PALAVRA INDEFERIDA
(texto integral)
Há uma folha seca na infância
um lençol que nunca foi bordado
Há uma asa presa na distância
Expõe a ânsia à mercê dos pássaros
na tensão incontida Da palavra
amor o labirinto dos espaços
A contorção dos gestos se modela
na hesitação vencida do olhar
Inunda-se a palavra É mar
Na chama mais recente aflorada
o regresso acontece indecifrado
O fogo inicia o seu mistério
Estendes-te manhã na tua asa
A procurá-la desço a madrugada
O sol cresce de azul
retoma os sentidos da seara É infinito
Desliza pela curva insinuante
o percurso interno das desdobradas formas na palavra
que habitamos
Soerguemos a véspera na galáxia Nasce o mito
Caminho sobre a cor interpreto a tarde
mais aliciante é a sintaxe da fragilidade
Conjugo o presente o Verbo insustentável
de um Quase permanente Emerges
Borda-se o mar a ânsia litoral
na descrição secreta de uma praia
Um texto de água se decifra no silêncio
que se disseca no tombar das águas
Rochoso rosto que em si desperta
a rouquidão das ondas A orla das palavras
No fundo há asas do teu jeito
de sangue seiva sedução
Dilatas o acaso nos teus lábios
Chamas Nasce o gesto A curva A mão
No regresso do olhar cresce a distância
um laço solto entre um corpo e outro corpo
Entre nós se abastece o universo
a sombra entre um porto e outro porto
Nos meus me levam submerso
os teus olhos que no voo se descrevem
aves que as asas vão juntando
no íntimo do fogo da promessa
de agosto A asa de areia apetecida
nos gestos de água de quando em quando
Derramas a palavra no meu corpo
Nos teus lábios o enigma da espuma
seios de álcool indução seda
Invoco os dedos Descrevo o sal
E narro as efemérides uma a uma
Abstracta Reaparece a sombra da memória
na luz de alcatrão que se descreve
Amanhece o silêncio a sede o segue
O lago Agora em que a hora se desenha
à liquida face da passagem
Pássaros de água sobre as águas
Levitação de cores vagas de imagem
Que fazer da manhã que não chega
a amanhecer
Embriaga-me a expressão da tarde
impiedosa a palavra indeferida
Entardece a primavera no olhar
uma papoila aberta e solitária
a saudade
a invenção da ilha O reflexo O mar
Abre-se o reflexo ao perfil das aves
Cúmplice a aventura do silêncio
Os seios se desenham incandescentes
Tocá-los a caricia verbal que chama
a vermelha hesitação dos lábios
ao encontro breve A sede adiada
O rito dos solstícios A solidão sagrada
Cobrem-se de areias pervertidas
das minhas margens de água Os barcos
as palavras Murcham brancas
O vento habita a decifração das cores
das horas O afluxo de sangue aves flores
Habita a leveza o teu olhar
na solidão morena do teu rosto
Há um beijo perdido na nudez da praia
um marulhar que resiste à transparência Impune
o silêncio que as sombras que se soltam une
A noite escala a contingência das coisas
que nos são próximas pela dádiva
A encosta passa pelo nosso corpo fluída
A superstição da sombra contaminada
envolve o gesto da renúncia consentida
Olho o corpo da serenidade
em que te ofereces Despedida
do teu silêncio Partirão os pássaros
Não pousa uma palavra nos teus gestos
Obedecem rigorosos ao apelo da harmonia
Penso a distância a maré-alta Penso o mar
Olhar de sal no rosto Do infinito
penso o fervor das horas Penso a tempestade
o decalque do retorno a combustão do sonho
Penso A ilha que amanhece circular
Abre-se o fogo nos gestos da quietude
que a veemência das rosas reflectem
Modela-se vaga o perfil da ânsia
o contorno rigoroso do instável a expressão
da palavra branca a violência o vento a dispersão
Cai a imprecisão da tarde
as coisas se propagam por palavras
na rochosa linha da face litoral
quebra a falência das águas
Silencio o silêncio Rezo aos deuses de granito
aos manes do meu passado Sou mágoa do Infinito
Breve se oferece à leitura do teu corpo
o olhar de rendas apartadas
A imagem é uma constante peregrina
O silêncio é um dogma indecifrável
A sombra é o axioma da medida
De imagem silêncio e sombra
a tua posse
talvez a verdade mais despida
© Joaquim Matos, Palavra Indeferida, Viana do Castelo,
Centro Cultural do Alto Minho Cronos, 1989.
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