Almeida Garrett

VIAGENS NA MINHA TERRA (extracto)

Capítulo I
Capítulo II
Capítulo VIII
Capítulo XI
Texto Integral



Qu'il est glorieux d'ouvrir une nouvelle carrière et de paraître tout-à-coup dans le monde savant, un livre de découvertes à la main, comme une comète inattendue étincelle dans l'espace!

X. DE MAISTRE


CAPÍTULO I

De como o autor deste erudito livro se resolveu a viajar na sua terra, depois de ter viajado no seu quarto; e como resolveu imortalizar-se escrevendo estas suas viagens. – Parte para Santarém. – Chega ao Terreiro do Paço, embarca no vapor de Vila Nova; e o que aí lhe sucede. – A Dedução Cronológica e a Baixa de Lisboa. – Lord Byron e um bom charuto. – Travam-se de razões os Ílhavos e os Bordas-d'Água: os da calça larga levam a melhor.

Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, (1) de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como Sampetersburgo – entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.

Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de Estio, viajo até à minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos entulhos do Cais do Sodré. E nunca escrevi estas minhas viagens nem as suas impressões: pois tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a minha pena: pobre e soberba, quer assunto mais largo. Pois hei-de dar-lho. Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há-de fazer crónica.

Era uma ideia vaga, mais desejo que tenção, que eu tinha há muito de ir conhecer as ricas várzeas desse Ribatejo, e saudar em seu alto cume a mais histórica e monumental das nossas vilas. Abalam-me as instâncias de um amigo, (2) decidem-me as tonterias de um jornal, que por mexeriquice quis encabeçar em desígnio político determinado a minha visita (3).

Pois por isso mesmo vou: – pronunciei-me. São 17 deste mês de Julho, ano de graça de 1843, uma segunda-feira, dia sem nota e de boa estreia. Seis horas da manhã a dar em S. Paulo, e eu a caminhar para o Terreiro do Paço. Chego muito a horas, envergonhei os meus madrugadores dos meus companheiros de viagem, que todos se prezam de mais matutinos homens que eu. Já vou quase no fim da praça, quando oiço o rodar grave mas pressuroso de uma carroça d'ancien régime: é o nosso chefe e comandante, o capitão da empresa, o Sr. C. da T. (4) que chega em estado.

Também são chegados os outros companheiros : o sino dá o último rebate. Partimos. Numa regata (5) de vapores o nosso barco não ganhava decerto o prémio. E se, no andar do progresso, se chegarem a instituir alguns ístmicos ou olímpicos para este género de carreiras – e se para elas houver algum Píndaro ansioso de correr, em estrofes e antístrofes e epodos atrás do vencedor que vai coroar de seus hinos imortais – não cabe nem um triste minguado epodo a este cansado corredor de Vila Nova. É um barco sério e sisudo que se não mete nessas andanças.

Assim vamos de todo o nosso vagar contemplando este majestoso e pitoresco anfiteatro de Lisboa oriental, que é, vista de fora, a mais bela e grandiosa parte da cidade, a mais característica, e onde, aqui e ali, algumas raras feições se percebem, ou mais exactamente se adivinham, da nossa velha e boa Lisboa das crónicas. Da Fundição para baixo tudo é prosaico e burguês, chato, vulgar e sensabor como um período da Dedução Cronológica, aqui e ali assoprado numa tentativa ao grandioso do mau gosto como alguma oitava menos rasteira do Oriente.

Assim o povo, que tem sempre melhor gosto e mais puro do que essa escuma descorada que anda ao de cima das populações, e que se chama a si mesma por excelência a Sociedade, os seus passeios favoritos são a Madre de Deus e o Beato e Xabregas e Marvila e as hortas de Chelas. A um lado a imensa majestade do Tejo em sua maior extensão e poder, que ali mais parece um pequeno mar mediterrâneo; do outro a frescura das hortas e a sombra das árvores, palácios, mosteiros, sítios consagrados todos a recordações grandes ou queridas. Que outra saída tem Lisboa que se compare em beleza com esta? Tirado Belém, nenhuma. E ainda assim, Belém é mais árido. Já saudámos Alhandra, a toireira; Vila Franca, a que foi de Xira, e depois da Restauração, e depois outra vez de Xira, quando a tal restauração caiu, como a todas as restaurações sempre sucede e há-de suceder, em ódio e execração tal que nem uma pobre vila a quis para sobrenome.

– «A questão não era de restaurar nem de não restaurar, mas de se livrar a gente de um governo de patuscos, que é o mais odioso e engulhoso dos governos possíveis.»

É a reflexão com que um dos nossos companheiros de viagem acudiu ao princípio de ponderação que eu ia involuntarimente fazendo a respeito de Vila Franca.

Mas eu não tenho ódio nenhum a Vila Franca, nem a esse famoso círio que lá foi fazer a velha monarquia. Era uma coisa que estava na ordem das coisas, e que por força havia de suceder. Este necessário e inevitável reviramento por que vai passando o mundo, há-de levar muito tempo, há-de ser contrastado por muita reacção antes de completar-se...

No entretanto vamos acender os nossos charutos, e deixemos os precintos aristocráticos da ré: à proa, que é país de cigarro livre.

Não me lembra que lord Byron celebrasse nunca o prazer de fumar a bordo. É notável esquecimento no poeta mais embarcadiço, mais marujo que ainda houve, e que até cantou o enjoo, a mais prosaica e nauseante das misérias da vida! Pois num dia destes, sentir na face e nos cabelos a brisa refrigerante que passou por cima da água, enquanto se aspiram molemente as narcóticas exalações de um bom cigarro da Havana, é uma das poucas coisas sinceramente boas que há neste mundo.

Fumemos!

Aqui está um campino fumando também gravemente o seu cigarro de papel, que me vai emprestar lume.

– «Dou-lho eu, senhor...» acode cortesmente outra figura mui diversa, cujas feições, trajo e modos singularmente contrastam com os do moçárabe ribatejano.

Acenderam-se os charutos, e atentámos mais devagar na companhia em que estávamos.

Era com efeito notável e interessante o grupo a que tínhamos chegado, e destacava pitorescamente do resto dos passageiros, mistura híbrida de trajos e feições descaracterizadas e vulgares – que abunda nos arredores de uma grande cidade marítima e comercial. – Não assim este grupo mais separado com que fomos topar. Constava ele de uns doze homens ; cinco eram desses famosos atletas da Alhandra que vão todos os domingos colher o pulverem olympicum da praça de Sant'Ana, e que, à voz soberana e irresistível de: à unha, à cernelha!... correm a arcar com mais generosos, não mais possantes, animais que eles, ao som das imensas palmas, e a troco dos raros pintos por que se manifesta o sempre clamoroso e sempre vazio entusiasmo das multidões. Voltavam à sua terra os meus cinco lutadores ainda em trajo de praça, ainda esmurrados e cheios de glória da contenda da véspera. Mas ao pé destes cinco e de altercação com eles – já direi porquê – estavam seis ou sete homens que em tudo pareciam os seus antípodas.

Em vez do calção amarelo e da jaqueta de ramagem que caracterizam o homem do forcado, estes vestiam o amplo saiote grego dos varinos, e o tabardo arrequifado siciliano de pano de varas. O campino, assim como o saloio, têm o cunho da raça africana; estes são da família pelasga: feições regulares e móveis, a forma ágil.

Ora os homens do Norte estavam disputando com os homens do Sul: a questão fora interrompida com a nossa chegada à proa do barco. Mas um dos Ílhavos – bela e poética figura de homem –, voltando-se para nós, disse naquele seu tom acentuado: «Pois aqui está quem há-de decidir: vejam nos senhores. Eles, por agarrar um toiro, cuidam que são mais que ninguém, que não há quem lhes chegue. E os senhores, a serem cá de Lisboa, hão-de dizer que sim. Mas nós...» – «Nenhum de nós é de Lisboa: só este senhor que aqui vem agora.»

Era o C. da T. que chegava.

– «Este conheço eu; este é dos nossos!» bradou um homem de forcado, assim que o viu: «Isto é um fidalgo como se quer. Nunca o vi numa ferra, isso é verdade; mas aqui de Valada a Almeirim ninguém corre mais do que ele por sol e por chuva, e há-de saber o que é um boi de lei, e o que é lidar com gado.» – «Pois ouçamos lá a questão.»

– «Não é questão», tornou o Ílhavo: «mas, se este senhor fidalgo anda por Almeirim, para Almeirim vamos nós que era uma charneca o outro dia, e hoje é um jardim benza-o Deus! – mas não foram os campinos que o fizeram, foi a nossa gente que o sachou e plantou, e o fez o que é, e fez terra das areias da charneca.»

– «Lá isso é verdade.»

– «Não, não é! Que está forte habilidade fazer dar trigo aqui aos nateiros do Tejo, que é como quem semeia em manteiga. É uma lavoura que a faz Deus por Sua mão, regar e adubar e tudo – e o que Deus não faz, não fazem eles, que nem sabem ter mão nesses mouchões co plantio das árvores: só lá por cima é que algumas têm metido, e é bem pouco para o rio que é, e as ricas terras que lhes levam as enchentes.» – «Mas nós, pé no barco pé na terra, tão depressa estamos a sachar o milho na charneca, como vimos por aí abaixo com a vara no peito, e o saveiro a pegar na areia por não haver água... mas sempre labutando pela vida.»

– «A força é que se fala» tornou o campino, para estabelecer a questão em terreno que lhe convinha: «A força é que se fala: um homem do campo que se deita ali à cernelha de um toiro que uma companhia inteira de varinos lhe não pegava, com perdão dos senhores, pelo rabo!...»

E reforçou o argumento com uma gargalhada triunfante, que achou eco nos interessados circunstantes que já se tinham apinhado a ouvir os debates.

Os Ílhavos ficaram um tanto abatidos; sem perderem a consciência da sua superioridade, mas acanhados pela algazarra.

Parecia a esquerda de um parlamento quando vê sumir-se, no burburinho acintoso das turbas ministeriais, as melhores frases e as mais fortes razões dos seus oradores.

Mas o orador ílhavo não era homem de se dar assim por derrotado. Olhou para os seus, como quem os consultava e animava, com um gesto expressivo, e voltando-se a nós, com a direita estendida aos seus antagonistas:

– «Então agora como é de força, quero eu saber, e estes senhores que digam, qual é que tem mais força, se é um toiro ou se é o mar.»

– «Essa agora!...»

– «Queríamos saber.»

– «É o mar.»

– «Pois nós que brigamos com o mar, oito e dez dias a fio numa tormenta, de Aveiro a Lisboa, e estes que brigam uma tarde com um toiro, qual é que tem mais força?»

Os campinos ficaram cabisbaixos; o público imparcial aplaudiu por esta vez a oposição, e o Vouga triunfou do Tejo.


NOTAS:

(1) Nota do autor: É visível alusão ao popular e inimitável opúsculo de Xavier de Maistre, Voyage autour de ma chambre, que decerto foi principiado a escrever em Turim e que muitos supõem que fosse concluído em Sampetersburgo.

(2) Passos Manuel.

(3) Nota do Autor: É puramente histórico isto: e também verdade que em grande parte daqui se originou a perseguição brutal que sofreu o A. daí a poucos meses.

(4) Conde da Taipa, Gastão da Câmara Coutinho Pereira de Sande.

(5) Nota do Autor: «Regata» chamava não sei se chama inda, em Veneza às carreiras de barcos postados ao desafio. A palavra e a coisa introduziu se em Inglaterra onde é moda e popularíssima.


CAPÍTULO II

Declaram-se típicas, simbólicas e míticas estas viagens. Faz o A. modestamente o seu próprio elogio. – Da marcha da civilização: e mostra-se como ela é dirigida pelo cavaleiro da Mancha D. Quixote, e por seu escudeiro Sancho Pança. – Chegada a Vila Nova da Rainha. Suplício de Tântalo. – A virtude galardão de si mesma: e sofisma de Jeremias Bentham. – Azambuja.

Estas minhas interessantes viagens hão-de ser uma obra-prima, erudita, brilhante de pensamentos novos, uma coisa digna do século. Preciso de o dizer ao leitor, para que ele esteja prevenido; não cuide que são quaisquer dessas rabiscaduras da moda que, com o título de Impressões de Viagem, ou outro que tal, fatigam as imprensas da Europa sem nenhum proveito da ciência e do adiantamento da espécie.

Primeiro que tudo, a minha obra é um símbolo... é um mito, palavra grega, e de moda germânica, que se mete hoje em tudo e com que se explica tudo... quanto se não sabe explicar.

É um mito porque – porque... Já agora rasgo o véu, e declaro abertamente ao benévolo leitor a profunda ideia que está oculta debaixo desta ligeira aparência de uma viagenzita que parece feita a brincar, e no fim de contas é uma coisa séria, grave, pensada como um livro novo da feira de Leipzig, não das tais brochurinhas dos boulevards de Paris.

Houve aqui há anos um profundo e cavo filósofo de além-Reno, que escreveu uma obra sobre a marcha da civilização, do intelecto – o que diríamos, para nos entenderem todos melhor, o Progresso. Descobriu ele que há dois princípios no inundo: o espiritualismo, que marcha sem atender à parte material e terrena desta vida, com os olhos fitos em suas grandes e abstractas teorias, hirto, seco, duro, inflexível, e que pode bem personalizar-se, simbolizar-se pelo famoso mito do Cavaleiro da Mancha, D. Quixote; – o materialismo, que, sem fazer caso nem cabedal dessas teorias, em que não crê, e cujas impossíveis aplicações declara todas utopias, pode bem representar-se pela rotunda e anafada presença do nosso amigo velho, Sancho Pança.

Mas, como na história do malicioso Cervantes, estes dois princípios tão avessos, tão desencontrados, andam contudo juntos sempre ; ora um mais atrás, ora outro mais adiante, empecendo-se muitas vezes, coadjuvando-se poucas, mas progredindo sempre.

E aqui está o que é possível ao progresso humano.

E eis aqui a crónica do passado, a história do presente, o programa do futuro.

Hoje o mundo é uma vasta Barataria, em que domina el-rei Sancho.

Depois há-de vir D. Quixote.

O senso comum virá para o milénio: reinado dos filhos de Deus! Está prometido nas divinas promessas... como el-rei da Prússia prometeu uma constituição; e não faltou ainda, porque... porque o contrato não tem dia; prometeu, mas não disse para quando.

Ora nesta minha viagem Tejo arriba está simbolizada a marcha do nosso progresso social: espero que o leitor entendesse agora. Tomarei cuidado de lho lembrar de vez em quando, porque receio muito que se esqueça.

Somos chegados ao triste desembarcadouro de Vila Nova da Rainha, que é o mais feio pedaço de terra aluvial em que ainda poisei os meus pés. O sol arde como ainda não ardeu este ano.

Um imenso arraial de caleças, de machinhos, de burros e arrieiros, nos espera naquele descampado africano. É forçoso optar entre os dois martírios da caleça ou do macho. Do mal o menos... seja este.

E acolá – oh suplício de Tântalo! – vejo duas possantes e nédias mulas castelhanas jungidas a um veículo que, nestas paragens e ao pé daqueloutros, me parece mais esplêndido do que um landau de Hyde Park, mais elegante que uma caleche de Longchamps, mais cómodo e elástico do que o mais aéreo brisca da princesa Helena. E contudo – oh mágico poder das situações! – ele não é senão uma substancial e bem apessoada traquitana de cortinas.

Togados manes dos antigos desembargadores, venerandas cabeleiras de anéis e castanhola, que direis, ó respeitadas sombras, se desse limbo onde estais esperando pela ressurreição do Pegas... e do livro quinto – vedes este degenerado e espúrio sucessor vosso, em calças largas, fraque verde, chapéu branco, gravata de cor, chicotinho de cauchu na mão, pronto a cavalgar em mulinha de Palito Métrico como um garraio estudantinho do segundo ano, e deitando olhos invejosos para esse natural, próprio e adscritício modo de condução desembargatória? Oh que direis vós! Com que justo desprezo não olhareis para tanta degradação e derrogação!

Eu comungava silenciosamente comigo nestas graves meditações, e revolvia incertamente no ânimo a ponderosa dúvida: – se o administrar justiça direita aos povos valia a pena de andar um desembargador a pé!... Lutava no meu ser o Sancho Pança da carne com o D. Quixote do espírito – quando a Providência, que nos maiores apertos e tentações nos não abandona nunca, me trouxe a generosa oferta de um amigo e companheiro do vapor, o Sr. L. S. (1): era sua a invejada carroça, e nela me deu lugar até à Azambuja.

A virtude é o galardão de si mesma, disse um filósofo antigo ; e eu não creio no famoso dito de Bentham; que sabedoria seja um sofisma.

O mais moderno é o mais velho, não há dúvida; mas o antigo que dura ainda, é porque tem achado na experiência a confirmação que o moderno não tem. Jeremias Bentham também fazia o seu sofisma como qualquer outro.

Vamos percorrendo lentamente aquele mal composto marachão que poucos palmos se eleva do nível baixo e salgadiço do solo: de Inverno não se passará sem perigo; ainda agora se não anda sem incómodo e receio. Estamos em Vila Nova e às portas do nojento caravançarai, único asilo do viajante nesta, hoje, a mais frequentada das estradas do reino.

Parece-me estar mais deserto e sujo, mais abandonado e em ruínas este asqueroso lugarejo, desde que ali ao pé tem a estação dos vapores, que são a comodidade, a vida, a alma do Ribatejo. Imagino que uma aldeia de Alarves das falda do Atlas deve ser mais limpa e cómoda.

Oh! Sancho, Sancho, nem sequer tu reinarás entre nós! Caiu o carunchoso trono de teu predecessor, antagonista e às vezes amo; açoitaram-te essas nádegas para desencantar a famosa del Toboso, proclamaram-te depois rei em Barataria, e nesta tua província lusitana nem o paternal governo de teu estúpido materialismo pode estabelecer-se para cómodo e salvação do corpo, já que a alma... oh! a alma...

Falemos noutra coisa.

Fujamos depressa deste monturo. – É monótona, árida e sem frescura de árvores a estrada: apenas alguma rara oliveira mal medrada, a longos e desiguais espaços, mostra o seu tronco raquítico e braços contorcidos, ornados de ramúsculos doentes, em que o natural verde-alvo das folhas é mais alvacento e desbotado do que o costume. O solo, porém, com raras excepções, é óptimo, e a troco do pouco trabalho e insignificante despesa, daria uma estrada tão boa como ás melhores da Europa.

Dizia um secretário de Estado meu amigo que, para se repartir com igualdade o melhoramento das ruas por toda a Lisboa, deviam ser obrigados os ministros a mudar de rua e bairro todos os três meses. Quando se fizer a lei de responsabilidade ministerial, para as calendas gregas, eu hei-de propor que cada ministro seja obrigado a viajar por este seu reino de Portugal ao menos uma vez cada ano, como a desobriga.

Aí está a Azambuja, pequena mas não triste povoação com visíveis sinais de vida asseadas e com ar de conforto as suas casas. É a primeira povoação que dá indício de estarmos nas férteis margens do Nilo português.

Corremos a apear-nos no elegante estabelecimento que ao mesmo tempo cumula as três distintas funções de hotel, de restaurante e de café da terra. Santo Deus! que bruxa que está à porta! que antro lá dentro!... Cai-me a pena da mão.


NOTA:

(1) Luís Teixeira de Sampaio, 1º visconde do Cartaxo.


CAPÍTULO VIII

Saída do Cartaxo. – A charneca. Perigo iminente em que o A. se acha de dar em poeta e fazer versos. – Última revista do imperador D. Pedro ao exército liberal. – Batalha de Almoster. – Waterloo. – Declara o A. solenemente que não é filósofo e chega à ponte da Asseca.

Eram dadas cinco da tarde, a calma declinava, montámos a cavalo, e cortámos por entre os viçosos pâmpanos que são a glória e a beleza do Cartaxo; as mulinhas tinham refrescado e tomado ânimo; breve, nos achámos em plena charneca.

Bela e vasta planície! Desafogada dos raios do Sol, como ela se desenha aí no horizonte tão suavemente! que delicioso aroma selvagem que exalam estas plantas, acres e tenazes de vida, que a cobrem, e que resistem verdes e viçosas a um sol português de Julho!

A doçura que mete na alma a vista refrigerante de uma jovem seara do Ribatejo nos primeiros dias de Abril, ondulando lascivamente com a brisa temperada da Primavera, – a amenidade bucólica de um campo minhoto de milho, à hora da rega, por meados de Agosto, a ver-se-lhe pular os caules com a água que lhe anda por pé, e à roda as carvalheiras classicamente desposadas com a vide coberta de racimos pretos – são ambos esses quadros de uma poesia tão graciosa e cheia de mimo, que nunca a dei por bem traduzida nos melhores versos de Teócrito ou de Virgílio, nas melhores prosas de Gessner ou de Rodrigues Lobo.

A majestade sombria e solene de um bosque antigo e copado, o silêncio e escuridão de suas moitas mais fechadas, o abrigo solitário de suas clareiras, tudo é grandioso, sublime, inspirador de elevados pensamentos. Medita-se ali por força; isola-se a alma dos sentidos pelo suave adormecimento em que eles caem... e Deus, a eternidade – as primitivas e inatas ideias do homem – ficam únicas no seu pensamento...

É assim. Mas um rochedo em que me eu sente ao pôr do sol na gandra erma e selvagem, vestida apenas de pastio bravo, baixo e tosquiado rente pela boca do gado – diz-me coisas da terra e do céu que nenhum outro espectáculo me diz na natureza. Há um vago, um indeciso, um vaporoso naquele quadro que não tem nenhum outro.

Não é o sublime da montanha, nem o augusto do bosque, nem o ameno do vale. Não há aí nada que se determine bem, que se possa definir positivamente. Há a solidão que é uma ideia negativa...

Eu amo a charneca.

E não sou romanesco. Romântico, Deus me livre de o ser – ao menos, o que na algaravia de hoje se entende por essa palavra.

Ora a charneca dentre Cartaxo e Santarém, àquela hora que a passámos, começava a ter esse tom, e a achar-lhe eu esse encanto indefinível.

Sentia-me disposto a fazer versos... a quê? Não sei.

Felizmente que não estava só; e escapei de mais essa caturrice. Mas foi como se os fizesse, os versos, como se os estivesse fazendo, porque me deixei cair num verdadeiro estado poético de distracção, de mudez – cessou-me a vida toda de relação, e não sentia existir senão por dentro.

De repente acordou-me do letargo uma voz que bradou: – "Foi aqui!... aqui é que foi, não há dúvida."

– "A última revista do imperador."

– "A última revista! Como assim a última revista! Quando? Pois?..."

Então caí completamente em mim, e recordei-me, com amargura e desconsolação, dos tremendos sacrifícios a que foi condenada esta geração, Deus sabe para quê – Deus sabe se para expiar as faltas de nossos passados, se para comprar a felicidade de nossos vindouros...

O certo é que ali com efeito passara o imperador D. Pedro a sua última revista ao exército liberal. Foi depois da batalha de Almoster, uma das mais lidadas e das mais ensanguentadas daquela triste guerra.

Toda a guerra civil é triste.

E é difícil dizer para quem mais triste, se para o vencedor ou para o vencido.

Ponham de parte questões individuais, e examinem de boa-fé: verão que, na totalidade de cada facção em que a Nação se dividiu, os ganhos, se os houve para quem venceu, não balançam os padecimentos, os sacrifícios do passado, e menos que tudo, a responsabilidade pelo futuro...

Eu não sou filósofo. Aos olhos do filósofo, a guerra civil e a guerra estrangeira, tudo são guerras que ele condena – e não mais uma do que a outra... a não ser Hobbes o dito filósofo, o que é coisa muito diferente.

Mas não sou filósofo, eu: estive no campo de Waterloo, sentei-me ao pé do Leão de bronze sobre aquele monte de terra amassado com o sangue de tantos mil, vi – e eram passados vinte anos – vi luzir ainda pela campina os ossos brancos das vítimas que ali se imolaram a não sei quê... Os povos disseram que à liberdade, os reis que à realeza... Nenhuma delas ganhou muito, nem para muito tempo com a tal vitória...

Mas deixemos isso. Estive ali, e senti bater-me o coração com essas recordações, com essas memórias dos grandes feitos e gentilezas que ali se obraram.

Porque será que aqui não sinto senão tristeza?

Porque lutas fratricidas não podem inspirar outro sentimento e porque...

Eu moía comigo só estas amargas reflexões, e toda a beleza da charneca desapareceu diante de mim.

Nesta desagradável disposição de ânimo chegámos à ponte da Asseca.


CAPÍTULO XI

Trata-se do único privilégio dos poetas que também os filósofos quiseram tirar, mas não lhes foi concedido; aos romancistas sim. – Exemplo de Aristóteles e de Anacreonte. – O A., tendo declarado no capítulo nono desta obra que não era filósofo, agora confessa, quase solenemente, que é poeta, e pretende manter-se, como tal, em seu direito.– De como S. M. El-Rei de Dinamarca tinha menos juízo do que Yorick, seu bobo. – Doutrina deste. Funda nela o A. o seu admirável sistema de fisiologia e patologia transcendente do coração. Por uma dedução apertada e cerrada da mais constrangente lógica vem a dar-se no motivo por que foi concedido aos poetas o direito indefinido de andarem sempre namorados. – Aplicam-se todas estas grandes teorias à posição actual do A. no momento de entrar no prometido episódio no capítulo antecedente. – Modéstia e reserva delicada o obrigam a duvidar da sua qualificação para o desempenho: pede votos às amáveis leitoras. Decide-se que a votação não seja nominal, e porquê. – Dido e a mana Anica. – Entra-se enfim na prometida história. – De como a velha estava à porta a dobar, e embaraçando-se-lhe a meada, chamou por Joaninha, sua neta.

Este é o único privilégio dos poetas: que até morrer podem estar namorados. Também não lhes conheço outro. A mais gente tem as suas épocas na vida, fora das quais lhes não é permitido apaixonarem-se. Pretenderam acolher-se ao mesmo benefício os filósofos, mas não lhes foi consentido pela rainha Opinião, que é soberana absoluta e juiz supremo de que se não apela nem agrava ninguém.

Anacreonte cantou, de cabelos brancos, os seus amores, e não se estranhou. Aristóteles mal teria a barba ruça quando foi daquele seu último namoro por que ainda hoje lhe apouquentam a fama.

Ora eu filósofo seguramente não sou, já o disse; de poeta tenho o meu pouco, padeci, a falar a verdade, meus ataques assaz agudos dessa moléstia, e bem pudera desculpar-me com eles de certas fragilidades de coração... Mas não senhor, não quero desculpar-me como quem tem culpa, senão defender-me como quem tem razão e justiça por si.

Estou, com o meu amigo Yorick, o ajuizadíssimo bobo de el-rei de Dinamarca, o que alguns anos depois ressuscitou em Sterne com tão elegante pena, estou sim. "Toda a minha vida" diz ele "tenho andado apaixonado já por esta já por aquela princesa, e assim hei-de ir, espero, até morrer, firmemente persuadido que se algum dia fizer uma acção baixa, mesquinha, nunca há-de ser senão no intervalo de uma paixão à outra: nesses interregnos sinto fechar-se-me o coração, esfria-me o sentimento, não acho dez réis que dar a um pobre... por isso fujo às carreiras de semelhante estado; e mal me sinto aceso de novo, sou todo generosidade e benevolência outra vez".

Yorick tem razão, tinha muito mais razão e juízo que seu augusto amo el-rei de Dinamarca. Por pouco mais que se generalize o princípio, fica indisputável, inexcepcionável para sempre e para tudo. O coração humano é como o estômago humano, não pode estar vazio, precisa de alimento sempre: são e generoso só as afeições lho podem dar; o ódio, a inveja e toda a outra paixão má é estímulo que só irrita mas não sustenta. Se a razão e a moral nos mandam abster destas paixões, se as quimeras filosóficas, ou outras, nos vedarem aquelas, que alimento dareis ao coração, que há-de ele fazer? Gastar-se sobre si mesmo, consumir-se... Altera-se a vida, apressa-se a dissolução moral da existência, a saúde da alma é impossível.

O que pode viver assim, vive para fazer mal ou para não fazer nada.

Ora o que não ama, que não ama apaixonadamente, seu filho se o tem, sua mãe se a conserva, ou a mulher que prefere a todas, esse homem é o tal, e Deus me livre dele.

Sobretudo que não escreva: há-de ser um maçador terrível. Talvez seja este o motivo da indefinida permissão que é dada aos poetas de andarem namorados sempre. O romancista goza do mesmo foro e tem as mesmas obrigações. É como o privilégio de desembargador que tiravam dantes os fidalgos, quando ser desembargador valia alguma coisa... e tanta coisa!

Como hei-de eu então, eu que nesta grave Odisseia das minhas viagens tenho de inserir o mais interessante e misterioso episódio de amor que ainda foi contado ou cantado, como hei-de eu fazê-lo, eu que já não tenho que amar neste mundo senão uma saudade e uma esperança – um filho no berço e uma mulher na cova?...

Será isto bastante? Dizei-o vós, ó benévolas leitoras, pode com isto só alimentar-se a vida do coração?

– Pode sim.

– Não pode, não.

– Estão divididos os sufrágios: peço votação.

– Nominal?

– Não, não.

– Porquê?

– Porque há muita coisa que a gente pensa e crê e diz assim a conversar, mas que não ousa confessar publicamente, professar aberta e nomeadamente no mundo...

Ah! sim... ele é isso? Bem as entendo, minhas senhoras: reservemos sempre uma saída para os casos difíceis, para as circunstâncias extraordinárias. Não é assim?

Pois o mesmo farei eu.

E posto que hoje, faz hoje um mês, em tal dia como hoje, dia para sempre assinalado na minha vida, me aparecesse uma visão, uma visão celeste que me surpreendeu a alma por um modo novo e estranho, e do qual não podia dizer decerto como a rainha Dido à mana Anica:

Reconheço o queimar da chama antiga
Agnosco veteris vestigia flammae;

posto que a visão passou e desapareceu... mas deixou gravada na alma a certeza de que... Posto que seja assim tudo isto, a confidência não passará daqui, minhas senhoras: tanto basta para se saber que estou suficientemente habilitado para cronista da minha história, e a minha história é esta.

Era no ano de 1832, uma tarde de Verão como hoje calmosa, seca, mas o céu puro e desabafado. Á porta dessa casa entre o arvoredo, estava sentada uma velhinha bem passante dos setenta, mas que o não mostrava. Vestia uma espécie de túnica roxa, que apertava na cintura com um largo cinto de couro preto, e que fazia ressair a alvura da cara e das mãos longas, descarnadas, mas não ossudas como usam de ser mãos de velhas; toucava-se com um lenço da mais escrupulosa brancura, e posto de um jeito particular a modo de toalha de freira; um mandil da mesma brancura, que tinha no peito e que afectava, não menos, a forma de um escapulário de monja, completava o estranho vestuário da velha. Estava sentada numa cadeira baixa do mais clássico feitio: textualmente parecia a que serviu de modelo a Rafael para o seu belo quadro da Madonna della Sedia.

Como nota histórica e ilustração artística, seja-me permitido juntar aqui em parêntesis que, não há muito, vi em casa de um sapateiro remendão, em Lisboa, no Bairro Alto, uma cadeira tal e qual; torneados piramidais, simples, sem nobreza, mas elegantes.

Tornemos à velhinha.

Estava ela ali sentada na dita cadeira, e diante de si tinha uma dobadoira, que se movia regularmente com o tirar do fio que lhe vinha ter às mãos e enrolar-se no já crescido novelo.

Era o único sinal de vida que havia em todo esse quadro. Sem isso, velha, cadeira, dobadoira, tudo pareceria uma graciosa escultura de António Ferreira (1) ou um daqueles quadros tão verdadeiros do morgado de Setúbal.

O movimento bem visível da dobadoira era regular, e respondia ao movimento quase imperceptível das mãos da velha. Era regular o movimento, mas durava um minuto e parava, depois ia seguindo outros dois, três minutos, tornava a parar: e nesta regularidade de intermitências se ia alternando como o pulso de um que treme sezões.

Mas a velha não tremia, antes se tinha muito direita e aprumada: o parar do seu lavor era porque o trabalho interior do espírito dobrava, de vez em quando, de intensidade, e lhe suspendia todo o movimento externo. Mas a suspensão era curta e mesurada; reagia a vontade, e a dobadoira tornava a andar.

Os olhos da velha é que tinham uma expressão singular: voltada para o poente, não os tirou dessa direcção nem os inclinava de modo algum para a dobadoira que lhe ficava um pouco mais à esquerda. Não pestanejavam, e o azul de suas pupilas, que devia ter sido brilhante como o das safiras, parecia desbotado e sem lume.

O movimento da dobadoira estacou agora de repente, a velha poisou tranquilamente as mãos e o novelo no regaço, e chamou para dentro da casa:

– «Joaninha?»

Uma voz doce, pura, mas vibrante, destas vozes que se ouvem rara vez, que retinem dentro da alma e que não esquecem nunca mais, respondeu de dentro:

– «Senhora? Eu vou, minha avó, eu vou.»

– «Querida filha!... Como ela me ouviu logo! Deixa, deixa: vem quando puderes. É a meada que se me embaraçou.»

A velha era cega, cega de gota serena, e paciente, resignada como a providência misericordiosa de Deus permite quase sempre que sejam os que neste mundo destinou à dura provança de tão desconsolado martírio.

NOTA

(1) Nota do Autor: António Ferreira, que viveu no fim do século passado, princípio deste, modelava em barro cru com a mesma graça e naturalidade flamenga com que pintava o morgado de Setúbal: es suas pequenas figurinhas são tão estimadas pelos entendedores como os melhores biscuits de Sèvres e da Saxónia antiga.

Garrett, Almeida, Viagens na Minha Terra


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