Joaquim Matos

KAABA E OUTROS POEMAS

NA COR DO NUMERUS

Ao Nadir Afonso

Sob o Sobre, a alacromia do Número, que se traça
de traço em traço, de rigor em rigor,
no corpo da Substância.
Das dores do vento, da luz da pedra, do fogo da água,
caem as metáforas
espoliadas da origem.
Uma candeia, no giro do sol, em si procura a longitude
da Natureza, onde as ausências passam
por agulhas luminosas,
que atingem os dedos nos nós dos silêncios
e nos anéis das cópulas nocturnas.
De uma cisterna rota chega o álcool à sede, depositada
no fundo de uma excitação redonda,
de aguarelas, óleos e acrílicos.
Cede a partos geométricos a cor que se ilumina
por explosões de orgasmos na matriz do Tempo,
irresistível a espaços.
A alquimia da matemática revolve-se efervescente
e hermética no vidro das confidências.
Um acesso a iniciáticos, extremamente nus,

tirados os couros e os tecidos, se vislumbra
até ao êxtase, ignorados os códigos.
Por aqui se procura o corrimão da escadaria, que nos leve
ao anterior a nós, à brancura das rendas das imagens,
que nos deixam nos cilícios ateados da manhã
e regressam,
quando a noite é um osso em nossos ombros.
Incisões a talco, num travejamento a cores,
onde o oculto se organiza num despovoado
de estruturas metálicas sobre bocas de gelo.

Pelas gretas da composição nos apercebemos de uma grafia de luz,
suspensa de um selo intacto nos lábios do Soro.
Num Fundo sem fundo, numa Lonjura sem distância,
uma asa
imperceptível sustenta cada um dos seus quadros.
Em tais telas, o pigmento se declina
na identidade de um harpejo de fontes,
que sedentos nos deixam de pregas vaginais.
Um alaúde interpreta o sangue dos espaços
nos seus zebrados brancos,
de anis, azuis, roxos e vermelhos, em amarelos pálidos.

Ele é "Deusas do Vento"; de vaporosa nudez,
em eróticas levitações de fogo em movimento,
num traçado de dizeres de barro.
Ele é "Notre-Dame" , no seu olhar gótico,
sedento de luminosidade,
que se entrega ao Sena num reflexo expressionista.
Ele é o incêndio do sexo do ocre em suas cores
de touro possante, ou de sátiro que "O Amor" atiça.
Ele é o azul nebuloso, que ressuma de um "Buçaco" excitado
no verde dos tons da memória.
Ele é o esconso da Geometria, em imóveis e tuas de "Bruxelas":
um triângulo, matriz de superfícies e volumes
subjacentes a credos e alquimias, a estruturas seminais
da Natureza, onde o torrão, o sangue, o sopro, a luz,
se enuncia. Um círculo,
que se divide indivisível, numa revelação do Ser,
outorgando o corpo do Tempo,
que se dilata cósmica num traço.

Lenhoso, o caroço do Universo, que se revolve e se renova
na ausência de círios que iluminem as suas faces.
Um litoral de sensações quebradas
alonga o rumor dos módulos pressentidos.
Dezembro de 1920. Um berço se prepara com laços e folhos
para aromas de quercos,
na ressonância da passagem dos romanos.
Palmira e Artur, com os olhos no Artista, que ignoram,
cedem o primeiro riso às oferendas,
num cenário de neve, de rebanhos e castanhas.
No Tâmega, as flávias entumecem os seus seios.
Um cigano se atravessa no presépio a segredar um Nome,
sem saber que será célebre.
Nem Ricardo Gil da Costa o saberia, mais tarde,
na sua "sessão espírita". Oculta estava a sina
nas linhas das mãos irrequietas,
que arranhariam Corbusier na sua patina.
Com seu raio, Júpiter estoura as vidraças da arquitectura,
estilhaçando conformismos.
Destes e de outros, hoje, quem o reconheceria,
sob a prata dos cabelos e da barba? Em que linguagem
se entenderiam, yue não fosse a da discórdia, a da inveja?
E são eles, no entanto, um quinhão da memória,
de que se alimenta, possivelmente, uma saudade
perecível, mas no sentir eterna.
Uma Laura matutina o surpreenderá a incendiar a alma
com as cores colhidas das begónias,
das orquídeas e das gipsófilas, saturadas de álcool.

Entre Chaves e Cascais, se apuram tais rendas
nas telas carregadas de luminosidade geométrica.
Entre a urze e a concha, a baga e a vaga,
entre dois solstícios de pontas, desdobram-se os dedos
do Pintor de leis, que abortam cromáticas.
Sentada num mocho, olha-me Agustina, a indagar de mim,
preso nos quadros.
No seu ar indecomponível, Vasco mostra-se sereno,
a dialogar consigo, evitando intimidades.
Rebordão mira os visitantes, garatujando notas,
nos seus olhos, para futuras prosas contundentes.
Um rumor de vitrais de catedral perscruta-se em abertas de luz
atirada das paredes,
como se o habitasse a espada romana de um Tâmega.
O meu primeiro encontro, este, com a obra do flaviense,
no Porto, na Galeria Dois.
A ponta de um novelo,
que seria de cor e palavra num debuxo de amizade.
Aos círculos, aos quadrados, aos triângulos,
do fibroso de Codeçais, cederia um espaço
de uma existência, que procuro, que amealho,
como sustento de uma reforma que será cósmica.

© Joaquim Matos, Kaaba e Outros Poemas, Estarreja, 1999.


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