos Irresistíveis (1916), Camafeus Romanos (1921), tentação de São Macário (1922), Canções desta Negra Vida (1922), Cravos de Papel (1922), A mantilha de Medronhos (1923), A Caixinha das Cem Conchas (1923), Descendo a Encosta (1924), Chamas duma Candeia Velha (1925), Éclogas (1929), Últimos Versos (1938).

Outras páginas sobre Eugénio de Castro:

  • Traduções de autores latinos
  • Eugénio de Castro: Oaristos

    OARISTOS


    PREFACIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO

    (1899)

    (...) Com duas ou três luminosas excepções, a Poesia portuguesa contemporânea assenta sobre algumas dezenas de coçados e esmaiados lugares-comuns.

    Tais são:

    olhos cor do céu, olhos comparados a estrelas, lábios de rosa, cabelos de ouro e de sol, crianças tímidas, tímidas gazelas, brancura de luar e de neve, mãos patrícias, dentes que são fios de pérolas, colos de alabastro e de cisne, pés chineses, rouxinóis medrosos, brisas esfolhando rosas, risos de cristal, cotovias soltando notas também de cristal, luas de marfim, luas de prata, searas ondulantes, melros farçolas assobiando, pombos arrulhadoras, andorinhas que vão para o exílio, madrigais dos ninhos, borboletas violando rosas, sebes orvalhados, árvores esqueléticas, etc..

    No tocante a rimas, uma pobreza franciscana: lábios rimando sempre com sábios, pérolas com cérulas, sol com rouxinol, caminhos com ninhos, nuvens com Rubens (?),noite com açoite; um imperdoável abuso de rimas em ada, ado, oso, osa, ente, ante, ão, ar, etc..

    No tocante a vocabulário, uma não menos franciscana pobreza: talvez dois terços das palavras que formam a língua portuguesa, jazem absconsos, desconhecidos, inertes, ao longo dos dicionários, como tarecos sem valor em lojas de arrumação.

    Tais os rails por onde segue, num monótono andamento de procissão, o comboio misto que leva os Poetas portugueses da actualidade à gare da POSTERIDADE, Poetas suficientemente tímidos para temerem o vertiginoso correr do expresso da ORIGINALIDADE.

    Inexperiente, o autor dos Oaristos teve um dia a cândida ingenuidade de se meter nesse moroso misto: cinco anos suportou a lentidão da viagem e a má companhia, até que uma e outra começaram a incomodá-lo de tal maneira, que resolveu mudar para o supracitado expresso, preferindo, deste modo, um descarrilamento à secante expectativa de ficar eternamente parado na concorridíssima estação da VULGARIDADE.

    ......................
    A Despedida de Eugénio de Castro

    Os Oaristos são as primícias dessa nova maneira do Poeta.

    Registando:

    Este livro é o primeiro que em Portugal aparece defendendo a liberdade do Ritmo contra os dogmáticos e estultos decretos dos velhos prosodistas.

    As ARTES POÉTICAS ensinam a fazer o alexandrino com cesura imutável na sexta sílaba. Desprezando a regra, o Poeta exibe alexandrinos de cesura deslocada e alguns outros sem cesura. Tal fizeram, em França, Francis Vielé-Griffin e Jean Moréas.

    Os alexandrinos são lançados em pare-lhas, mas os últimos quatro versos de cada Poema tem (tal se faz nos tercetos) suas rimas cruzadas. Salvo erro, é a primeira vez que assim se corta o alexandrino.

    Pela primeira vez, também, aparece a adaptação do delicioso ritmo francês, rondel.

    Introduz-se o desconhecido processo da aliteração: veja-se o poema XI e muitos versos derramados ao longo desta silva.

    Ao contrário do que por aí se faz, ornaram-se os versos de rimas raras, rutilantes: na mais extensa composição, a composição IV, que tem cento e sessenta e dois alexandrinos, não se encontra uma única rima repetida.

    O vocabulário dos Oaristos é escolhido e variado. Algumas palavras menos vulgares darão certamente lugar aos comentários cáusticos da crítica. Embora.

    O Poeta empregou esses raros vocábulos:

    em primeiro lugar, porque às fastidiosas perífrases prefere o termo preciso;

    em segundo lugar, porque pensa, como Baudelaire, que as palavras, independentemente da ideia que representam, têm a sua beleza própria. Assim: gomil é mais belo que jarro, cerusa mais belo que alvaiade, etc.;

    em terceiro lugar, pela simpatia que lhe merece esse estilo chamado decadente, que tão bem definido foi por Théophile Gautier:

    «Style ingénieux, compliqué, savant, plein de nuances et de recherches, reculant toujours les bornes de la langue, empruntant à tous les vocabulaires techniques, prenant des couleurs à toutes les palettes, des notesà tous les claviers, s'efforçant à rendre la pensée dans ce qu'elle a de plus ineffable, et la forme en ses contours les plus vagues et les plus fuyants, écouiant pour les traduire les confidences subtiles de la névrose, les aveux de la passion vieillissante qui se déprave et les hallucinations bizarres del'idée fixe tournant à la folie... Ce n'estpas chose aisée, d'ailleurs, que ce style méprisé des pédánts, car il exprime des idées neuves avec des formes nouvelles et des mots qu'on n'a pas entendus encore...»

    Tais são, sumariamente, as capitais inovações que este livro apresenta.


    PREFACIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

    (1899)

    (...) A verdade é esta: literariamente, bem pode ser que os Oaristos nada valham, mas, historicamente, ninguém se atreverá a negar-lhes um importante e duradouro lugar na literatura portuguesa do século que finda.

    Há neste volume uma forte dose de exagero, que muitos atribuíram a um juvenil desejo de épater le bourgeois, mas que, rigorosamente, deve ser explicada pela necessidade de sublinhar, com um violento traço vermelho, á estagnada vulgaridade das formas poéticas de então.

    O efeito da minha tentativa excedeu em amplitude e rapidez os cálculos que eu próprio tinha deitado. Quase todos os meus camaradas, novos e velhos, alguns no galarim, tomaram pelo caminho que eu desbravara. A mobilização da cesura nos alexandrinos, e a dos acentos clássicos no decassílabo, o esmero no emprego das rimas, a escolha rigorosa dos epítetos, o alargamento do vocabulário, a restauração dos moldes arcaicos, o verso livre, a aliteração: – todas essas inovações, iniciadas nos Oaristos e continuadas depois nas Horas, são hoje for-mas correntes na poética nacional, que, evidentemente, saiu, por via delas, da paralisia que a entrevara.

    .......................


    I

    Triunfal, teatral, vesperalmente rubro,
    Na diáfana paz dum poente de Outubro,
    O sol, esfarrapando o incenso dos espaços,
    Caminha para a morte em demorados passos,
    Como as bandas que vão a tocar nos enterros...
    E surgindo detrás de acuminantes serros,
    Melancolicamente a lua de mãos belas,
    Tecedeira do azul, tece num tear de estrelas,
    Um lenço branco, um lenço alvíssimo e brilhante,
    Para acenar com ele ao sol, seu ruivo amante...
    Sobre o verde jardim caem penumbras lentas.

    Em seus vasos de louça, as flores sonolentas
    São berços embalando o dormir dos insectos;
    A alma dum arroio, entre avencas e fetos,
    Suspirosa, murmura em cascavéis de prata;
    Velha Níobe, chora ao longe uma cascata;
    Esplendem girassóis como fulvas custódias;
    Passam no éter brando as pastorais monódias;
    E à flor dum lago, onde o sol cai em flavos feixes
    E onde passam legiões de escarlatinos peixes,
    À flor dum lago azul, circundado de buxo,
    Simbólico, real, levanta-se um repuxo,
    Como uma grande flor de cristal a cantar!

    Foi numa hora assim, mansa, crepuscular,
    Que ao longo desta longa e folhosa alameda,
    Altiva, imperial, entre um rugir de seda,
    Vi pela vez primeira a Eleita de minh'alma,
    A grande Flor subtil, inigualável, alma,
    A Maior, a mais Bela, a mais Amada, a Única!

    Vinha gloriosa e triste, envolta em negra túnica,
    Que no chão se rojava em ondulantes dobras,
    Tinha no calmo andar a elegância das cobras,
    A leveza dum silfo e a graça duma ânfora,
    E, assim como num golpe um alvo pó de cânfora,
    O seu olhar fazia doer, olhar profundo.

    Eu era nesse tempo um grande vagabundo,
    Um precoce infeliz, viúvo de ilusões;
    O sinistro fragor das mundanas paixões
    Não chegava de há muito a meus ouvidos lassos;
    O egoísmo, o grande rei, cingira-me em seus braços;
    De ninguém tinha dó, de ninguém tinha inveja...
    Contemplando de longe a sórdida peleja,
    Esta infrene peleja, a que chamamos vida,
    Seguia, alheio a tudo e de cabeça erguida,
    Tendo um único irmão: o meu gelado orgulho.
    A Dúvida, funesto, ardente sol de Julho,
    Queimara, rudemente, a flor da minha crença;
    Em meu peito reinava a fria indiferença;
    Tinha descarrilado o vagão dos meus sonhos;
    Meus dias eram maus, longuíssimos, tristonhos,
    Ensopados de névoa e de melancolia...

    Mas ao vê-lA surgir triunfalmente fria,
    Grácil como uma flor, triste como um gemido,
    Meu peito recobrou o seu vigor perdido,
    Todo eu era contente e alegre como um rei!
    E, cheio de surpresa, abismado, fiquei
    A olhar o seu perfil e o garbo do seu colo,
    Cheio de admiração, como um homem do pólo
    Quando, depois de ter suportado os reveses
    Duma noite cruel e fria de seis meses,
    Iluminando enfim os tenebrosos trilhos,
    Vê surgir, entre a neve, o sol com ruivos brilhos!

    O céu fulgia como a cauda dum pavão.

    Aos seus cabelos reais prendiam-se no chão,
    Triste e amorosamente, as pálidas folhagens,
    Enquanto os olhos meus seguiam como pajens,
    O seu rítmico andar sonâmbulo e moroso...

    Assim me apareceu o Lírio tenebroso,
    Cujo ar desprezador me fere e vampiriza,
    Criatura esfingial, triste como Artemisa,
    Vingativa, feroz e linda como Fásis,
    Flor cujo corpo é o aprilino oásis,
    O caravansará que, por noites insanas,
    Vão demandando embalde as longas caravanas,
    As caravanas dos meus nómades desejos...
    Assim eu vi brilhar seus olhos malfazejos,
    Assim me deslumbrou a graça do seu busto!
    Hoje venho cantar em verso nobre e augusto
    Seus álgidos desdéns, tão frios como um túmulo,
    E seu corpo que é a quinta-essência, o cúmulo
    Da esbeltez, do frescor, da graça feminina.

    – Flor bizarra, que eu vi à hora vespertina,
    Flor marcescente, que eu constantemente sigo,
    Flor, que olho sem cessar, como um estilita antigo,
    Olhando o flavo sol, de pé, numa coluna,
    Flor de trigueiras mãos, de cabeleira bruna,
    Em teu regaço ponho este livro a ti feito.
    Este livro febril, que delira e que mostra
    Um desvairado amor agarrado ao meu peito,
    Rara pérola azul agarrada a uma ostra!



    II

    Em verso vou cantar o meu Diamante preto!

    Do mais grácil, estranho e bizantino aspecto,
    Flexível corno um junco e esbelto como um fuso,
    Seu núbil corpo tem, num dualismo confuso,
    A finura do lírio e o garbo das serpentes;
    Soberba e esguia, com seus passos indolentes,
    Quando caminha. lembra uma túlipa a andar;
    Lenta e subtil, parece até que vai no ar,
    Como um caule de flor, levada pela aragem;
    Basta vê-lA uma vez para que a sua imagem
    Leve, tão leve como os perfumes e o som,
    Fique vibrando em nós, eternamente, com
    A doçura sem par duma voz que se extingue...

    Franzino e original, o seu corpo é um moringue
    Em cujo colo estreito alguém tivesse posto
    Um moreno botão de rosa-chã, – seu rosto,
    Grácil botão que exala uma essência secreta,
    Botão onde pousou nocturna borboleta
    Com asas negras, muito negras, – seus bandós.
    Sua desfalecida e liquescente voz,
    Dorida como um ai e lassa como um canto,
    Sua lânguida voz, maravilhoso encanto,
    De que Ela tem o amavioso monopólio,

    E um fio de veludo, um suavíssimo óleo:
    Suave, a sua voz suave se derrama...

    Seu hálito infantil endoidece e embalsama,
    Subtil como o ananás, forte como um veneno.

    Seu pescoço sem par é um cortiço moreno,
    Que os meus desejos vão circundando em colmeia.

    Tem música no andar, quando à tarde passeia
    Do seu alto balcão nos marmóreos losangos.

    A sua boca é um sorvete de morangos.

    Seu magro busto oval brilha, como um santelmo,
    Sob o seu penteado, esse ebânico elmo
    Pesado e nocturnal, com reflexos azuis.

    Seu gesto excede em graça as larvas dos paúis,
    Que em curvos voos vão voando à flor dos pântanos.

    Tem as unhas de opala; o seu riso quebranta-nos;
    Vibrante de coral, seus cílios são de seda;
    Seu capitoso olhar é um vinho que embebeda;
    Seus negros olhos são duas amoras negras!

    Original, detesta as convenções e as regras;
    Ama o luxo, o requinte e a excentricidade,
    Faz tudo o que lhe apraz, impõe sua vontade,
    Diz o que sente, sem lisonja, sem disfarce.

    Cousa que muito poucos têm, sabe domar-se:
    Como é medrosa, a fim de ver se perde o medo,
    Às quietas horas do Mistério e do Segredo,
    Percorre longos, funerários corredores,
    Onde pairam, chorando as suas fundas dores,
    Fantasmas glaciais, errantes e protervos!
    Nervosa, com o fim de subjugar seus nervos,
    Corta as unhas em bico, à guisa de punhais.

    – Chega mesmo a morder pedaços de veludo!

    Detesta o movimento, as expansões e tudo
    O que possa alterar o seu viver inerte;
    Não costuma sair; sonha; não se diverte;
    Seus raros gestos são cheios de bizarria,
    Finos, excepcionais, sem par.
    Pedi-lhe um dia
    Que me dissesse qual é o sonho singular,
    O sonho que Ela mais quisera realizar,
    Aquilo que Ela mais desejaria ter,
    Ao que Ela respondeu:
    – «Desejaria viver
    «No pólo norte, numa estufa de cristal!»

    Odeia a luz: ama a penumbra vesperal...
    Odeia o piano: adora o som lento do órgão...

    E suas finas mãos que bem raro me outorgam
    A permissão de as oscular, suas mãos finas,
    As suas mãos arquiducais, longas, divinas,
    Não sustiveram nunca o peso duma agulha.

    Ama os perfumes e as visões; odeia a bulha;
    Seu corpo estonteante e lânguido que exala
    Doces e sensuais aromas de Sofala,
    Do Cairo, do Japão, do Iémen e da Pérsia,
    Seu corpo sensual foi feito para a inércia:
    – Até para falar às vezes tem preguiça!

    Tal é a fria Flor taciturna, insubmissa,
    Cujos olhos astrais cortam como estiletes,
    Tal é a bem Amada impassível, trigueira,
    Cujos olhos astrais – agudos alfinetes,
    Ferem meu coração – dorida pregadeira!




    XI

    Um sonho.

    Na messe, que enlourece, estremece a quermesse...
    O sol, o celestial girassol, esmorece...
    E as cantilenas de serenos sons amenos
    Fogem fluidas, fluindo à fina flor dos fenos...

    As estrelas em seus halos
    Brilham com brilhos sinistros...
    Cornamusas e crotalos,
    Cítolas, cítaras, sistros,
    Soam suaves, sonolentos,
    Sonolentos e suaves,
    Em suaves,
    Suaves, lentos lamentos
    De acentos
    Graves,
    Suaves.

    Flor! enquanto na messe estremece a quermesse
    E o sol, o celestial girassol esmorece,
    Deixemos estes sons tão serenos e amenos,
    Fujamos, Flor! à flor destes floridos fenos...

    Soam vesperais as Vésperas...
    Uns com brilhos de alabastros,
    Outros louros como nêsperas,
    No céu pardo ardem os astros...

    Como aqui se está bem! Além freme a quermesse...
    – Não sentes um gemer dolente que esmorece?
    São os amantes delirantes que em amenos
    Beijos se beijam, Flor! à flor dos frescos fenos...

    As estrelas em seus halos
    Brilham com brilhos sinistros...
    Cornamusas e crotalos,
    Cítólas, cítaras, sistros,
    Soam suaves, sonolentos,
    Sonolentos e suaves,
    Em suaves,
    Suaves, lentos lamentos
    De acentos
    Graves,
    Suaves...

    Esmaiece na messe o rumor da quermesse...
    – Não ouves este ai que esmaiece e esmorece?
    É um noivo a quem fugiu a Flor de olhos amenos,
    E chora a sua morta, absorto, à flor dos fenos...

    Soam vesperais as Vésperas...
    Uns com brilhos de alabastros,
    Outros louros como nêsperas,
    No céu pardo ardem os astros...

    Penumbra de veludo. Esmorece a quermesse...
    Sob o meu braço lasso o meu Lírio esmorece...
    Beijo-lhe os boreais belos lábios amenos,
    Beijo que freme e foge à flor dos flóreos fenos...

    As estrelas em seus halos
    Brilham com brilhos sinistros...
    Cornamusas e crotalos,
    Cítolas, cítaras, sistros,
    Soam suaves, sonolentos,
    Sonolentos e suaves,
    Em suaves,
    Suaves, lentos lamentos
    De acentos
    Graves,
    Suaves...

    Teus lábios de cinábrio, entreabre-os! Da quermesse
    O rumor amolece, esmaiece, esmorece...
    Dá-me que eu beije os teus' morenos e amenos
    Peitos! Rolemos, Flor! à flor dos flóreos fenos...

    Soam vesperais as Vêsperas...
    Uns com brilhos de alabastros,
    Outros louros como nêsperas,
    No céu pardo ardem os astros...

    Ah! não resistas mais a meus ais! Da quermesse
    O atroador clangor, o rumor esmorece...
    Rolemos, b morena! em contactos amenos!
    – Vibram três tiros à florida flor dos fenos...

    As estrelas em seus halos
    Brilham com brilhos sinistros...
    Cornamusas e crotalos,
    Citolas, cítaras, sistros,
    Soam suaves, sonolentos,
    Sonolentos e suaves,
    Em suaves,
    Suaves, lentos lamentos
    De acentos
    Graves,
    Suaves...

    Três da manhã. Desperto incerto... E essa quermesse?
    E a Flor que sonho? e o sonho? Ah! tudo isso esmorece!
    No meu quarto uma luz luz com lumes amenos,
    Chora o vento lá fora, à flor dos flóreos fenos...




    XII

    Saúde e Ouro e Luxo! A Primavera
    Interminável! Viagens! Dias lentos!
    Inércia e Ouro! O nome aos quatro ventos!
    Noites mornas de amor! Tal a Quimera!

    A Sombra! A falta de Ouro que exaspera
    E da mulher os falsos juramentos!
    Correr mapas! Bocejos sonolentos!
    Assim a Vida corre e nos lacera!

    Sonhamos sempre um sonho vago e dúbio!
    Com o. Azar vivemos em conúbio,
    E apesar disso, a ALMA continua

    A sonhar a Ventura! – Sonho vão!
    Tal um menino, com a rósea mão,
    Quer agarrar a levantina LUA!


    SAUDADES DO CÉU


    O DILÚVIO

    Há muitos dias já, há já bem longas noites
    que o estalar dos vulcões e o atroar das torrentes
    ribombam com furor, quais rábidos açoites,
    ao crebro rutilar dos coriscos ardentes.

    Pradarias, vergéis, hortos. vinhedos, matos,
    tudo desapar'ceu ao rude desabar
    das constantes, hostis, raivosas cataratas,
    que fizeram da Terra um grande e torvo mar.

    À flor do torvo mar, verde como as gangrenas,
    onde homens e leões bóiam agonizantes,
    imprecando com fúria e angústia, erguem-se apenas,
    quais monstros colossais, as montanhas gigantes.

    É aí que, ululando, os homens como as feras
    refugiar-se vão em trágicos cardumes,
    O mar sobe, o mar cresce. e os homens e as panteras,
    crianças e reptis caminham para os cumes.

    Os fortes, sem haver piedade que os sujeite,
    arremessam ao chão pobres velhos cansados.
    e as mães largam. cruéis, os filhinhos de leite,
    que os que seguem depois pisam, alucinados.

    Um sinistro pavor; crescente e sufocante,
    desnorteia, asfixia a turba pertinaz:
    ouvem-se urros de dor, e os que vão adiante
    lançam pedras brutais aos que ficam pra trás.

    Raivoso, o touro estripa os míseros humanos
    que o estorvam, ao correr em fuga desnorteada,
    e pelo ar tenebroso as águias e os milhanos
    fogem, com vivo horror, daquela estropeada.

    Cresce a treva infernal nos cavos horizontes;
    o oceano sobe e muge em raivas cavernosas,
    e as ondas, a trepar pelos visos dos montes,
    fazem de cada vez cem vítimas chorosas!

    Os negros vagalhões, nos bosques mais cimeiros.
    silvam e marram já, em golpes iracundos;
    resplendem raios mil em rútilos chuveiros,
    e os corvos, a grasnar, desolham moribundos.

    Blasfémias, maldições elevam-se à porfia;
    fustigado plo raio, aumenta o furacão;
    cada ruga do mar acusa uma agonia,
    cada bolha, ao estalar, solta uma imprecação.

    Cresce n mar, sobe o mar... e traga, rudemente.
    da m ais alta montanha o píncaro nevado.
    e um tremendo trovão aplaude a vaga arlente,
    que envolve, ao despenhar-se, o último condenado.

    Cresce o mar, sobe o mar, que já topeta os céus:
    e, levada plo fero e desabrido norte,
    sua espuma, a ferver, molha o rosto de Deus,
    que lhe encontra um sabor nauseabundo de morte...

    Cresce o mar, sobe o mar... Cada vaga é uma torre!
    No céu, o próprio Deus melancólico pasma...
    E, pelos vagalhões acastelados, corre
    a Arca de Noé, qual navio-fantasma...


    Saudades do Céu

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