Joaquim Matos

Joaquim Matos

JOAQUIM José Teixeira de MATOS nasceu próximo da lota do peixe, a poucos metros do mar da bacia de Leixões, na rua Conde São Salvador, Matosinhos, em 21 de Janeiro de 1929. Presos à memória, ficaram-lhe os marginais da época, com os quais se identificou na infância e na puberdade. Também o primeiro alimento, o leite de uma poveira de carnes fartas, por falta de leite materno. O mais, da miséria e da ignorância, nem vale a pena falar. Abra-se apenas uma excepção, para uma frase que repetia para si, quando andava na Escola Primária da Confraria do Bom Jesus de Matosinhos: «Quando for grande, hei-de ser doutor para ajudar os pobres».

Começou a trabalhar aos 13 anos, num atelier de engenheiros, na Praça da Batalha, no Porto. Nessa altura a distância entre Matosinhos e Porto era muito grande. O eléctrico nunca mais chegava. O Porto teve o efeito de um exílio. A praia, com seus caícos, as suas bateiras e os seus botes, com algas à mistura, cabeças rachadas e pernas ensanguentadas, e os pés descalços com bolas de trapos na rua, foram substituídos por um outro mundo comandado por horas. Esta mudança provocou-lhe as lágrimas mais sentidas e fez nascer nele pela primeira vez a saudade. No atelier apenas atendia telefonemas. Quando o telefone não tocava, dedicava-se a desenhar e a aprender a escrever à máquina. Quando já manejava a máquina, escreveu um pequeno conto trágico, em que uma criança assiste com os olhos à morte da mãe, esmagada por uma grande pedra que rolara de um monte. Sem qualquer interesse literário, um dia deitaria no cesto dos papéis.

Foram alguns meses de atelier. Um dia, um primo de um dos engenheiros levou-o para o escritório de uma fundição na rua do Comércio, perpendicular ao rio Douro, na área da Alfândega, próximo do Palácio da Bolsa, que só muito mais tarde viria a conhecer e a ficar deslumbrado com o salão árabe. Foi necessário ter de ser «guia turístico» a uns amigos estrangeiros. No escritório, não tratou de papéis nem de telefonemas, como esperava, foi transformado em carrejão, levando peças de ferro fundido aos clientes, como tampas de saneamento, ficando a conhecer toda a cidade com toda a acção da gravidade sobre os ombros. Nem era profissão nem era futuro. Conseguiu,então, entrar como aprendiz de electricista numa fábrica de material eléctrico, Marcolino Afonso e Cª Lda, na rua de S. Miguel, 39, que outrora deveria ter sido de judeus, expulsos pelas trevas mentais e afectivas de D. Manuel II, área portuense bafejada pelo romance de Agustina Bessa-Luís, em O Bicho da Terra, e por Mário Cláudio, em A Quinta das Virtudes. O electricista foi-se fazendo, desde o escadote ao ombro e o carro de mão até chegar a chefe de fábrica. Dado que já tinha alguns estudos, e como nenhum empregado de escritório permaneceu por falta de honestidade, foi convidado pelos patrões, quase por imposição, para passar a escriturário, chegando a chefe de contabilidade. Nessa altura ganhava mil e duzentos escudos por mês. Acabou por deixar o cargo e o dinheiro para entrar no Seminário Baptista do Porto, onde esteve alguns anos e durante os quais fez os seus estudos liceais em simultâneo com estudos teológicos. Por volta de 1960 perdeu a fé e renunciou ao Seminário e à Religião, sem lhe ficar qualquer amargo de boca, pois guarda boas recordações das pessoas e os seus sentimentos continuam na linha da mensagem humanista cristã.

Entrou para a Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, no ano de 1956. Participou na campanha eleitoral de Arlindo Vicente, candidato à Presidência da República, e, após a desistência deste, na de Humberto Delgado. Foi fiscal na secção de voto de uma freguesia de Coimbra. Após as eleições teve de ir prestar contas à Pide. O Professor Paiva Boléo resolveu ditar a sua sentença: «Esse aluno 30 anos que aqui ande nunca passará comigo». O Joaquim Matos matriculou-se então na Faculdade de Letras de Lisboa, onde começou o ano lectivo de 1959/60. Em Lisboa participou em todas as lutas académicas, nomeadamente na da crise estudantil de 62, que culminou com o assalto à cantina por um forte contingente de policia armados de metralhadoras, onde se encontravam cerca de 1.500 estudantes, que foram transportados para o campo de treinos da polícia de choque da Parede. Desses 1.500 estudantes a polícia fez uma selecção em função do cadastro de cada um, soltando todos excepto 76, que foram para o Forte de Caxias. Desses 76 fazia parte o Joaquim Matos. Esta «estadia» não foi penosa, comparando com as histórias que se sabiam de presos políticos. Alguns fizeram destes quatro dias e meio, sem torturas, uma medalha que ostentam em tudo quanto é sítio. Daí se recordam dois casos pitorescos. Depois de 48 horas sem dormir e sem comer, a primeira refeição servida sabia a um manjar dos deuses e a cama, 17 beliches para 27 pessoas, eram deliciosamente fofas. No dia seguinte, um pouco refeitos, a comida cheirava mal, não se comeu, e os beliches, com colchões moídos, pareciam ferros a fustigar as costas. O outro caso deu-se à saída do Forte. Era obrigatório a passagem por um salão, onde um a um era submetido a um interrogatório por um Pide. Depois das declarações prestadas, o Pide leu e no final da leitura perguntou se estava, certo para assinar. O Joaquim Matos discordou, dizendo que as respostas no seu conjunto davam a entender que tinha sido levado inconscientemente pelos outros. O pide e outro que se encontrava um pouco mais distante fuzilaram-no com o olhar. Perguntou então, o que escrevia, se queria acrescentar mais alguma coisa. «Quero sim, respondeu o Joaquim Matos, sei de onde venho, ao que ando e para onde vou». Feito este remate saiu em paz e sossego.

Nesse ano de 62 concluiu as cadeiras do seu Curso de Filologia Românica. Faltava-lhe o Acto de Licenciatura. Depois de ser expulso três vezes do Ensino Oficial e uma do Particular, Colégio Camões, na Av. Almirante Reis, em Lisboa por curriculum político, dedicou-se durante 1O anos a dar lições particulares, renunciando ao Acto de Licenciatura. E assim se manteve até que apodrecesse a cadeira que destituiu o Ditador. Em 69, com Marcelo Caetano, regressa ao Ensino Oficial, faz o seu Estágio, tira o Curso de Ciências Pedagógicas e ingressa na Faculdade de Letras do Porto para o tal Acto de Licenciatura, então substituído por um Seminário de um ano e uma Tese. Chega o 25 de Abril de 74 sem o ano terminado. Foi uma balda. Da parte de alunos e de professores. Um escândalo com injustiças pelo meio e que não dá para recordar por uma questão de pudor. Do que se passou ficou uma imagem muito desagradável de alguns professores ditos universitários, hoje cheios de reverência. Como se já não tivessem chegado as injustiças do Paiva Boléo, a ignorância da Piedade Pádua e a sua relação pidesca com os inspectores durante o Estágio para Professor Efectivo. Diga-se a este propósito que o Joaquim Matos, após o 25 de Abril, requereu ao Ministério um exame público perante os mesmos metodólogos e os mesmos inspectores, nunca tendo recebido qualquer resposta. Continua de pé esse desafio, à ignorância e à prepotência. Durante os dez anos que esteve fora do ensino leccionou particularmente literatura portuguesa, literatura francesa, latim e Filosofia. Esta, que não fazia parte do seu Curso, foi a que mais leccionou.

Em 1962 entrou para o Partido Comunista Português, como militante. A tarefa mais arriscada que desempenhou foi como intermediário entre o PC português e o PC francês. Dado que era diariamente vigiado pela polícia política, afastou-se de todos os encontros intelectuais de esquerda, tornou-se sócio do Leixões, criou à sua volta a ideia de um burguês fanático pelo futebol. Isto mesmo lhe fora aconselhado pelo seu controleiro. As 8 e 15 do dia 25 de Abril de 74, quando se dirigia para o seu Liceu, de Matosinhos, foi avisado que havia uma revolução. Sem certezas e disposto a enfrentar todas as consequências, chegado ao liceu fez logo um comício na sala dos professores e depois nas aulas, primeira e segunda, arrastando depois consigo os alunos e os professores para a suspensão das aulas. Foi numa quinta-feira. Na segunda-feira regressa ao Liceu, reúne professores, alunos e funcionários, parcelarmente, e é escolhido um Conselho Directivo democraticamente do qual é Presidente, por eleição. Posteriormente exerceu o cargo de Inspector da Zona Norte, atacando à esquerda e à direita, em defesa da Democracia e da Estabilidade, acabando com a política de terra queimada, em vários liceus e escolas. Esteve também destacado na Escola Normal do Magistério Primário, para onde entrou por concurso, e onde esteve a leccionar linguística durante dois anos. Daqui passou para o seu lugar de efectivo no Liceu Rodrigues Freitas, no Porto, onde continua como professor. Durante esse período participou num Seminário de Regionalização Escolar, no Penta Hotel, em Lisboa, com os maiores especialistas europeus, da OCDE. Também participou na formação de professores, no âmbito da Escola e o Meio.

Por volta de 1977, por dificuldades económicas, entra na RAR (Refinarias de Açúcar Reunidas), como encarregado da Formação Profissional, onde se manteve até 1995. Experiência gratificante a nível do patronato. Seu Empresário, Senhor João Macedo Silva, sabendo que o Joaquim Matos era comunista assumido, aceitou-o com todo o carinho e respeito, pedindo-lhe apenas que não fizesse política dentro da Empresa, pois fora dela era um homem livre para seguir as suas ideias. Nunca tratou o Joaquim Matos como um comunista, mas como um homem e um amigo. Ainda na década de 70, depois de alguns dissabores, o Joaquim Matos abandona a política. Deixa de acreditar nas ideologias, inquinadas nos seus sistemas. As ideologias e as religiões, genericamente, são boas, a sua utilização é que é má. Deixa de fazer as leituras partidárias para fazer a leitura dos homens, caso a caso, em busca do carácter e dos sentimentos humanos, estejam eles em que partido estiverem. Só os bons poderão mudar o mundo. Nunca abdicou nem abdica, por sua natureza, do que há de humano no cristianismo ou na ideologia dita comunista, ou qualquer outra. O Homem é a razão de ser da sua vida.

Perdido o espaço político-social para a acção, Joaquim Matos procura não ficar de fora. Em 1987 lança o jornal literário Letras & Letras, a princípio mensal, depois quinzenal e, finalmente, depois de passar a revista, novamente mensal. Cresceu em qualidade e expansão. Nele participaram cerca de 700 colaboradores, nacionais e estrangeiros, universitários e não-universitários. Foi talvez a publicação mais independente que houve em Portugal, batendo-se, tanto quanto foi possível, contra capelinhas e manipulações partidárias. Foi a principal base do ensino da língua portuguesa e da literatura portuguesa do século XX, na maior parte das universidades estrangeiras. Foi a maior publicação de análise literária em língua portuguesa em todo o mundo. O maior número de artigos de análise literária no maior banco de dados do mundo, nos USA, pertencem ao Letras & Letras. Entre outras actividades, ligadas ao Letras & Letras, deve-se salientar a instituição de dois grandes prémios de Ensaio, um sobre Miguel Torga, ganho por Teresa Rita Lopes, Professora da Universidade Nova Lisboa, outro sobre Agustina Bessa-Luís, ganho por Silvina Rodrigues Lopes, também Professora da Universidade Nova de Lisboa.

Joaquim Matos foi ainda actor e encenador de teatro amador durante 20 anos. Fez o primeiro ano de violino, com alta nota, no Conservatório de Música do Porto, de que desistiu por não haver saída económica. Hoje nada sabe de música.

Escreveu para vários jornais e revistas nacionais e estrangeiras. Destaque-se a sua colaboração no Letras & Letras com cerca de 150 textos. Fez prefácios para livros e textos para catálogos de pintura. Fez conferências. Participou em júris de prémios literários,

A sua produção poética tem os seguintes títulos: Ossadas Vivas (1970), Ondas Curtas e Longas (1971), Colhendo o Vento nos Frutos (1984), Palavra Indeferida (1989), Uma Noite com Maat (1996), A Idade do Tempo (1997), Gare Marítima (1998), Kaaba (1999), O Corpo da Memória (2000) e O que Apetece Dizer-Te (2004). Publicou o livro de ensaios Mário Cláudio: Ficção e Ideário (Porto, Caixotim, 2004).

Ainda escreveu uma peça de teatro, Na Linha do Mar, que nunca passou a livro por falta de editora, pois é o género literário que bate a lírica em termos de prejuízo. Sobre ela fica, no entanto, o parecer de Óscar Lopes: «Não sou perito de teatro sob o ponto de vista de execução cénica, e por isso não me poderei pronunciar completamente sobre a validade propriamente teatral deste texto, onde os conflitos sociais se não individualizam, mas onde há grande movimento espectacular de conjuntos humanos. / Literariamente, colhe ao vivo a linguagem rude das "conserveiras", de um modo que há uns três anos pareceria chocante, mas que rapidamente o público se acostumou. As falas dos grupos desenha bem o choque social e ideológico.» Data de 1977. No ano 2000, fez a adapção em prosa da peça de teatro de Camilo Castelo Branco O Morgado de Fafe em Lisboa (Alenquer, Orabem Editora).

De todas as suas actividades, a mais gratificante foi a de professor do ensino secundário. Foi a maior paixão da sua vida. Amou os alunos mais do que a si próprio e deu-lhes tudo o que estava ao seu alcance, para que fossem homens, isto é, que pensassem pela sua cabeça, que amassem os outros mais do que a si próprios, que se preocupassem mais com o carácter do que com os conhecimentos, que concorressem consigo próprios e não com os outros, que lutassem contra o machismo hereditário, que lessem, lessem, lessem, porque a leitura era a medida do homem. 36 anos de utopia! Já perto da reforma, sente-se cada vez mais frustado. A Escola, como lugar privilegiado da educação e do ensino, está quase irremediavelmente perdida. Infelizmente não é pessimismo, é o sabor experimentado no dia a dia. Não há um só culpado. São os professores, são os alunos, são os pais e têm sido os ministérios responsáveis, sem excepção de partidos. Gastam-se fortunas e tudo continua na mesma ou pior. E profundamente doloroso dizer que era preferível a «escola» alienante, à base da memória do «Dinossauro Excelentíssimo», do que o que se está a passar. Mas o pior de tudo isto é que não se vislumbra qualquer saída. O Poder, mundial, não está interessado no desenvolvimento dos povos. Está interessado num desenvolvimento específico que sirva fins financeiros e económicos, e não no desenvolvimento do homem integral, esquecendo-se que a factura que têm de pagar por isso será demasiadamente elevada e que já está à vista. Esta a última esperança e a última decepção de Joaquim Matos. Que, no entanto, ainda acredita num mundo melhor, sem saber como nem quando, onde todos caibam, cada um no seu lugar, num braço forte contra todas as ameaças de que a humanidade está cercada.


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