Joaquim Matos

UMA NOITE COM MAAT

(texto integral)



«Neste lado de cá, não sou nada palpável,
pois vivo tanto com os mortos
como com aqueles que ainda não nasceram,
um pouco mais próximo da criação do que é habitual,
embora ainda não suficientemente perto.»


PAUL KLEE




O Nilo ressuma o teu primeiro leite
na teria úbere de iluminuras de império:
o desejo mais antigo de ceder
a uma sede vertical
no seu mais frágil jeito de querer.

Avivas o Outono em talhões de sépia
translativo tempo rotativo
na geografia líquida e esférica
assoreada de ferrugens ancestrais.

Teu mito assoma ao fogo
intenso e púbere na órbita dos nervos
na tensão dos ventos




Fui ao teu encontro à sombra das pirâmides
os pulsos te levava em oferenda
morena
nas tuas coxas de falésia.

No sopro nas unhas dos meus dedos
apartas tuas roupas dos gemidos
numa incontida alegoria matutina
em símbolos de restos de madrugada.

Teu leite quente ajoelha minha face
de percursos livres reprimidos
nas lenhosas fibras das palavras
assombradas na génese da vertigem.




A manhã regressa à memória do espaço
iluminando a casa lapidada
sitiada por gruas e betoneiras
na consagração de estruturas de aço:

lânguidos quadros
móveis pratas e reposteiros
na narração do pó
da sala chamuscada em cavacos de existência;

o silêncio em pálidas silhuetas
reflecte a sumptuosidade flácida dos sofás
resignados à multiplicação das sombras.

Retalho na plenitude das falências
em suas rugas de secas intimidades.




Imensamente quente teu ventre de Dezembro
na imponência da virtualidade
na emigração da passarada.

Nas braçadas de palha
a penugem do acolhimento inesperado
nas comissuras dos teus lábios
dilatadas na ocultação das chamas
transparentes na enunciação da neve.




Teu olhar de ontem no vinho de hoje
na erecção da sombra
no interior do caule intumescido.

A sede sempre me descreve nu e vertebrado
em folhas setembrinas
sob o sopro das tenras idades desabridas.

No teu sacro leite
constelações de fogo sempre se amotinam
deixando-me a resteva das imagens.




Abafo a noite em latas de cerveja
fofa como o vidro em teu olhar
no despontar do lenho
nas funduras reservadas ao inverno.

Chegam-me os cheiros de mungidas tetas
anunciando a manhã coagulada
ainda
nas pálpebras que dão para o teu rosto.

O teu canto abafado ressumbra o nosso encontro
pelas sebes de sábado
no cair dourado das sementes.




Vai passando pelo meu teu corpo a corpo
intercepções esconsas de espelhos lapidados
no rigor da posse
da penugem breve da eternidade.

Num afago se acolhe um outro rosto
de olhos viris que exsudam pelas veias:
no fundo do voo se bebe o teu olhar.

Assomas às mamas densas da peixeira
crestada e avulsa pelas lotas:
jardins de algas na memória de meus beiços
carnudos e besuntados
na voracidade do meu primeiro leite.




Escalo o teu silêncio a pulso de aço
pelas ranhuras da noite concedida
às rendas mais sexis da fumaça.

Em sombras se decotam tuas vestes
que descem pelo toque de meus dedos
na seda branca da tua claridade.

Esqueço as lâminas a monte na cidade
armada até os dentes de metáforas
passeando as minhas botas de solas bem cardadas.

A hora pálida na súplica da carne
inunda-se de luz,
teus músculos me envolvem pelas espáduas.




O sémen
branco no carrilhão de bronze
intumesce
na mais incontida virgindade:

Janeiro dilata-se alheio
no interior mais íntimo do óleo:
a terra desperta
no cio mais breve da semente.




Escorripichada a enunciação do dia
levíssima te anuncias filha de Atum
na longa película da sede.

Da luz só resta a elevação da penumbra
a ossatura do seu rosto
a palavra ressequida em suas cinzas metálicas.

Ecos de meus castrados beijos resistem fulvos
pelas espigas do meu corpo
onde me arranho do nascer ao pôr da vida.




O oceano cristaliza-se por brechas ocasionais
levado pela espuma:
o sonho nasce no cristal mais oculto da distância.

Jogo o pião a bombordo das alfaias
bebo o sumo das fragilidades
entre a costa e as ondas .

Descubro as algas nas grutas da intimidade
o primeiro toque acetinado nas coxas do vento.

À sombra da gávea o nosso primeiro encontro
o tempo na plenitude da sua verticalidade.




O isqueiro aceso no pino dos dedos
a música estrondosa levíssima pousada
na chama em pontas de alfinete.

A fumarada na emersão do palco
enchendo de cor os olhos da plateia
em vitrais de forças de últimas resistências.




Teu olhar a prumo incontroverso
nas minhas sensações sempre acampadas
de feira em feira em sol aberto:

anatomia de palavras
na fervura do sangue frente à vida inteira
pela cintura das águas
na linha movediça das areias;

tempestade de abismos espirais
glosada pelo vento
numa folha de lã presa por um nagalho.

A luminosidade da íris desflorada
por demasiadamente frágil
sob a investida abrupta dos anos.




De que silêncio vêm teus canais
que encheram de verdura as minhas férias
de fugas a cuidados e punhais?

Ergueste Amestel uma cidade
pelos braços que ergues tão serenos
e ficaste no tronco dessas árvores
que recebem as sombras dos segredos

De Rembrandt e Van Gogh te orgulhas
deles enchendo a tua atmosfera
sobre pilares de verde de quem passa
e se descobre em passos ancestrais

O quanto de ti trouxe nos meus rolos
coloridos de ausências no meu peito
habitará o fundo da memória
e será o querer de querer mais.




Agosto amadurece na junção dos corpos
por uma linha de água.

O relógio o carro e o carteiro
nos novelos metálicos da nuvem
passam ao lado.

Hora de águas e areias
onde o tempo se dissolve na cristalização do sal

O encontro de aves acontece no furor de apelo
adiados no fundo das urgências
de espaciais naves.




Sombras verdes
assoreadas na memória:
a viração do tempo
na destilação do vento.

Limalha vegetal
o vestígio do meu corpo:
o vinho dourado
em óleo de oliveira.




A noite defuma-se no álcool puro de noventa
na assunção do vidro.

A rotina emerge rigorosa e redonda
ao largo
sufocando o íntimo das estrelas.

As tonalidades a preto
relevam-se viscosas no reflexo total
da espurcícia no rito encantatório das serpentes.

A boca exumada me desprega até Maat
na sua volúpia de dióspiro
ainda branca pelos tornozelos.




De rua em rua menos vou sabendo
da longa caminhada no meu corpo
de fábulas cinzentas e duendes.

Em cada copo
trepam-me os olhos devassados
a descobrir o fundo
do vítreo silêncio de borras de tabernas
escorripichadas até ao colapso da claridade.

Verdejante é o sémen das palavras
abundante no mais estreito gesto
deflagrado na fundura de um grito iluminado.

É urgente emigrar no nosso corpo
e atingir o corpo do outro lado.




Estou no barro do cântaro de barro
na emoção do barro que se abre
aos dedos do oleiro afixado
no tempo de seus olhos mal rodado.

Na curva justa do braço de quem passa
vão os dedos e o barro que é meu
no silêncio de um afago inconformado
que se escapa pelo abraço em que vou eu.

No nó do barro o bojo vai da água
a escoar-se na boca de uma sede
a que chego do meu barro modelado
descobrindo-me nos nós da minha rede.




Pegadas de mocassins deixaste pelas penhas
perdidas na torreira do West
entre a tenda e o cajado de videira
tua vinícola haste de sombra
nas ondas luminosas das areias.

A descoberto
teus mamilos exsudam o leite da forragem
de inóspitas pradarias à mercê de histórias.

Uma chuvada lunar unge as tuas crias
pelas horas secas da madrugada
anunciando o óleo das colheitas
no vinho mais recente do Outono.




No despontar do corpo Maat se descobre
submissa
na contorção dos dedos iriantes da manhã
na remoção das sombras que a negavam.

Na lenta descoberta das diferenças
ele a observa
imóvel no centro das diferenças.

No ferro de leis recônditas
as primícias se desprendem incontroladas
numa incontida infusão de espuma.




O tempo nasce no teu corpo
na ressunção da nossa insónia
na liberdade das imagens
de cores virgens pressentidas.

É sábado na nossa aldeia
a mais recuada na ressumação da memória
nos sinos da tarde.

Despertam as aves nos teus seios
no cair das alças pela pele da vertigem
na ascensão total das veias.




Os últimos lábios permanecem
imóveis no cachimbo mergulhado em óleo
na tela que foi tempo de um quadro
a luz impúbere na narração do gesto.

Tonalidades talvez de intimidades
que se quis secretas
como um fresco no recato das cavernas.




Pelas olheiras diurnas me devasso
na violência da fragilidade
repuxado na rotina do cigarro
fumeiro de sonhos mal fumados.

Cerca-me o ruído do silêncio
apinhado de urgências
até o sótão de nossas casas.

Não se distingue miopia de horizonte
no clarão da velocidade.

O amanhecer na minha ausência
terá o calor do teu orvalho.




Tabuleiros de cavalos e peões
em cubos de cimento envidraçado
na persecução da euforia
nas enxúndias da noite saturada.

À escala do fuso da voragem
o estalado verniz nas garras retorcidas
dos frequentadores nocturnos
de pequenas e longas metragens.

Na faina da violência retesam-se as redes
de carregadas
denunciando a puta da ruptura.




Invoco as dobras do teu jeito
nas curvas do sofá
que escolhemos por metáfora.

Golfadas de luz nos ata
fluidos
brindados numa taça de champanhe.

Aperta-me a insegurança agora
a tua distância no meu corpo hoje
em rajadas de trovoada.

O sangue alterado atinge o furor das teclas
da máquina de escrever secas letras
que refrescas na voz em que gritaste
sob a violência então do meu apelo.




A pupila na dilatação da posse
ao toque da recolha dos instintos
na pausa consentida pelo mar.

A serenidade cresce no estertor da tarde
expurgando a sólida substância
num corpo consumido e reservado.

Limpo os cacos da eternidade
esquecidos pelo pó das prateleiras
onde me abafo
nos livros que levaram minhas horas
em assaltos sucessivos pelas órbitas.




Nn ângulo do betão
u rigor da luz da recente esquadria.

O forte pulso da urgência
sacode as pestanas da avenida.

Respira-se no interior do pus
que deflagra
num vasto clarão de epidemia.




Sobre as nossas ânsias pousa o carboneto queimado
de jactos carros e comboios
assoreando os poros da serradela antiga.

A aventura transgride as leis da narrativa
que se esperava em sol impositivo
nas nossas carnes agora interditas
ao fervor do sangue nas coxas de Setembro
o das colheitas e das vindimas.

Os corpos corporizam a harmonia das essências
em exíguos tecidos.
Uma lâmina se afia entre um beijo e um olhar.
Enclausurados
alimentámo-nos de canja de fantasia.




Afunda-se o nascente no poente
a luz emergente nos vimes do berço
na brancura das rendas e dos folhos.

Dessa imagem no corpo em que pensamos
ficou-nos a coragem que ainda temos
alguns
de falar de amor de barcos e de aves
na praça dos vendilhões do tempo.

Cardumes de carnívoros nocturnos
crescem no nosso orvalho
sufocando o sopro do nosso vento.




A cada um o seu diário
sem nada de seu
além de ausências consumidas
ou rebotalho de construções erguidas.

Retoma-se o sonho já sonhado
para esgotar a luz que ainda resta
nos cornos da vontade contra as trevas.

É inadiável a raspagem da memória
a havida e a haver
pois está contabilizado
que os sonhos não cabem na pressa de os querer.




Para que seja
a vaga se estilhaça por inteiro
no limite da sua intensidade.

Forçada renúncia
em que o deleite sucumbe na espuma
da conjugação do corpo e da ideia.

Fumo a flor do meu consumo no fundo das olheiras
em sépia de vinho
sorvido nas fugas clandestinas da madrugada.




No sopro em que respiro
vai inchando o universo pela sensualidade
do indizível truculento na passagem por um verso.

Pela boca aberta nos desfloramos
na impetuosidade do leite
na descoberto do corpo após o Éden.

Um cordão umbilical me garrota
o pescoço pressuposto da verdade
no quilómetro zero da existência:
carecemos de presenças
nas presenças que com raiva conquistamos.




A tua lei pousaste em minha boca
sequiosamente quente
no halo do teu bafo
na ascensão dos seios.

Na hora que existe em se perdendo
vindimamos a verdade
e o vinho que hoje bebo
sabe a um presente de passado sempre vago.

Não se reduz tua presença a uma ideia
à falsa solução de uma carência:
o que sinto é o rigor do que me falta:
tenho a presença corporal da tua ausência.




Na junção de agosto e das colheitas
então saberemos dos seus lábios
que um beijo não é junção de acasos
ou de regras sociais sempre suspeitas.

Saberemos de cálculos e de medos
que fizeram do corpo um cemitério
de horas que em nós foram morrendo
sem a passagem franca para o beijo;
e que aos lábios apenas chegam sombras
cia seiva de seus cursos desviados
da larga direcção aos oceanos
por agentes fardados que a secaram;

e que no beijo o corpo é por inteiro
aberto a prumo na linha de outros lábios
como a junção de agosto e das colheitas
quando o dia vai nas horas que pararam.




É imensamente branco o vinho nas fêveras de Dezembro
com um travo de clandestinidade
imensamente quente de frente para o inverno.

A sede é sangrada pela noite dentro
com todos os requebros de uma cerimónia
que se quer nervosa e imponderável.

A folia esmalta os gestos por costume baços
ou perversos
na liberdade protegida pelo álcool:
as saias vão subindo a partir dos joelhos
abertos lentamente pela crescente claridade.

Maat afunda Dezembro no seu ventre
sequiosamente aberto pelo fogo do silêncio.




Altíssimo será o teu enliço
quando algumas lágrimas mais tardias
caírem sobre o baque do meu corpo
então na total posse de si mesmo.

Algumas flores recordarão a volúpia da cor
a textura do fragmentário
apesar de tudo talvez o melhor naco da eternidade

Outro corpo dormirá com minha ausência
na novíssima incorporação de Março
serão outros os pássaros
que em si imigraram ao cair das neves.

Tudo está programado na minha azáfama diária
em que diversamente sonha de frente a humanidade.


© Joaquim Matos, Uma Noite com Maat, 1996


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