D. Duarte

D. Duarte (1391-1438) nasceu em Viseu. Era filho do rei D. João I, Mestre de Avis, e de D. Filipa de Lencastre. Foi o décimo primeiro rei de Portugal e o segundo da segunda dinastia, tendo ascendido ao trono com a morte de seu pai em 1433. D. Duarte foi um rei dado às letras, tendo fomentado a tradução de autores latinos e italianos e organizando uma importante biblioteca particular. Ele próprio nas suas obras mostra conhecimento dos autores latinos.

Obras: Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa) (edição diplomática de João José Alves Dias, 1982); Leal Conselheiro o Qual Fez Dom Eduarte Rey de Portugal e do Algarve e Senhor de Cepta (ed. organizada por Joseph M. Piel em 1942; ed. com a grafia actualizada de João Morais Barbosa, IN-CM, 1982; ed. organizada por Maria Helena Lopes de Castro, IN-CM, 1998); Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela Que Fez El-Rey Dom Eduarte (1ª ed. em 1842 organizada por J. I. Roquete; 2ª ed. em 1843; 3ª ed. em 1854; 4ª ed. ed. crítica organizada por J. M. Piel, 1944; reedição facsimilada em 1986 pela IN-CM).




LEAL CONSELHEIRO

CAPÍTULO RVIII

POR QUE OS AMORES FAZEM MAIS SENTIMENTO NO CORAÇÃO QUE OUTRA BENQUERENÇA

Os amores no coração fazem mais rijo e continuado sentimento que outra benquerença, por estas razões:

Primeira, por a contrariedade do entender que os contradiz, mostrando de uma parte quanto mal por eles se faz, defendendo que se não faça, e doutra o desejo que muito com eles reina, requerendo com grande afincamento que persevere no que há começado, fazem uma porfia que continuadamente dá grã pena de espírito, afã e cuidado, do que mui amiúde os namorados se queixam, a qual se não pode passar sem rijos sentimentos.

Segunda, porque rijo, desordenado e continuado desejo, ciúmes e vanglória fazem no coração grande sentimento. E porquanto estes reinam mais com amores que com outra benquerença, porém fazem maior sentido.

Terceira, porque assim como dizem as cousas costumadas não fazerem tanto sentir, por esse fundamento aquelas que se abalam convém que o acrescentem. E pois que os amores nunca dão repouso por fazerem contentar de mui pequeno bem, assim como de uma boa maneira de olhar, gracioso rir, ledo falar, amoroso e favorável jeito, e de tal contrário se assanham, tomam suspeita, caem em tristeza, filhando tão rijo cuidado por uma cousa de nada, como se tocasse a todo seu bom estado, que o não deixa enquanto dura pensar em al livremente, mas como aquele que tem véu posto ante os olhos vê as cousas, dessa guisa ele pensa em todas outras fora do seu fundamento por cima daquele cuidado que lhe faz parecer todas as folganças nada, não havendo aquela que mais deseja. E se a cobrasse, que tristeza nunca sentiria, o que é tão errado pensamento como bem demonstram muitos exemplos, os quais não quer consentir que se creiam, posto que claramente de demonstrem, pensando que nunca semelhante como ele sentiu que o contrário pudesse sentir, o que adiante as mais das vezes se demonstra mui desvairado do que parece. E por aqui se pode bem conhecer, posto que não caia em outro erro, quanto perigo é trazer um tal cuidado assim reinante em ele, que o não deixe pensar em cousa livremente sem haver dele lembramento, e como constrangido cuidar em qualquer outro feito por pesado que seja, para o coração no que tais amores lhe mandam quer embargar seu sentido, desamparando todos os outros por necessários que sejam. E por estas razões convém que traga e faça maiores sentimentos que outra maneira de amar.

A boa amizade de entre marido e mulher e outros verdadeiros amigos disto sentem o contrário, porque, quanto ao primeiro, não passam tal contrariedade de entre o entender e vontade, porque ambos são dum acordo; quanto praz ao coração de amar, tanto assim julga o entender que é bem de se fazer.

Ao segundo, desejo rijo não sentem, porque vivem em deleitação e contentamento; tais ciúmes não devem haver por a grande segurança que um do outro, sem algum temor, sempre tem. Se disserem que muitos casados que muito se amam têm ciúmes, respondo como já disse que o amor dos casados participa com todas maneiras de amar. E quanto mais é sobre amores por desejo de coração que por conhecimento de virtude segura de ambas as partes, a qual se requer na real maneira de amizade, os semelhantes senti-los-ão, porque ainda que muito se amem, não chegam a verdadeiro estado dos mui bons amigos, entre os quais não convém alguma suspeita de erro ou falecimento que um em contra do outro a seu cinte jamais nunca faz, nem quererá fazer, antes vêm muitas da condição revessada de cada um ou falecimento de bondade e de boa vontade que no outro vê ou suspeita.

Mas entre aqueles casados que esta mui perfeita maneira de amar afirmada por grande experiência bom conhecimento que um do outro tem havida, os ciúmes são de todos escusados ou tão levemente sentidos que a cada um não fazem alguma torvação ou empacho.

Vanglória não recebem, mas real e verdadeiro prazer em que os semelhantes continuadamente vivem, nem do que um pelo outro faz filha desordenado prazer, porque já tem determinado que aquilo seu bom amigo faria, mas dando graças a Nosso Senhor, confirmando-se em sua intenção e vontade se alegra temperadamente, segundo tal feito requer, nem traz cativo seu cuidado na maneira suso escrita que fazem os amores, mas livremente pensam no que lhe praz, porque tal amizade vem por especial graças de Nosso Senhor, e por sua mercê com doblez virtude se mantém. E porém não pode dar pena nem torvação, mas prazer e liberdade que vem do contentamento e segurança.

E se algum sente trabalho, ou amiúde se torva por amor que tenha dalguma pessoa, se não é por manifesto mal, perigo ou perda que vem a ele ou a quem assim ama, saiba que tal amor é por desordenada paixão ou falecimento dalguma das partes, e não de amizade que por virtude, acordo de razão e bom entender de ambos convém ser confirmado, os quais sem causa direita não dão nem consentem padecer, por assim amar, suspeita, nojo, tristeza ou algum empacho, nem cativamento de cuidado, mas outorgam liberdade. E ainda para todas cousas direitas na boa andança, e contrária, segundo diz Túlio, tanto dela nos logramos, e para tantas cousas, como da água e do fogo.

E porém, ainda que os amores tragam os sentimentos suso ditos e façam obrar por eles cousas mui revessadas, não se creia porém que com eles mais amam, porque o verdadeiro amor com benquerença e vontade de bem fazer mais está na direita amizade ca em eles, cujo fundamento, como disse, é um desordenado desejo de ser benquisto e cumprir vontade por continuada afeição, sem outro regimento de bom entender nem virtude. E se me disserem que todos não são tais, eu sei bem que é verdade, porque alguns se misturam com a maneira da amizade, como fazem os bons casados ou que razoadamente esperam de ser, e alguns poucos que sempre querem guardar virtude, mas daqueles que digo que nascem de sandeu desejo, sem bom fundamento, os quais são muito para deles guardar, olhando aquele exemplo do Rei Salomão que já disse, e outros semelhantes que cada um dia se passam.

Disto mais não perlongo, porque a abastança do que sobre elo se pode bem escrever e falar me faz não prosseguir tão grande leitura como destas maneiras de amar se recresceria; desi porque se foram bem reguardadas aquelas práticas que guardávamos ao dito Rei, meu senhor, cuja alma Deus haja, que adiante vão escritas, se pode ver alguma parte do que delo entendo. Mas aquesta pouco escrevi, porque me parece que não hão muito delas bom conhecimento, e algum parte por isto que escrevo o poderão haver. E se virem os livros que dela tratam, e aquela maneira de nosso serão mais cumpridamente avisados.

Porém dou este avisamento que não pense algum que possa bem achar pessoa tão perfeita para amar que seja fora de todos os falecimentos, e em virtudes, condição, maneira de viver, linhagem, idade, acordamento de vontades e boa disposição, mas onde o principal bem está, as pequenas mínguas devem ser tão escurentadas que se não sintam, ou pareça que não queriam que se mudasse, duvidando de perder alguma cousa do principal que mais prezam.

Isto se deve fazer como faz Nosso Senhor, que posto que a direita carreira da perfeição seja tão estreita, que por mui poucos é seguida, porém vendo bom propósito e tenção todos traz a porto com saúde, dizendo que por muitos caminhos o podemos servir. Cada uns com aspereza e rigor lhe fazem serviço, porque a isto por sua natureza são inclinados, os quais usam dela com tal temperança que poucas vezes falecem, e muitas bem obram, o que outros não poderiam nem saberiam assim fazer. E semelhante fazem alguns com brandeza, buscando assim boas maneiras em tudo quanto fazem, que são servidos, obedecidos e temidos de tal guisa que castigam, emendam e corrigem como se ásperos fossem, e muitas vezes mais certo e seguramente, como fazem as cordas de lã, posto que brandas pareçam, que não deixam bem de atar. E assim das pessoas que amamos, pois homens e mulheres são, perfeição não busquemos, mas sejamos contentes do razoado com lealdade e boa vontade. E não filhemos que melhor ama quem mais sente, como fazem os namorados, mas aqueles que mais realmente mantêm e guardam as boas leis da amizade, o que se não pode bem conhecer sem perlongar conversação em feitos desvairados, por os quais se diz que se convém comer com alguém, ante que o bem conheçam, um moio de sol. E como isto deve ser entendido, no capítulo adiante escrito se declara.

Da ed. de João Morais Barbosa, IN-CM.


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