Joaquim Matos

GARE MARÍTIMA

Quando o ser humano conseguir libertar-se e conquistar tudo o que se propunha na totalidade, restar-lhe-á, somente, tudo descobrir de novo.

Carlos K. Debrito, D'o Gosto e d'o Jeito, Lisboa, Antígona, 1988




ARGUMENTO PROVISÓRIO

Vivo de luz e sombra
na órbita da névoa
sou um vagabundo;
sou de vaga e lava
por coração o mundo.



AÇORES

Se me lanço ao mar
descubro as ilhas da minha fé
açores de auréola
carregados de infinito
que me seguem
a bordo da minha ousadia.
É maior a luz que o espaço
e quero mais.
Um espaço
onde a luz já tão pequena
de tanto lucilar
me deixe como um fuso
sem saber se vale a pena.



ANCORADOURO

Hasteado
nos mastros da aventura
o coração da água ainda repousa
de tentações de espuma:
fundeadas num porto
as memórias de oceanos.
Ancorado
o largo peito da aventura
ainda se abre em vela: o hábito
de permanecer na proa
como sombras
deixadas pelo mar.



CICATRIZ

Exposta a cicatriz
na síntese da asa
que foi harpa e foi vento
na sudação das horas.
Um epitáfio de água
jorra numa vala
à sombra de uma lousa
onde há palavras de azul
que vão ficando
das mãos abertas da morte.



RELAÇÃO

Que relação
num aperto mitral
entre o que sou e o que era?
Que mar na solidão
o que traz é o que me leva
dentro cie mim
perdida a Terra?
Que frescura de tontura
que era toda
já pouca era.
Se a alma não é pequena
que há que seja dela?



ILUMINURAS

As redes envelhecem
na expectativa da tarde
carregada de reportagens.
Circular
uma corrente remexe a sede
de ferozes madrugadas.
Iluminuras de água
cordames de silêncios
retesados se esbatem:
esta a hora
que agora dá à praia.


© Joaquim Matos, Gare Marítima, Porto, 1998

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