Almeida Garrett

BOSQUEJO DA HISTÓRIA DA POESIA
E LÍNGUA PORTUGUESA

Não estava ainda neste auge a poesia portuguesa quando um homem pouco conhecido dos letrados, mas já célebre por suas aventuras e valor, foi para tão longe da ingratíssima pátria despicar-se de seu desamor com a mais nobre vingança; a de levantar-lhe um padrão, com que não entram as idades, e que conservará ainda o nome português quando já ele houver desaparecido da Terra. Muita erudição (pois sabia quanto se soube em seu tempo) engenho dos que vêm ao mundo de séculos a séculos se reuniram em Camões. Esse homem levantou a cabeça lá das extremidades da Ásia, e viu tudo pequeno à roda de si, todos os poetas pigmeus, todos acanhados com as línguas modernas ainda mal perfeitas, escravos da imitação clássica, incertos e entalados todos entre o cego respeito da Antiguidade e as novas precisões que as novas ideias, que o novo estado do mundo requeria. Teve ânimo para conceber e força para executar um rasgado e necessário atrevimento de se abrir caminho novo, de criar enfim a poesia moderna, dar não só a Portugal, mas à Europa toda um grande exemplo, e constituir-se o Homero das línguas vivas.

Não me dá espaço o acanho de meus limites para dizer de Camões o que era indispensável; antes a celebridade de seu nome me deixará parar aqui para dar lugar a tratar de menos conhecidos nomes. Só direi que a influência de Camões na nossa poesia, e em toda a literatura portuguesa foi tal que desde então até hoje ainda se não deixou de sentir, mesmo nas épocas em que mais desvairados têm andado nossos poetas com as empolas do gongorismo, ou mais lunáticos com os esfusiotes do elmanismo. Quase que não houve género de poesia que não tratasse – tem sonetos admiráveis; éclogas (sobretudo as primeiras) excelentes; mas principalmente de todas as poesias menores são o mais sublime e perfeito as canções, género a que deu uma nobreza e elevação desconhecida mesmo em Petrarca: sirva de prova e exemplo aquela que começa – «Junto dum seco duro e estéril monte». D'Os Lusíadas, de suas belezas e defeitos, das controvérsias sobre umas e outros, está cheio o mundo literário.

Contemporâneo de Camões e ousado também como ele a encetar a carreira épica foi Jerónimo Corte Real. O Cerco de Diu, que é notável monumento literário, e que decerto se teve algum exemplar foi a "Itália" do Trissino, é uma fria narração, em que há belas ideias aquém além, muita riqueza de linguagem, pouca de poesia, e pelo geral maus versos. E contudo é talvez Corte Real o primeiro (em data) poeta descritivo; e criou ele acaso esse género de que tanto blasonam hoje ingleses, alemães, e até franceses e que todavia nós tínhamos séculos antes deles. Já n'O Cerco de Diu há muitas boas descrições; mas no Naufrágio de Sepúlveda há deles sublimes.

Entre muito devaneio de imaginação e de mau gosto, entre aqueles insípidos requebros de Pã e de Proteu aparece todavia a morte de D. Leonor que é um trecho da mais bela poesia, da mais fina sensibilidade que se tem composto.

De todos esses poetas que então floresceram é na minha opinião o menos poeta esse Pêro de Andrade Caminha, a quem da amizade e celebridade de Ferreira e Bernardes vem talvez o maior renome. Ainda assim tem algumas odes boas, simplicidade com elegância por partes de suas composições: epigramas, são alguns excelentes.

Sobreviveu a todos estes e à pátria, que não tardou em perecer, o suave cantor do Lima que levado por D. Sebastião para testemunhar seus altos feitos, de que devia fazer um poema, perdeu-se com seu rei, e jazeu cativo em África. Pondo de parte a questão das éclogas (na qual decerto não andou de boa-fé Faria e Sousa) a qual, ainda que própria do luar, é mui longa para os meus limites; Bernardes foi excelente poeta; e conquanto sua linguagem é pobre, e em geral pouco variadas suas composições; a suavidade de seu estilo, certa melancolia de expressão que lho requebra e embrandece darão sempre a Bernardes um lugar mui distinto na poesia portuguesa.

Mas já a nação se perdera nos areais de África, já a glória portuguesa estava ofuscada; com ela foram (como sempre vão) as boas-artes. Ainda brilham a espaços faíscas do grande luzeiro que se apagara; mas já não eram senão faíscas. Ainda Luís Pereira deplora na Elegíada a ruína da pátria, mas esse canto fúnebre é quase o canto de cisne da poesia nacional, que parece querer fenecer com ele, e já nele moribunda se mostra. Há excelentes oitavas derramadas por esse poema, algumas descrições felizes, grandíssima riqueza de linguagem; mas pouco mais.

Já Fernão Alves do Oriente difuso, intrincado nos primeiros labirintos dos conceitos italianos mostra a visível decadência da poesia: já as musas que tão louçãs, e ingenuamente belas tinham folgado pelas várzeas do Tejo e do Mondego com Ferreira e Camões, aparecem afeitadas com arrebiques e cores falsas, como essas damas para quem se desbota a flor da idade e lhe querem ainda suprir o viço com emprestados ornamentos, gentilezas compradas e postiças. E todavia há na "Lusitânia Transformada" pedaços líricos excelentes, e alguns bucólicos sofríveis. Assim ele nos dissesse mais do seu "Oriente" do que nos disse : assim houvesse enriquecido a literatura com mais imagens de tantas que sua Ásia lhe oferecia, e com que houvera aditado a mãe-pátria. Onde o fez naquela écloga em que conta a história de Saladino, é ele verdadeiramente poeta: e se dai tirarem alguns trocadilhos, que tinha aprendido em Itália, excelente e digno de imitar-se é o resto.

Almeida Garrett, Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa

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