Joaquim Matos

COLHENDO O VENTO NOS FRUTOS

(texto integral)



A Maria Otília

a flor do sal. aberta nos teus
lábios. signo da signa secreta. em que
me perco. já tarde
em ouro exposta ao sol. ao vento.
de crinas onduladas. onde tudo todos
somos. outras sementes que fomos
oblíquos os teus olhos. gotas do
deserto. de que me nascem asas. que
siam. entre litorais redondos
o teu segredo é o teu medo. o meu
medo é o teu segredo. e pelas pontas
outros nós puxamos segredos e medos
e há pés que passam a nosso lado.
feitos de mar de terra e alcatrão.
outras histórias. outros fados. outros
segredos. outros medos. outras asas.
outros olhos. outras sementes. outros
ventos. outros lábios
vivemos em segredo. amor é isso.
uma fuga sem onde. sem como. sem
porquê. sem quando. fitas soltas d'água
mas nós. assim o julgamos.
de saber sentido na boca onde se
escapa. como aves. sempre como aves.
de olhar vago. indefeso. inseguro.
pesado
e voamos. virando folhas de espaço
selado. onde estamos. ou não estamos.
à mercê das aves. de outras aves



à boca da moldura
de barroca porcelana
aguardas
no tamborete
o estranho magnésio

inocência castanha!
de sandálias!

a brancura tenra
escorre-te da pele
enlaçada pelos dedos
numa caixa de cartão

que silêncio?
que palavra?
Ave!
se oculta na candura dos teus folhos
a alçar-te a face?!




no sangue
te descubro
pelo verso
– onda verde
de lua
lã e ave

abres-me o fogo
que trago
do universo
para sentir
o teu
– fogo suave




em gota azul
me caem
os teus lábios
aberta
pelos dedos
na cintura

aperta-me o olhar
teu
de ave
a minha boca
nua
na tua

bebo o silêncio
nos olhos
tresmalhados
e sugo o sangue
na órbita
da lua




a noite nos envolve numa dança
feita de mós
pelo nó
de uma distância

e de nós em nós avança
em mar de nós
onde nós
somos lança




entre nós o pinho de uma mesa
e a cor
servida em nossos pratos
das horas de cozinha que passámos
em volta do amor
como lagartos

os gestos vão bordando na toalha
a linha
da vida em nossas mãos
e bebemos o olhar pela navalha
que mata
no Outono a solidão

e o sol vem pousar em nossos ombros
a fugir
dos ombros da cidade
atrelando faunos e gnomos
a nosso carro
cheio de verdade





suspendes-te
de vidro
no fundo do olhar
de chita
toucada

pousas a boca
de fogo
no cimo do silêncio
do branco
desfolhada

quebras-te de espuma
pelas veias
na sombra de um gesto
caído
de vaga

a luz se contorce
de palavras
num sorriso réptil
subtil
de asa





nas tuas franjas
as franjas desse toldo
onde posas
num vento de cabelos
bronzeada em fulva tijoleira
de seios apontados
de laços
aos meus dedos

a máquina te retém
no meu governo
de tiracolo
em armas
e impaciente ignoras o calor
das minhas lentes
Que te desfocam
em chamas

na objectiva aguardo um outro corpo
que despes
também
no teu olhar
enquanto os calções passam
de louros
que levam as Canárias
na máquina de filmar




de cesto
te enlaças pelo ombro
pensando
a ilha de chinelas

de colar
te elevas como Agosto
na tez do sol
dourado como ela

cerca-te o mar
as dunas e as palmeiras
e a distância
vencida pelas velas

nos óculos
tímidos da infância
avanças
em corpo de gazela

oh! sangue de canárias!
que esperavas
em fogo
de aguarelas?




abrias o Danúbio no silêncio
do coração azul
de Bratislava

e da sombra sacavas a palavra
no som do sonho
d'água que remava
pela face dividida da paisagem
em dois perfis
que a cor aproximava

e rolavas no rolo que rolava
sob a luz
do corpo que eu filmava




em teu corpo me persigo
hálito de vento
fálico
em crinas de ouro
sardento
nos tons de línguas
de xisto

venho de um silêncio
de giz
ponto-de-cruz
em riste
pela vagina do verso
rubro
de imprevisto





encastoada
nas colunas de betão
olhas o mar
aprisionada

o fundo
de mesquita que se apaga
na cor de Tânger
terra queimada

teu corpo
pouco mais que descoberto
mostram as minhas noites
vizinhas do deserto

férias quase solitárias
de sol em festa
rente ao silêncio
de golpe incerto





a insónia se abre como o fogo
pelo trigo do teu peito
e amoras
como se coubessem nos meus olhos
incertezas
das nossas horas

cântico de ânfora e de vinho
na garganta
da noite que se abre
sem fundo no fundo do silêncio
com secas abas
de sabre

vertigem sanguínea de flora
hasteada
na rouca madrugada
em que surges a comandar os ventos
na chama
crepitante e apagada





amadurecemos os frutos entre os dentes
atrai-nos à acidez
as nossas veias
e amadurecidos junto das sementes
neles tecemos
as nossas teias

são de nervos os espaços que criamos
como aranhas
que do corpo fazem ninho
queremos o azul que não tecemos
como se a ânsia
fosse um destino

e fica-nos por fim o que buscámos
imagens
tiritando pela rua
onde vendemos os olhos a retalho
ao sol que passa
sem uma lua





pelas ameias da noite
crespa
uiva a palavra
carmim de nossas bocas
em nó
de gota d'água

dos vidros do silêncio
a sigo
pela haste
que ainda persiste
como fio
da madrugada

e vai no rosto de rasto
corno bilha
sem a fonte
deixando-me o largo pasto
de poeta
a monte





e ela rolou pela escadaria
a noite
e não tivemos mãos
para a deter
nelas se apinhavam as certezas
o dia
que dos lábios nasceu
para crescer

apoderou-se de um gesto distraído
de espada acesa
e ira nas esporas
e nocturnos fomos aves de rapina
a descarnar
no corpo
as nossas horas





brinde
segura o candelabro
pelas olheiras
da palavra
folheadas

as sedas
transpiram de aniversário
de gala pandas
a pó-de-arroz
e nardo

um pêndulo
de vai-e-vem de escravo
abafa as horas
de ventre
dourado

a música
em cálices de pé alto
sai de colunas
de olhar
ralado

e talhado
num canapé de mogno
bebo de cálice
o meu fato
de alugado





não há raiva que aqueça este meu leito
na vigia
da noite oxidada
suspenso no rosto em que me deito
de faca
rubra e afiada

escorrem de vidro os teus dois seios
e o beijo
da primeira madrugada
na voz que se abria pelo meio
ao chegar
aos lábios como vaga

tu foste o que foste nos meus olhos
foscas ainda
esferas de cristal
foste ave que não foge quando foge
ao fogo
difuso sideral

persegue-me a chama da memória
como panóplia fosca
ensanguentada
e passos conhecidos que não vejo
se fujo
em mim dentro de casa





fazes falta na seara
em soro
que a vida ainda detém
onde as nuvens sempre passam
sem deixar
uma lágrima de bem

pertenço a estas horas secas
que bebo
no copo da saudade
como quem vive do vento
que se mostra
só na tempestade

e toda a gente apressada
passa
na minha rua de pombas
como se não houvesse nada
além da pressa
de encher
a sua sombra





pela mão do teu regresso
surges da noite
atravessada
na alvorada

cântico de luz agreste
pelos destroços
dos olhos
sob as águas

Só não me trazes as horas
abertas
nos teus selos
à vindima

a oferecer nos teus cachos
de vinho
os bagos
da minha sina





assaltámos as dunas de olhar em riste
incorporados no fogo
de outra fauna
ao encontro de manhãs perversas
em que o corpo
crie a alma

revolvemos as areias em castelo
com fúria de nuvens
contra ventos
ensanguentando tudo que encontrámos
a resistir
ainda cá por dentro

a hora é de justiça e crueldade
na renovação
dos nossos sentimentos
não há hóstia que salve a eternidade
que benzeu
os nossos sofrimentos





corpo de réstia
de sonhos
bronzeados
conservavas
em óleos
e maresia

e esperavas
pelos dedos
da alquimia
em que o ouro
de vermelho
se tingia

despias-te
então
nessas estrelas
que apanhavas
pelos olhos
do meu dia





retinham-te os ventos
pelos dentes
branca
fuste de mármore

enchias os teus seios
de silêncio
da boca
da minha sede

pelas coxas tu relias
os caminhos
errados
dos meus dedos

e soltaste a tua voz
funda
num cacho
de segredos





o mosto te bebia
pelo corpo
nos meus lábios
sumo de dedos
que espremia
inchados
nos teus bagos

e a língua
embainhada
na saliva
te sugava
o vinho
que a alma
oculto
te queimava





lapidámos no nosso horizonte
ópticas verdes
divergentes
e em lugar de um lugar onde
houve setas
e medos

cortámos cerce o frente-a-frente
com as costas
das palavras
e fomos soldados com medalhas
de carne
dos nossos dedos




lagartos de Palmitos Park
que ainda rastejais
solarengos
pelas fissuras
das minhas madrugadas

e vós catálogos de aves
cactos e plantas
que atravessais
no espanto
abrupto das águas

regressai ao ceptro de Saturno
vosso suserano
que eu procuro ainda verdes
outras ilhas
no oceano





havemos de voltar às nossas praias
a procurar
os órgãos dos sentidos
e fazer novamente de outras vagas
outros mares
de rumos pervertidos

e teremos a força de um só verbo
como ponta
de lança no olhar
para fazer das pedras o abrigo
dos ventos
que transportam o luar

as ruas ser-nos-ão o que queremos
nos gestos
que serão só de bandeiras
e o tédio que nos mata mataremos
com sangue
que nos sai das horas cheias

flores haverá por esses charcos
onde o medo
o caos amontoou
e seremos pilotos de um só barco
sem medo
da corrente que passou





os braços abrirás a nosso canto
que será
o perfil das nossas asas
e o mundo que ressona na seu manto
acordará
nos telhados dessas casas.

pelos dentes sairá a nossa voz
de carne
que será embriagada
na força da razão que se desprende
da angústia
da terra amordaçada



© Joaquim Matos, Colhendo o Vento nos Frutos, Porto, Brasília Editora, 1984

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