Almeida Garrett

FLORES SEM FRUTO
(extracto)

XVII

A CAVERNA DE VIRIATO

Yet came there the morrow
That shines out, at last in the longest dark night.


T. Moore.


I

Sobre os eternos gelos
Que os picos anuviados
Do alto Hermínio coroam,
Penteava a Aurora os fúlgidos cabelos,
E dos anéis ondados
As auras matutinas
Sopravam brandamente
Violas e boninas,
Que para lhe toucar a rósea frente
Colhera a Noite nos jardins do Oriente.

II

Da precursora estrela
Alva amortece a luz languidamente,
Qual nos olhos expira
Da rendida donzela
Quando em braços do amante amor lhos cerra
O espírito da serra,
Cujo é o ceptro das hórridas montanhas,
Dessa luz indignado
Que seu trono de nuvens lhe dispersa,
O voo despregado
Coas asas fuscas bate.

III

Sobre as águas pairou do morto pego
Onde vivente fol'go não demora,
E cum sorriso negro,
Semelhante ao que ri na fatal hora
O anjo do mal à cabeceira do ímpio,
Contempla na voragem
As antenas quebradas, rotas quilhas,
Tributo de homenagem
Que o génio lhe enviou da tempestade,
Por vias não sabidas de olho humano,
Dos sotopostos reinos do Oceano.


IV

Qual seta desferida do arco de ébano
Do arcanjo da morte.
Desce de golpe o espirito da serra,
E mergulhou nas águas. Treme a terra;
Os subjacentes mares
De abóbada em abóbada gemendo,
Do boqueirão tremendo
Mandam hórrido som que estruge os ares.

V

Mas já coa doce luz do Sol infante
As nuvens acossadas
A frente da alta serra destoucavam.
Sobre a relva, no cálice das flores,
Qual índico diamante,
Gotas acrisoladas
De puro orvalho brilham multicores;
E as plantas acordadas levantavam
Para saudar a luz a hástia pendida
Do esfriado relento.
A toda a natureza
Vem do astro criador amigo alento,
Que remoça, que alegra e expande a vida.

VI

Glória dos altos montes,
Magnífico Hermínio, a quem saúda
A português loquela
Co gentil nome da formosa estrela
Com que tua fronte a topetar se atreve ;
Nunca manhã mais bela
Por teus broncos penedos,
Tuas húmidas grutas,
Teus altivos, gigânticos rochedos,
Catadupas sonoras,
Torrentes gemedoras,
Viçoso, ameno prado
Jamais raiou no Oriente apavonado.

VII

Salve, berço do nome lusitano!
Nesta manhã solene.
Que, em volver de ano e ano,
Jamais acabará que a apague o tempo
Da saudosa memória;
Nesta manhã de glória
A ti veio, a ti venho, asilo santo
Da lusitana antiga liberdade.
Tuas lôbregas cavernas
Me serão templo augusto e sacrossanto,
Aonde da Razão e da Verdade
Celebrarei a festa.
Ouça-me o vale, o outeiro,
Escute-me a floresta
Aonde do seguro azambujeiro
Seus cajados cortavam
Os pastores de Luso,
Que a defender a pátria e a liberdade
Nesses tempos bastavam
De honra e lealdade.

VIII

Hoje!... – Meu sacro rito
Aqui celebrarei nesta caverna.
Teu santuário é toda a natureza,
Potestade superna,
Deus do homem de bem, Deus de verdade,
Imensa majestade
Que do nada tiraste a redondeza


IX

Ouve-me, ó Deus, recebe
Meu puro sacrifício.
No torpe malefício
Da traição não manchei
Minhas mãos inocentes,
Nem sacrilégio ousei,
Teu altar profanando,
Queimar o incenso vil da hipocrisia
Coa dextra parricida gotejando
Sangue da pátria, lágrimas fraternas,
Suor da viúva e do órfão.
Escuta, ó Deus nas regiões eternas,
Minhas acções de graças neste dia,
Dia que a resgatar-nos
Do cativeiro odioso
Estendeste o teu braço poderoso;
E a razão, liberdade,
Dons teus, do homem perdidos,
Restituíste à opressa humanidade.

X

Mas que sinto! – Desvairam-me os sentidos?
Estas cavernas tremem...
Em torno os ares fremem...
De eco em eco medonhos estampidos
Reflectem pavorosos!
Do extremo fundo lá desse antro surde
(Visão estranha é esta)
Espectro, sombra...
– Manes gloriosos
Sois vós de algum herói? – A lança, o escudo
Embraça, empunha: aos pés Águias romanas
Prostradas!... oh! Viriato
És tu, sombra magnânima...

XI

Tua caverna é esta:
De tua glória e teu nome é cheio ainda
O vale, monte e floresta,
Libertador da antiga Lusitânia,
Das regiões da morte
Vieste ver raiar a doce aurora
Da nova liberdade.
Sobre teus pátrios montes?
Esconde, esconde a face, ó varão forte,
Volve ao túmulo – a raça traidora
Não acabou no vil que a preço indigno
Te vendeu aos tiranos do universo:
O sangue desse monstro
Em quantos corações bate hoje à larga!
São mil por um perverso;
Cobardes todos. – Ferros que empunharam
Os Lusos teus para salvar a pátria,
Adagas de sicários se tornaram
Em mãos de Portugueses.

XII

Pátria!... não temos pátria...
Oh! não há para nós tão doce nome.
Grilhões, escravos, cárceres e algozes
De quanto outrora fomos,
Isto só nos restou, só isto somos.

XIII

A SOMBRA DE VIRIATO

«Não! sois mais que isso. O dia da justiça
Do Eterno chegará. Sua hora tarda,
Mas infalível, soará n'altura;
E os ecos da planície há-de anunciá-la.
Os ímpios buscarão onde esconder-se,
E a terra negará couto a seus crimes.
Mares de sangue cobrirão a terra.
E a morte folgará sobre as ruínas.

XIV

«Mas quem, quem desprendeu as cataratas
Do sangue, do castigo?
O ímpio que blasfemou
E de dizer ousou
No tredo coração:
– Não há Deus; abusemos
Afoitos de seu nome
Para avexar os povos; escudemos
Co esse fantasma vão nossos embustes.–

XV

«Cegos! nadai no pélago de males,
Lutai coa ânsia da morte: não há tábua
Para vós, não. de salvação, de espr'ança.
– Uma arca só por esses mares voga,
Arca de aliança nova,
Santa, e sagrada é esta!...
Pacto de Deus cos povos. Liberdade
Só restará do universal dilúvio:
Da raça dos tiranos,
Da fratricida guerra
Que ateara a opressão entre os humanos.
Nem a memória ficará na Terra.»

1824



XVIII

O ANO VELHO

Amara lemni
Temperat risu

Horat.

Vai-te, ano velho, vai-te, e nunca volvas
Dos séculos no giro;
Sumido sejas tu nas profundezas
Da imensidão do nada,
Ano parvo e poltrão, chocho e sem préstimo,
Inútil como um cónego.
Quem fez caso de ti? Nem praguejado,
Nem bendito morreste,
Sem deixares legado ou testamento
À deserdada história.
Foram teus dias, dias de rotina,
Como as lições sabidas
Da ensebada, suja caderneta
De um lente de Coimbra;
Tuas horas, as horas marianas
De velha abadessona
Que há quarenta anos tem no mesmo sítio
O babado registo
Do santo favorito. – Vai-te, some-te,
Carunchoso ano velho;
Trague-te o olvido inteiro; mais memória
De ti não fica à terra
Do que deixa um abade de Bernardos,
Da Academia um sócio.




A MINHA ROSA

Quem, se uma vez pôs os olhos
Naquela face tão bela,
Não viu nela – a sua estrela,
Rainha dos seus amores?
Em seus lábios um sorriso
É a luz do paraíso;
E o corar da face linda
É desabrochar de tosa
Que a manhã, com a sua vinda,
Debruçou n'hástia mimosa
Para inveja das mais flores.
– Assim fora ela – singela
A minha rosa tão bela,
Nem mudasse assim amores
Como as outras folhas e cores!



SUSPIRO D'ALMA

Suspiro que nasce d'alma,
Que à flor dos lábios morreu...
Coração que o não entende
Não no quero para meu.

Falou-te a voz da minha alma,
A tua não na entendeu:
Coração não tens no peito,
Ou é dif'rente do meu.

Queres que em língua da terra
Se digam coisas do céu?
Coração que tal deseja,
Não no quero para meu.




X

A POMBINHA

(DE ANACREONTE)

De onde vieste,
amável pombinha,
Gentil avezinha,
Aonde é que vás?

De onde trouxeste
Aroma tão brando
Que esparzes, voando,
Por todo esse ar?

– Foi Anacreonte
Que ao seu bem amado
Com meigo recado,
Aqui me mandou:

Seu bem, que reparte
Dos lumes divinos
Ao mundo os destinos
Num lânguido olhar.

Da maga Citera
O cego menino,
A troco de um hino
Ao vate me deu:

Sou de Anacreonte
Agora o paquete,
É dele o bilhete
Que vou entregar.

Prometeu-me cedo
De dar-me alforria,
Que eu antes queria
Sempre escrava ser...

Que gosto é no mato
Andar pelas fragas,
Viver só de bagas,
Nos ramos dormir?

Da mão de meu dono
Como alvo pãozinho
E só bebo vinho
Do que ele me dá.

Às vezes alegre
Saltando, esvoaço,
E sombra lhe faço
Co'as asas a dar;

Ou quando me sinto
De sono pesada,
Na lira doirada
Me deito a dormir.

Adeus! que me fazes
Ser mais palradeira
Que a gralha grasneira
Com o teu perguntar.



XIX

AS MINHAS ASAS

Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um Anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Bati-as, voava ao céu.

– Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que mas deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.

Veio a cobiça da terra.
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.

– Veio a ambição, co'as grandezas,
Vinham para mas cortar
Davam-me poder e glória
Por nenhum preço as quis dar.

Porque as minhas asas brancas,
Asas que um Anjo me deu,
Em me eu cansando da terra
Batia-as, voava ao céu.

Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,

– Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.

E as minhas asas brancas,
Asas que um Anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.

Cegou-me essa luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!

– Tudo perdi nessa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.



XIX

A TEMPESTADE

Coeco carpitur igni

Virgílio


Sobre um rochedo
Que o mar batia,
Triste gemia
U m desgraçado,
Terno amador.
Já nem lhe caem
Dos olhos lágrimas,
Suspiros férvidos
Apenas contam
Seu triste amor.

II

Ondas, clamava o mísero,
Ondas que assim bramais,
Ouvi meus tristes ais!
Horrível tempestade,
Medonho furacão,
Não é mais agitado
Do que o meu coração,
O vosso despregado,
Horríssono bramar!
Ânsia que atropela
Meu lânguido peito,
É mais violenta
Que o tempo desfeito,
Que a onda encapela,
Que agita a tormenta
No seio do mar.

III

Mas, ah! se o negrume
O sol dissipara
Calmara,
Seu nume
O horror do tufão.
Assim à minha alma
A calma
Daria
De Armia
Um sorriso:
Um raio de esp'rança
Do paraíso
Traria
A bonança
Ao meu coração.



XX

TRONCO DESPIDO

Sine nomine corpus

Virgílio


Qual tronco despido
De folha e de flores,
Dos ventos batido
No inverno gelado
De ardentes queimores
No estio abrasado,
De nada sentido,
Que nada ele sente...
Assim ao prazer,
À dor indif'rente,
Vão-me horas da vida
Comprida
Correndo,
Vivendo,
Se é vida
Tão triste viver.


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