Almeida Garrett

CAMÕES (extracto)

CANTO SÉTIMO

XII

Estavam de altas árvores à sombra
De aveludada relva em fresco assento.
Atento o jovem rei fitava ansioso
O guerreiro cantor que o nobre aspeito
Tinha como de glória resplendente,
E na divina inspiração aceso.
Qual deveras o imita, qual fingindo;
Mas todos se compõem do rei a exemplo.
O vate começou: pausado acento,
Respeitoso não tímido, lhe alonga
Solenemente o cadenciar medido
Do metro numeroso. O heróico assunto
Primeiro expõe do Canto: armas e glória
Dos barões lusitanos que fundaram
Do Oriente o Império novo; os grandes feitos
Dos reis, dos cidadãos de eterna fama
Que se hão da lei da morte libertado.
Logo as Tágides musas invocando
Porque alto som lhe dêem e sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente:
– «Dai-me – com voz mais elevada clama –
Dai-me uma fúria sonorosa e grande,
E não de agreste avena ou ruda frauta,
Mas da tuba canora e belicosa
Que o peito acende, e a dor ao gesto muda,
Um canto igual a meu erguido assunto.
Se tão sublime preço cabe em verso.»

XIII

Depois ao jovem rei, segura esp'rança
Da lusitana, antiga liberdade.
Em versos de amor pátrio cintilantes,
Ao ouvir cantar dos feitos portugueses
Convida; pinta-lhe em vivazes cores
A grandeza do povo a que preside,
A lealdade, o valor; e recordando
De seus avós famosos as virtudes.
Digno exemplar de emulação lhe aponta.

XIV

Já da tuba a Calíope travando,
Em terso estilo, e não de inchada pompa,
Mas – qual fluente e majestoso rio
Por suas ribas magnífico se espraia –
Tal por seu grande assunto o vate imenso.

XV

No largo oceano, em próspera bonança
As atrevidas naus vão navegando.
Dos céus o alto Poder sublime c dino
A conselho as menores potestades
Sobre tamanha empresa convocava
Cuidas ver, lá num trono de diamante,
Sentado o pai dos numes; por seus lábios
Fulge o louvor da lusitana gente,
Pasmo e terror do mundo. É seu propósito
De mor glória lhe dar no ignoto Oriente.
De Nisa o vencedor cioso impugna
A sentença do nume. Quem sustenta
A heróica Lísia? É Vénus, Vénus bela,
Afeiçoada a um povo, das romanas
Qualidades herdeiro, e cuja língua
Com pouca corrupção crê que é latina;
Um povo tão zeloso de seu culto,
Tão devoto amador de seus altares!
O fado o decretou, Jove o confirma;
Abram-se as portas do Oriente aos Lusos.

XVI

Já surgindo na treda Moçambique,
Ao fementido mouro pune o Gama
Da pérfida malícia. Eis lá Mombaça,
Onde falsos Sínons a engano o levam,
Cru exício lhe estava preparando,
Por artes do que sempre a mocidade
Tem no rasto perpétua, e foi nascido
De duas mães. Tu, Ericina linda,
Que a assinalada gente andas guardando,
Tu, do velho Nereu, coas alvas filhas,
Pondo ao duro madeiro o brando peito,
Da cilada os salvaste. – Aqui do vate
O 'stilo se embrandece, 'spira o canto
Suavíssimos perfumes de Amatunte;
Rosas de Pafos e jasmins de Gnido
R namorada lira lhe coroam,
Quando a bela Dione à sexta esfera
Segue enlevado. – Está pelos semblantes
Dos que o escutam debuxado o gosto
Que o deleitoso quadro acende n'alma.
O mimo dos pincéis tão delicados,
Não lho deu natureza, que o não tinha;
Deu-lho amor de seus cofres escondidos,
Que nem a Ticiano tão querido,
Tão grão privado seu jamais abrira.

XVII

Mármores de Praxísteles, esmeros
De Fídias, de Cánova; oh! que beldades
Retratais imperfeitas! – Mas que os fados
Vos outorgassem a invejada sorte
Do venturoso Pigmalião obtida,
Quando há-de o apuro do cinzel mais destro
Tais mimos igualar? Aquele gesto
Que as estrelas, o céu e o ar namora,
Aquele afrontamento do caminho
Que a beleza lhe aviva? Como as graças,
Os espíritos vivos que inspiravam
Dos olhos onde faz seu filho o ninho?
Vê-la diante do padre omnipotente
Como na selva do Ida se amostrara
Ao mui feliz troiano!... que, se a vira
Tal o que já por vista menos bela
Vulto humano perdeu, nunca seus galgos,
Bárbara lei! – o houveram devorado,
Que primeiro desejos o acabaram.

XVIII

Os crespos fios de ouro desparzidos;
Pelo colo que a neve escurecia;
Lácteas tetas que andando lhe tremiam,
Com quem amor brincava e não se via;
As flamas que lhe saem d'alva petrina;
Desejos que como heras enrolados
Pelas lisas colunas lhe trepavam...
Quem tal expressará, quem tais belezas,
Na sílice ou painel ou brandos versos,
Pintar já soube ? – Não a viu tão bela
Graças pleitar pelo invejado pomo
O real pastor de Príamo. – Escondidos
Por delgado sendal outros encantos...
Escondidos só quanto mais o acenda
E redobre o desejo que penetra
O véu dos roxos lírios pouco avaro.

XIX

O omnipotente padre não resiste
Aos feitiços do angélico semblante,
Aquela doce nuvem de tristeza
Com riso misturada: – Qual a dama
Em amorosos brincos maltratada
Do incauto amante – que se ri, se aqueixa
E se mostra entre alegre magoada.
Jove não resistiu – quem tal pudera ?
Beijo acendido à súplica responde.

XX

Propício o fado aos fortes viajantes
De sorrir-lhes começa. já Melinde
Amigos braços lh'abre: já do Gama
Os lusitanos feitos recontados,
Terra e costumes são. Pasma o rei bárbaro
De ouvir dos povos da soberba Europa
As remotas regiões, ignotos nomes.
Pinta-lhe, quase cume da cabeça
Da Europa toda, o Português Império,
Pátria do esforço outrora e liberdade.
Diz o pastor que do ferrado conto
De seu cajado abate águias romanas;
Henrique o mauro jugo espedaçando,
E abrindo com sua espada triunfante
De Lísia o fundamento. Ao filho ilustre
Cabe glória maior: de c'roas cinco
A vitória lhe tece; e as santas Quinas,
Por eterno brasão, dos céus recebe.
De Egas Moniz a lealdade e a honra
Aqui também refere. Olha, os filhinhos
Tenros, e a doce esposa vão descalços
A oferecer as inocentes vidas
Pela dada palavra. – Mais se estende
Sob o primeiro Sancho o novo reino
Pelos vencidos, tórridos Algarves.
Vem outro Afonso, o vencedor de Alcácer,
Do mouro pertinaz exício extremo.
Mas do segundo Sancho a mole inércia
De privados regida, não tolera
Nação altiva que outro rei não sofre
Que não for mais que todos excelente.
Das impotentes mãos as rédeas toma
O conde bolonhês: à glória volvem
As armas portuguesas. Melhor sorte
Coube a Dinis, pacífico monarca:
Às conquistas da espada deu cultura.
De artes a ornou e enobreceu coas letras;
E às formosas campinas do Mondego
Fez do Hélicon descer as áureas musas.
Claros lumes da terra, sãos costumes,
Constituições e leis co ele florecem.

XXI

Mal obediente o valoroso filho,
Domador das soberbas castelhanas,
Do venerando pai empunha o ceptro:
Afonso, que nos campos do Salado
As hostes granadis prostrou tremendas
Com pequeno poder. – Viçosos louros
De tamanha e tão próspera vitória
Caso triste murchou, crueza bárbara
Que à belíssima Inês deu morte injusta.
O próprio amor, cuja ferina sede
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
Inda às saudosas margens do Mondego,
junto à fonte que lágrimas formaram,
Verte sobre ele desusado pranto.
As nações do universo, que escutaram
As endechas do vate, as vão cantando;
E do bárbaro Neva ao culto Sena,
Desde o Tamisa frio ao Pado ardente,
Os lamentos de Inês repete a lira.

XXII

Brandas ninfas do plácido Mondego,
Vós que o doce gemer, que os namorados
Ais do prazer ouvistes pela selva
Que encobriu tanto amor, tanta ventura
Em tempos de mais dita; que escutastes
os magoados suspiros da saudade,
Quando ausente daquele por quem vive,
Só, gemedora rola, vai carpindo
A ausência do seu bem, do seu amado,
E aos montes, às ervinhas ensinando
O nome que no peito escrito tinhas;
Que depois, memorando a morte escura,
Longo tempo das umas cristalinas
Só lágrimas formosas derramastes,
E, por memória, em fonte convertidas,
O nome lhe pusestes, que inda dura,
Dos amores de Inês que ali passaram;
Vós ao vate os segredos recontastes,
Os mistérios de amor, e o pranto, as queixas
Da malfadada Castro. – A lira anseia-lhe,
A voz carpe-se, os tons gemem tão meigos,
Mas tão cortados de uma dor tão viva,
Que é um partir-se o coração de ouvi-los.

XXIII

Ausente é o esposo: solitária vaga
Pela várzea de flores recamada,
No pensamento alheado revolvendo
Ledos enganos d'alma, suavíssimas
Lembranças do passado. e a mais suave,
Lisonjeira esperança do futuro.
Oh! quando ela outra vez naqueles braços
O tornar a apertar, quando... Armas soam
De cavaleiros, e corcéis nitrindo
Nos átrios do palácio... escuta... É ele,
O seu Pedro, oh ventura! – «Esposo, esposo!»
Mas pelo ausente esposo o pai responde.
O amante não vem: juiz severo,
Pelos beijos de amor, lhe traz castigo
Que não merece amor, nem quando é crime.

XXIV

Cos filhinhos, em vão banhada em pranto,
Súplice implora os bárbaros. O ferro
Embebem crus no peito cristalino;
E as vivas rosas que das faces fogem,
Pela ferida a borbotões se esvaem
Cos inocentes filhos abraçada,
Não geme, não suspira; a beijos colhe,
Uma a uma, as feições que tanto ao vivo
As do querido amante lhe retratam.
Já pelos lábios derradeira foge
A última vida, o último sopro em ósculos
Todos amor, todos ternura. Os olhos
já da formosa luz se extinguem... Trémula,
Inda coa incerta mão procura os filhos,
Inda afagando imagens do seu Pedro,
Entre os amplexos maternais. – «Esposo,
Esposo... Esposo!...» balbuciando, expira.


CANTO DÉCIMO

XXII

A voz, que afroixa,
interromperam sons desconhecidos
de voz de estranho que na estância humilde
entra do vate: – "Perdoai, se ousado
entrei, senhor, mas...."
– "Quem sois vós? Há inda
homem no mundo que a poisada obscura
de um moribundo saiba?"
– "Cavaleiro,
desde o alvor da manhã que vos procuro:
de África hoje cheguei..."
– "Ah! perdoai-me.
Sois vós, conde? Voltastes? E que novas
me trazeis?"
– "Tristes novas, cavaleiro.
Ai! tristes. Desta carta, que vos trago,
sabereis tudo". Ao vate a carta entrega:
do missionário era, que dos cárceres
de Fez a escreve. Saudoso e triste,
mas resignado e plácido, lhe manda
consolações, palavras de brandura,
de alívio e de esperança. – "Extinto é tudo
nesta mansão de lágrimas e dores"
– as letras dizem – tudo; mas a pátria
da eternidade só a perde o ímpio.
Deus e a virtude restam; consolai-vos.

XXIII

– "Oh! consolar-me – exclama, e das mãos trémulas
a epístola fatal lhe cai – Perdido
é tudo, pois!..." No peito a voz lhe fica;
e, de tamanho golpe amortecido,
inclina a fronte... Como se passara,
fecha languidamente os olhos tristes.
Ansiado, o nobre conde se aproxima
do leito... Ai! tarde vens, auxílio do homem.
Os olhos turvos para o céu levanta,
e já no arranco extremo: – "Pátria, ao menos
juntos morremos..." E expirou co'a pátria.

Almeida Garrett, Camões, Paris, 1825


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