Almeida Garrett

A originalidade da poesia de Garrett consiste no equilíbrio com que ele combinou ou fundiu o espírito e os princípios da estética clássica tradicional com os motivos e o novo tipo de sensibilidade literária criados pelo movimento romântico europeu do primeiro quartel do século XIX, que Garrett conheceu nos anos de exílio.

Guiado pelo seu fino gosto de artista nato e eclético, Garrett submeteu a sua poesia a uma espécie de depuração que a libertou dum romantismo convencional e exterior, documentado nos seus dois longos e ambiciosos poemas Camões e D. Branca, e permitiu a renovação e enriquecimento dum lirismo anacreôntico, aparentemente frívolo e sensualista, de proveniência clássica, que surge rejuvenescido nas suas composições mais perfeitas, graças à permanente juvenilidade dum espírito epicurista e elegante (falamos da elegância íntima, moral, de Garrett, não da elegância exterior), de mundano céptico e sensual.

A publicação dos dois poemas Camões (1825) e D. Branca (1826) tem um significado histórico importante: Garrett pretende assumir o papel de corifeu do romantismo português e ilustrar nessas duas obras novos preceitos literários. [...]

Leitor de Byron e de W. Scott, é no poema narrativo, de assunto histórico ou lendário, género literário posto em voga por aqueles autores, que Garrett vai desenvolver certos temas românticos, que, além do seu significado literário possuem ainda um significado simbólico, alusivo a uma situação humana patética: a do exilado que, sob a pressão angustiosa das circunstâncias históricas adversas, procura uma compensação ao evocar a existência, prestigiada pela lenda, desenvolvendo, com gravidade didáctica, certos lugares-comuns como a morte, a infância, o amor maternal e paternal.

Outras composições, porém, anunciam já a futura orientação poética de Garrett um lirismo anacreôntico, subtil e gracioso («A cor da rosa», o «Rouxinol»), anima alguns quadros idílicos, que sugerem a doçura do viver calmo e epicurista, com zéfiros, pombinhas, raminhos, ervinhas, Vénus e Cupido. Sentimentos profundos e sérios (a solidão, a saudade, o exílio) constituem o assunto doutras composições de carácter romântico.

Vê-se, portanto, que a Lírica de João Mínimo apresenta uma grande variedade de inspirações, e algumas composições têm um aspecto híbrido-românticas no assunto, clássicas no estilo.

Na segunda parte das Flores sem fruto e nas «Folhas caídas» os temas políticos praticamente desaparecem e o que predomina é o lirismo puro, simples, amável, delicadamente sensual, de uma musicalidade verbal admirável, de metros curtos, e, por vezes, irónico. É uma espécie de impressionismo poético que Garrett cultivou com uma naturalidade e perícia formal inconfundíveis. As poesias «Flor singela», «A minha rosa»,

«O farol e o baixel», «Olhos negros» (Flores sem fruto), «Perfumes da rosa», «Rosa sem espinhos», «Coquette dos prados», e «Barca bela» (Folhas caídas) são verdadeiras jóias líricas, dignas de figurar numa antologia da poesia portuguesa.

Este lirismo fluente, de ritmos populares, aparentemente espontâneo constitui uma tradição que remonta aos trovadores medievais, continua em Camões, Rodrigues Lobo, Gonzaga, João de Deus, Pessoa e Camilo Pessanha. Garrett, que tanto amou as tradições e a arte portuguesa, podia realmente afirmar com legítimo orgulho: «Em tudo sou português velho e assim hei-de morrer» (Prefácio da Lírica de João Mínimo).

É ainda esse portuguesismo que o leva a compilar e estilizar os poemas narrativos tradicionais incluídos no «Romanceiro».

Esta poesia primitiva, que o Romantismo reabilitou, atraiu Garrett por duas razões: pelos seus ritmos («a beleza destes nossos versos octossílabos», prefácio da Adozinda) e pela simplicidade sintética e naturalidade com que se narram situações intensamente dramáticas, que mostram a força das paixões e dos instintos humanos (amores incestuosos e romanescos, adultérios, virtudes exemplares). O sublime e o grotesco, no sentido que lhe atribui V. Hugo, isto é, o corpo e a alma, definem o espírito do «Romanceiro».


Túlio Ramires Ferro, Estrada Larga I


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