D. Duarte

LIVRO DE ENSINANÇA DE BEM CAVALGAR TODA SELA

(Extracto)

Em nome de nosso senhor Jesu Cristo, com sua graça e da virgem Maria, sua. muy sancta madre, nossa senhora: Coméçasse o livro da enssynança de bem cavalgar toda sela, que fez Elrrey dom Eduarte de Portugal e do Algarve, e senhor de Cepta, o qual começou em seendo Iffante.

Em nome de nosso senhor Jesu Cristo: Segundo he mandado que todallas cousas façamos, ajudando aquel dito que de fazer livros nom he fim, por algüa meu spaço e folgança, conhecendo que a manha de seer boo cavalgador he hüa das principaaes que os senhores cavalleiros e scudeiros devem aver, screvo algüas cousas per que seran ajudados pera a melhor percalçar os que as leerem com boa voontade e quiserem fazer o que per mym em esto lhes for declarado. E ssaybham primeiramente que esta manha mais se acalça per naçom, acertamento de aver boas bestas e aazo contynuado dandar em ellas, morando em casa e terra que haja boos cavalgadores e prezem os que o ssom, que por saberem todo o que sobr’esto aquy screvo nem poderem screver os que em ello mais que eu entendem, nom avendo deilo boa, contynuada husança, com as outras ajudas suso scriptas. Mas esto faço por ensynar os que tanto nom souberem, e trazer em renembrança aos que mais sabem as cousas que lhes bem parecerem, e nas fallecidas enmendando no que screvo a outros podeerem avysar. E os que esta manha quiserem aver, helhes necessario que ajom as tres cousas principaaes per que todallas outras manhas se acalçom, as quaaes som estas: grande voontade, poder abastante, e muyto saber. De cada hüa direi apartadamente o que me parece, [e] ainda que o poder e querer nom sejam verdadeiramente pera ensynar, por que se gaançom per natureza e graça special em cada hüa cousa mais que por ensynança, screvo sobr’elo por espertar o desejo e mostrar o poder que geeralmente avemos, se voontade e saber ouvermos. Screvendo esto, algtíiis disserom que nom deveria filhar tal cuidado quem outros tantos e tam grandes sempre tem; e desy que esta manha cada htiii per sy a deprende, e porem era scusado sobr’ello screver. A esto respondo por me scusar e dar a outros que taaes obras quiserem fazer regra per a maneira e proposito que sobr’ello tenho, conssiirando o que lii do coraçom do homem, que he semelhante aa moo do moynho, a qual botada per força das auguas nunca cessa de seu andar, e tal farinha dá como a ssemente que mooe. E o coraçom que assy faz obrar como lhe conssentem que mais pensse, e falecendo de hoos cuydados no que he forte de o sempre teer, nom podendo estar que nom cuyde, torna ligeiramente aos maaos, que som nacimento de toda maldade, se algüas vezes lhe nom dam outros em que possa, avendo spaço e folgança, sem mal penssar seer embargado. E ssentyndo esto o vailente emperador Jullyo Cesar, por guardar e reteer seu cuydado, por. muyto que ouvesse de fazer, sempre quando avya spaço seguya o estudo, e algüas obras de novo screvya. E veendo que meu coraçom nom pode sempre cuidar no que segundo meu estado seria melhor e mais proveitoso, algüus dias, por andar a monte, caça e camynhos, ou desembargadores nom chegarem a mym tam cedo, estou oucioso, ainda que o corpo trabalhe, por nom filhar em tal tempo algüu cuidado que empeecymento me possa trazer, e por tirar outros de que me nom praz, achey por boo e proveitoso remedio algüas vezes penssar e de mynha niaao screver em esto por requirymento da voontade e folgança que em ello sento; ca doutra guisa nunca o faria, por que bem sey quanto pera mym presta fazello ou leixallo de fazer. Ao[s] que dizem que esta manha sem livro se deprende, digo que he verdade. Mas entendó que a moor parte de todos acharám grande vantagem em leerem bem todo esto que screvo. E por que nom sey outro que sobr’ello geeralmente screvesse, me praz de poer esta scyencya primeiro em scripto, e antremety algüas cousas que perteecem a nossos custumes, ainda que tam aproposito nom venham, por fazer a algüus proveito, posto que a outros pareça sobejo. E conhecendo que o ssaber dos senhores segundo razom em hüa soo manha nom pode seer muyto avantejado, por certo he que a virtude espalhada he mais fraca que se for ajuntada, mas por averem converssaçom com muytas pessoas de stados e saberes desvairados, de mais cousas que outros, avendo entender natural, razoadamente devem saber: porem a voontade me requere – que algüas ouvy e per mym entendo – que screva, por sse dellas a meu juizo poderem filhar boos avysamentos sem nem hüa perda. E os que esto quiserem bem aprender, leamno de começo pouco, passo, e bem apontado, tornando algüas vezes ao que ja leerom pera o saberem melhor. Ca se o leerem ryjo e muyto juntamente como livro destorias, logo desprazerá e se enfadaróm del, por o nom poderem tam bem entender nem renembrar ; por que regra geeral he que desta guisa se devem leer todolios livros dalgüa sciencia ou enssynança.

AQUY SE COMEÇA A PRIMEIRA PARTE DESTE LIVRO,

QUE TRAUTA DA VOONTADE

Capitullo primeiro que falla das razões per que os cavalleiros e scudeiros devem de seer boos cavalgadores por o bem e honrra que se de tal manha segue.

Por que todoilos homëes naturalmente desejam sua honrra, proveito e boo prazer, me parece que todollos senhores cavalleiros e scudeiros esta manha devem muyto desejar, visto em como della estes bëes veem aos que a bem pratycam. E fallando da honrra e proveito, longo seria de contar quantos em as guerras delrrey, meu senhor e padre, cuja alma deos aja, e em nas outras ham percalçado grandes famas, estados e boas gaanças por serem muyto ajudados desta manha. E nom he contra razom, por que hüa das mais principaaes cousas de que se mais ajudam os que andam em ella, (e) som boos cava]los. E por tanto bem se pode entender a grande vantagem que tëe os boos cavalgadores nos feitos de guerra, se ouverem as outras bondades razoadamente, dos que som desta manha mynguados, posto que nas outras sejom seus iguaaes; pois he hüa das melhores que os guerreyros devem a aver. E em boos feitos muy pouco pera ssy se aproveitam de boos cavallos aquelles que os bem nom sabem cavalgar, segundo compre pera aquel feito em que delles se ham de sservyr. Ca som algüis boos cavalgadores dhúas sellas, que o nom som doutras. E ainda taaes hy ha que, seendo vystos em roupas sobre cavallos, que sollamente os corressem, per aquelles que o bem conhecem seriam julgados que sabyam pouco de cavalgar, e elles armados de justa, nom poderiam verdadeiramente seer prasmados. E assy de cada hüa cousa que ajom de fazer a cavallo, fazem htiits grande vantagem sobre os outros segundo per seu natural geito forom enclynados e ouverom aazo de grande custume e boa enssynança. Mas o cavalleiro ou scudeiro que dello pouco souber, bem deve seer julgado dos que o por tal conhecerem que lhe myngua hüa das manhas de que muyto ajudados som os que a sabem como devem. Por que ella faz aalem das outras vantagëes grande acrecentamento em boos coraçõoes. E esto he provado pello que veemos dos moços e doutros homëes de tam fraca desposiçom, que claramente confessam que a pee se nom sentem abastantes pera fazer o que os bõos e vallentes fazem, e de cavallo, se desta manha som bem sabedores e boa voontade tëe, logo entendem que sse avantejaróm sobr’elles, ainda que boas voontades tenham, se os della mynguados conhecerem. E assy a ssentem verdadeiramente em muytas outras cousas que pera feitos de guerra som necessarias. E fázelhes mais sempre trazer boos cavallos, e esto por se entenderem delles ajudar e bem os conhecer e manteer, e acrecentar em boos custumes e mvnguar em grandes tachas, que per outros, que o bem fazer nom souberem, seriam acrecentados. E trazendoos taaes sempre, está em razom de averem honrra e proveito em grande avantagem sobre outros que taaes nom os ouverem. E assy he visto per speriencia claramente as mais das vezes per aquelles que em taaes feitos despendem gram parte de suas vidas. E porem quantas avantagëes recebem em nas guerras os que boos cavallos em ellas trazem, e bem os sabem cavalgar, a todollos que em ella andarom e os grandes e boos feitos passados vyrom e ouvyrom, he bem em conhecimento. E por tanto leixo de mais sobr’ello screver, por muyto nom perlongar.

Capitullo segundo: da ajuda que recebem nas manhas da pai.

No tempo da paz recebem os que desta manha husam grandes vantagëes em justar, tornear, em jugar as canas, reger algüa lança e sabélia bem lançar. E assy em todas outras manhas que a cavallo se fazem, que som muyto husadas em casa dos senhores. Por que em todo, segundo o que naturalmente ham percalçado de cada hüa dellas, assy recebem por seerem boos cavalgadores vantagëes sobre os que taaes nom som, ainda que per saber delles e desposyçom dos corpos iguallados sejam. E pera seerem boos monteiros, lhe faz conhecimento grande avantagem em poderem melhor sofrer os grandes encontros e seerem soltos e avysados pera bem ferir, e fortes em suas sellas, e sabedores em sofrerem bem seus cavallos e saberemsse delles ajudar onde e como compre, e se guardarem de muytos perigoos. Todo esto e outras cousas, que na terceira parte serom declaradas, som muyto necessarias de saberem os que boos monteiros desejom seer. Dálhes mais avantagem de bem parecer, e os senhores terem delles, por veerem que som boos cavalgadores, algüa parte de boa presunçom pera feitos de guerra e doutras boas manhas, que muyto val, e os prezam por seerem seguydos; os outros em teerem boos cavallos e os saberem bem cavalgar e correger e aver em sua casa muytos e boos cavalgadores e bem emcavalgados, de que a maior parte dos senhores muyto praz. E ainda lhe pode prestar por se demostrarem, onde quer que forem, que som scudeiros e podem logo fazer tal manha per que sejam preçados e conhecidos que som homëes pera feito e criados em boa conta, se os outros geitos razoadamente em elles vyrem.

Capitullo III

Do que se pode dizer contra o proveito que disse que desta manha se sse guia, com sua resposta.

Nom sse deve oolhar o que algüus contra esto poderóm dizer, que vyrom muytos seer boos cavalgadores, e pouco por ello prezados; por que esta manha per ssy soo nom he soficiente pera fazer algüu muyto valer, como fazem outros mesteres per que os homëes vivem, salvo se for corretor ou quiser vender cavallos, criandoos e os fazendo; por que as cousas principaaes encamynhadores com a graça de deos pera os homëes averem todo bem em esta vyda e na outra, som estas: Averem boas voontades de fazer todallas cousas virtuosamente e lealmente a deos e aos homëes, e teerem boa e razoada fortelleza do corpo e do coraçom, per que averám poder de cometer, contradizer e soportar todas cousas fortes e contrairas, e sseerem sabedores per boas speriencias e natural entender das cousas que perteecem a sseus estados e oficios, per que ajam saber certo e verdadeiro do que devem querer e fazer obrar, contradizer e soportar em sy e nas obras de fora. E aquestas som as vertudes per ssy soficientes pera perfeitamente fazerem vïir a grande bem os que as ouverem, e outras manhas nom, salvo em quanto forem destas acompanhados. Mas aquel que destas tres for desemparado, nom espere por bem cavalgar, justar, dançar, nem por outra manha que assy como cavalleiro ou scudeiro muyto possa valler; bem poderá seer que vallerá como homem servyçal de mester ou jogral. E aquestes quanto mais destas tres vertudes principaaes ouverem, tanto melhores som. E os que tëe as principaaes, som muytas vezes ajudados dalgüas destas manhas somenos. E todos se devem trabalhar pera saberem muitas dellas, segundo o estado, hidade e desposiçom em que forem, por o grande proveito e folgança que dellas muytas vezes percalçom e filham os que dellas sabem husar, reguardando geytos e tempos segundo compre pera se bem fazerem.

Capitulo IV

Da folgança que se daquesta manha segue.

Foígança da razom muyta devem daver os que nesta manha s forem avantejados, por que veemos que todoilos que fazem melhoria em algüas de pouco proveito, assy como lançar barra, e saltar a pees juntos, e outras semelhantes, folgam de os louvarem que sobre outros som avantejados. E sse estes naturalmente de .tal louvor se allegrom, que farom os que esta sabem davantagem, que antre as outras he tam estremada pera os que pertëece. E ainda geeralmente he em conhecymento que as boas e ledas bestas alegram muyto os coraçõoes dos que andam em ellas, se as sabem razoadamente cavalgar. E assy concludindo o que primeiramente disse: quem vyr estes bëes suso dictos e folgança que se desta manha segue, e outros muytos que mais largamente poderóm dizer se tal for que lhe pertëeça, bem tem razom de a muyto desejar. E ssobr’esta parte screvy tanto por enduzer os que a leerem que ajam gram voontade, por que, se a ouverem, ligeiramente averom o poder e saber que pera seerem boos cavalgadores lhes sera necessario. E ssomariamente de homem a que convem teer boas bestas, e as saber bem cavalgar, se sseguem estas seis avantagëes: A primeira, seer mais prestes pera servir seu senhor, e acudir a muytas cousas que lhe acontecer poderóm de sua honrra e proveito. A ssegunda, andar folgado. A terceira, honrrado. A quarta, guardado. A quinta, seer tym[u]do. A ssexta, ledo. A sséitema, acrecenta m[a]yor e melhor coraçom. E aquesto se entende que averom estes bëes muito mais que se tevessem maas bestas, e as soubessem mal cavalgar, avendo as outras cousas igualmente pera sentirem estes proveitos suso scriptos. E aalem desto muito he de prezar esta manha, por que dhomem säao, que aja boa e ryja voontade, e sobejo nom engorde, tarde ou nunca se perde, como fazem as mais de todallas outras. E a quem boo geito tever de sse trazer grande avantagem, lhe dara delongadamente parecer bem quando for em cavallo, ou qual quer outra razoada besta com perteecente corregimento.

ACABASSE A PRIMEIRA PARTE, DA VOONTADE,

E COMEÇASSE A SSEGUNDA: DO PODER

Capitullo primeiro

Do poder do corpo e da fazenda.

Quanto pertëece ao poder abastante que devem aver os cavalgadores, se departe em duas partes: Hüa de desposiçom do corpo, e outra da fazenda. Do corpo penssom algüus por fraqueza, ou velhice, ou gordura que nom poderóm seer boos cavalgadores, e porem perdem a voontade e leixam daprender o que pera ello saber lhes he necessario. E ssom conhecidamente os mais em esto enganados, e assy em outras muytas cousas boas que por esta desasperaçom perdem, que, se boa sperança ouvessem, cobrar poderiom. E podem razoadamente seer fora de tal teençom os que filharem este cuydado; penssem que syntem em sy por que duvydam de poderem percalçar esta manha, e sse for fraqueza ou velhice ou algüa outra cousa, logo acharóm outros mais fracos e mais velhos que a bem sabem. E assy ygualmente conheceróm a moor parte dos homëes nos outros falimentos que, se teverem algüus, verom outros que os tëe tamanhos e mavore s, que non som por elles tanto embargados que grande parte della nom ajam. E quando virem que os taaes como elles e mais derribados em seus fallycimentos a percalçam e husam della assaz razoadamente, bem devem conhecer que, se voontade e saber ouverem, que o poder nom lhes fallecerá, pois podem os que pera ello menos tëe que elles. E bem pensso que se tal teençom tevessem todos, que poucos seriam que per myngua da desposiçom do corpo razoadamente boos cavalgadores leixassem de sseer. Nom digo boos por avantejados, por que tenho que em toda terra acharóm bem poucos que ajam todallas meestrias que o stremado cavalgador deve aver segundo algüa parte por mym sera declarado. Mas abasta que sobre as bestas em feyto e parecer sejam homëes, e nom bestas mais sem proveito que ellas.

Da edição crítica de Joseph M. Piel, Lisboa, 1944.

Voltar à página inicial de D. Duarte