FREI LUÍS DE SOUSA (extracto)
ACTO PRIMEIRO
Câmara antiga, ornada com todo o luxo e caprichosa elegância portuguesa dos princípios do século dezassete. Porcelanas, xarões, sedas, flores, etc. No fundo, duas grandes janelas rasga- das, dando para um eirado, que olha sobre o Tejo e donde se vê toda Lisboa; entre as janelas o retrato, em corpo inteiro, de um cavaleiro moço vestido de preto, com a cruz branca de noviço' de S. João de Jerusalém. Defronte e para a boca da cena um bufete pequeno, coberto de rico pano de veludo verde franjado de prata; sobre o bufete alguns livros, obras de tapeçaria meias feitas, e um vaso da China de colo alto, com flores. Algumas cadeiras antigas, tamboretes rasos, contadores. Da direita do espectador, porta de comunicação para o interior da casa, outra de esquerda para o exterior. É o fim da tarde.
CENA I
MADALENA Só, sentada junto à banca os pés sobre uma grande almofada, um livro aberto no regaço e as mãos cruzadas sobre ele, como quem descaiu da leitura na meditação.
MADALENA (repetindo maquinalmente e devagar o que acabava de ler.)
«Naquele engano de alma ledo e cego
Que a fortuna não deixa durar muito...»
Com paz e alegria de alma... um engano, um engano de poucos instantes que seja... deve de ser a felicidade suprema neste mundo. E que importa que o não deixe durar muito a fortuna? Viveu-se, pode-se morrer. Mas eu!... (Pausa) Oh! que o não saiba ele ao menos, que não suspeite o estado em que eu vivo... este medo, estes contínuos terrores que ainda me não deixaram gozar um só momento de toda a imensa felicidade que me dava o seu amor. Oh que amor, que felicidade... que desgraça a minha! (Torna a cair em profunda meditação: silêncio breve.)
CENA II
MADALENA E TELMO PAIS
TELMO (Chegando ao pé de Madalena que não sentiu entrar) A minha senhora está a ler ?...
MADALENA (Despertando) Ah! sois vós, Telmo... Não, já não leio: há pouca luz de dia já; confundia-me a vista: E é um bonito livro este! O teu valido, aquele nosso livro, Telmo.
TELMO (Deitando-lhe os olhos) Oh, oh! Livro para damas e para cavaleiros... e para todos: um livro que serve para todos; como não há outro, tirante o respeito devido ao da Palavra de Deus! Mas esse não tenho eu a consolação de ler, que não sei latim como meu senhor... quero dizer como o Sr. Manuel de Sousa Coutinho que lá isso!... acabado escolar é ele. E assim foi seu pai antes dele, que muito bem o conheci: grande homem! Muitas letras e de muito galante prática e não somenos as outras partes de cavaleiro: uma gravidade!... Já não há daquela gente: Mas, minha senhora, isto de a Palavra de Deus estar assim noutra língua que a gente... que toda a gente não entende... confesso-vos que aquele mercador inglês da Rua Nova, que aqui vem às vezes, tem-me dito suas coisas que me quadram... E Deus me perdoe! que eu creio que o homem é herege desta seita nova de Alemanha ou de Inglaterra. Será?
MADALENA Olhai, Telmo; eu não vos quero dar conselhos: bem sabeis que desde o tempo que... que...
TELMO Que já lá vai, que era outro tempo.
MADALENA Pois sim... (Suspira.) Eu era uma criança; pouco maior era que Maria.
TELMO Não, a Srª D. Maria já é mais alta.
MADALENA É verdade tem crescido de mais, e de repente nestes dois meses últimos...
TELMO Então! Tem treze anos feitos, é quase uma senhora, está uma senhora... (À parte.) Uma senhora aquela... pobre menina!
MADALENA (Com as lágrimas nos olhos.) És muito amigo dela, Telmo?
TELMO Se sou! Um anjo como aquele... uma viveza de espírito e então que coração!
ACTO SEGUNDO
CENA I
MARIA E TELMO
(...)
TELMO (Com ansiedade.) E esta noite ainda lidou muito nisso?
MARIA Não; desde ontem pela tarde, que cá esteve o tio Frei Jorge e a animou com muitas palavras de consolação e de esperança em Deus, e que lhe disse do que contava abrandar os Governadores, minha mãe ficou outra; passou-lhe de todo, ao menos até agora. Mas então, vamos, tu não me dizes do retrato? Olha: (Designando o de el-rei D. Sebastião.) aquele do meio, bem sabes se o conhecerei; é o do meu querido e amado rei D. Sebastião. Que majestade! que testa aquela tão austera, mesmo dum rei moço e sincero ainda, leal, verdadeiro, que tomou ao sério o cargo de reinar, e jurou que há-de engrandecer e cobrir de glória o seu reino! Ele ali está... E pensar que havia de morrer às mãos de mouros, no meio de um deserto, que numa hora se havia de apagar toda a ousadia reflectida que está naqueles olhos rasgados, no apertar daquela boca!... Não pode ser, não pode ser. Deus não podia consentir em tal.
TELMO Que Deus te ouvisse, anjo do céu!
MARIA Pois não há profecias que o dizem? Há, e eu creio nelas. E também creio naquele outro que ali está; (Indica o retrato de Camões.) aquele teu amigo com quem tu andaste lá pela Índia, nessa terra de prodígios e bizarrias, por onde ele ia... como é ? ah, sim...
«Nüa mão sempre a espada e noutra a pena...»
TELMO Oh! o meu Luís, coitado! Bem lho pagaram. Era um rapaz, mais moço do que eu muito mais... e quando o vi a última vez... foi no alpendre de S. Domingos em Lisboa parece-me que o estou a ver tão mal trajado, tão encolhido; ele que era tão desembaraçado e galã... e então velho! velho alquebrado, com aquele olho que valia por dois, mas tão sumido e encovado já, que eu disse comigo: «Ruim terra comerá cedo corpo da maior alma que deitou Portugal!» e dei-lhe um abraço... foi a último... Ele pareceu ouvir o que me estava dizendo o pensamento cá por dentro, e disse-me: «Adeus Telmo! S. Telmo seja comigo neste cabo da navegação... que já vejo terra, amigo» e apontou para uma cova que ali se estava a abrir. Os frades rezavam o ofício dos mortos na igreja... Ele entrou para lá, e eu fui-me embora. Daí a um mês, vieram-me aqui dizer : «Lá foi Luís de Camões num lençol para Santa Ana.» E ninguém mais falou nele.
MARIA Ninguém mais!... Pois não lêem aquele livro que é para dar memória aos mais esquecidos?
TELMO O livro sim: aceitaram-no como o tributo de um escravo. Estes ricos, estes grandes, que oprimem e desprezam tudo o que não são as suas vaidades, tomaram o livro como uma coisa que lhes fizesse um servo seu e para honra deles. O servo, acabada a obra, deixaram-no morrer ao desamparo sem lhes importar com isso... quem sabe se folgaram? podia pedir-lhes uma esmola escusavam de se incomodar a dizer que não.
MARIA (Com entusiasmo.) Está no céu, que o céu fez-se para os bons e para os infelizes, para os que já cá da terra o adivinharam! Este lia nos mistérios de Deus; as suas palavras são de profeta. Não te lembras o que lá diz do nosso rei D. Sebastião?... como havia de ele então morrer? Não morreu. (Mudando de tom.) Mas o outro, o outro... quem é este outro, Telmo? Aquele aspecto tão triste, aquela expressão de melancolia tão profunda, aquelas barbas tão negras e cerradas... e aquela mão, que descansa na espada como quem não tem outro arrimo, nem outro amor, nesta vida...
TELMO (Deixando-se surpreender.) Pois tinha, oh, se tinha...
(Maria olha para Telmo, como quem compreendeu, depois torna a fixar a vista no retrato, e ambos ficam diante dele como fascinados. No entretanto, e às últimas palavras de Maria, um homem embuçado, com o chapéu sobre os olhos, levanta o reposteiro da direita, e vem, pé ante pé, aproximando-se dos dois, que o não sentem.)
Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa