Alexandre Herculano

EURICO, O PRESBÍTERO (extracto)


PRÓLOGO

Paro as almas, não sei se digo demasiadamente positivas, se demasiadamente grosseiras, o celibato do sacerdócio não passa de uma condição, de uma fórmula social aplicada a certa classe de indivíduos cuja existência ela modifica vantajosamente por um lado e desfavoravelmente por outro. A filosofia do celibato para os espíritos vulgares acaba aqui. Aos olhos dos que avaliam as coisas e os homens só pela sua utilidade social, essa espécie de insulação doméstica do sacerdote, essa indirecta abjuração dos afectos mais puros e santos, os da família, é condenada por uns como contrária ao interesse das nações, como danosa em moral e em política, e defendida por outros como útil e moral. Deus me livre de debater matéria tantas vezes disputada, tantas vezes exaurida pelos que sabem a ciência do mundo e pelos que sabem a ciência do Céu! Eu, por minha parte, fraco argumentador, só tenho pensado no celibato à luz do sentimento e sob a influência da impressão singular que desde verdes anos fez em mim a ideia da irremediável solidão de alma a que a Igreja condenou os seus ministros, espécie de amputação espiritual, em que para o sacerdote morre a esperança de completar a sua existência na Terra. Suponde todos os contentamentos, todas as consolações que as imagens celestiais e a crença viva podem gerar, e achareis que estas não suprem o triste vácuo da soledade do coração. Dai às paixões todo o ardor que puderdes, aos prazeres mil vezes mais intensidade, aos sentidos a máxima energia e convertei o mundo em paraíso, mas tirai dele a mulher, e o mundo será um ermo melancólico, os deleites serão apenas o prelúdio do tédio. Muitas vezes, na verdade, ela desce, arrastada por nós, ao charco imundo da extrema depravação moral; muitíssimas mais, porém, nos salva de nós mesmos e, pelo afecto e entusiasmo, nos impele a quanto há bom e generoso. Quem, ao menos uma vez, não creu na existência dos anjos revelada nos profundos vestígios dessa existência impressos num coração de mulher? E porque não seria ela na escala da criação um anel da cadeia dos entes, presa, de um lado, à humanidade pela fraqueza e pela morte e, do outro, aos espíritos puros pelo amor e pelo mistério? Porque não seria a mulher o intermédio entre o céu e a terra?

Mas, se isto assim é, ao sacerdote não foi dado compreendê-lo; não lhe foi dado julgá-lo pelos mil factos que no-lo têm dito a nós os que não jurámos junto do altar repelir metade da nossa alma, quando a Providência no-la fizesse encontrar na vida. Ao sacerdote cumpre aceitar esta por verdadeiro desterro: para ele o mundo deve passar desconsolado e triste, como se nos apresenta ao despovoarmo-lo daquelas por quem e para quem vivemos.

A história das agonias íntimas geradas pela luta desta situação excepcional do clero com as tendências naturais do homem seria bem dolorosa e variada, se as fases do coração tivessem os seus anais como os têm as gerações e os povos. A obra da lógica potente da imaginação que cria o romance seria bem grosseira e fria comparada com a terrível realidade histórica de uma alma devorada pela solidão do sacerdócio.

Essa crónica de amarguras procurei-a já pelos mosteiros quando eles desabavam no meio das nossas transformações políticas. Era um buscar insensato. Nem nos códices iluminados da Idade Média, nem nos pálidos pergaminhos dos arquivos monásticos estava ela. Debaixo das lájeas que cobriam os sepulcros claustrais havia, por certo, muitos que a sabiam; mas as sepulturas dos monges achei-as mudas. Alguns fragmentos avulsos que nas minhas indagações encontrei eram apenas frases soltas e obscuras da história que eu buscava debalde; debalde, porque à pobre vítima, quer voluntária, quer forçada ao sacrifício, não era lícito gemer, nem dizer aos vindouros: «Sabei quanto eu padeci!»

E, por isso mesmo que sobre ela pesava o mistério, a imaginação vinha aí para suprir a história. Da ideia do celibato religioso, das suas consequências forçosas e dos raros vestígios que destas achei nas tradições monásticas nasceu o presente livro.

Desde o palácio até a taberna e o prostíbulo; desde o mais esplêndido viver até o vegetar do vulgacho mais rude, todos os lugares e todas as condições têm tido o seu romancista. Deixai que o mais obscuro de todos seja o do clero. Pouco perdereis com isso.

O Monasticon é uma intuição quase profética do passado, às vezes intuição mais dificultosa que a do futuro.

Sabeis qual seja o valor da palavra monge na sua origem remota, na sua forma primitiva? É o de – só e triste.

Por isso na minha concepção complexa, cujos limites não sei de antemão assinalar, dei cabida à crónica-poema, lenda ou o que quer que seja (1) do presbítero godo: dei-lha, também, porque o pensamento dela foi despertado pela narrativa de certo manuscrito gótico, afumado e gasto do roçar dos séculos, que outrora pertenceu a um antigo mosteiro do Minho.

O Monge de Cister, que deve seguir-se a Eurico, teve, proximamente, a mesma origem.


Ajuda, Novembro de 1843.


NOTA:

(1) Sou o primeiro que não sei classificar este livro; nem isso me aflige demasiado. Sem ambicionar para ele a qualificação de poema em prosa – que não o é por certo –, também vejo, como todos hão-de ver, que não é um romance histórico, ao menos conforme o criou o modelo e a desesperação de todos os romancistas, o imortal Scott. Pretendendo fixar a acção que imaginei numa época de transição – a da morte do Império Gótico e do nascimento das sociedades modernas da Península –, tive de lutar com dificuldade de descrever sucessos e de retratar homens que, se, por um lado, pertenciam a eras que nas recordações da Espanha tenho por análogas aos tempos heróicos da Grécia, precediam imediatamente, por outro, a época a que, em rigor, podemos chamar histórica, ao menos em relação ao romance. Desde a primeira até à última página do meu pobre livro caminhei sempre por estrada duvidosa traçada em terreno movediço; se o fiz com passos firmes ou vacilantes, outros, que não eu, o dirão.

Conhecemos, talvez, a sociedade visigótica melhor que a de Oviedo e Leão, que a do nosso Portugal no primeiro período da sua existência como indivíduo político. Sabemos melhor quais foram as instituições dos Godos, as suas leis, os seus usos, a sua civilização intelectual e material. do que sabemos o que era isso tudo em séculos mais próximos de nós. O esplendor dos paços, as fórmulas dos tribunais, os ritos dos templos, a administração, a milícia, a propriedade, as relações civis, são menos nebulosas e incertas para nós nas eras góticas que durante o longo período da restauração cristã. E contudo, o reproduzir a vida dessa sociedade, que nos legou tantos monumentos, com as formas do verdadeiro romance histórico temo-lo por impossível, ao passo que o representar a existência dos homens do undécimo ou dos seguintes séculos será para o que os tiver estudado, não digo fácil, mas, sem dúvida, possível.

Qual e a causa disto?

É que nós conhecemos a vida pública dos Visigodos e não a sua vida íntima, enquanto os séculos da Espanha restaurada revelam-nos a segunda com mais individuação e verdade que a primeira. Dos Godos restam-nos códigos, história, literatura, monumentos escritos de todo o género, mas os códigos e a literatura são reflexos, mais ou menos pálidos, das leis e erudição do Império Romano, e a história desconhece o povo. O goticismo espanhol, ao primeiro aspecto, parece mover-se. Palpamo-lo: é uma estátua de mármore, fria, imóvel, hirta. As portas das habitações dos cidadãos cerram-nas os sete selos do Apocalipse: são a campa da família. A família goda é para nós como se nunca existira.

Não cabe numa nota o fazer sentir esse não sei quê de majestade escultural que conserva sempre a raça visigótica, por mais que tentemos galvanizá-la, nem o contrapor-lhe as gerações, nascidas durante a reacção contra o islamismo, que surgem e agitam-se e vivem quando lhes aplicamos a corrente eléctrica e misteriosa que, partindo da imaginação, vai despertar os tempos que foram do seu calado sepulcro.

Desta diferença, que é mais fácil sentir que definir, nasce a necessidade de estabelecer uma distinção nas formas literárias aplicadas às diversas épocas da antiga Espanha, a romano-germânica e a moderna.

O período visigótico deve ser para nós como os tempos homéricos da Península. Nos cantos do presbítero tentei achar o pensamento e a cor que convém a semelhante assunto, e em que cumpre predominem o estilo e formas da Bíblia e do Eda – as tradições cristas e as góticas, que, partindo do Oriente e do Norte, vieram encontrar-se e completar-se, em relação à poesia da vida humana, no Extremo Oriente da Europa.

O romance histórico, como o concebeu Walter Scott, só é possível aquém do oitavo – talvez só aquém do décimo século; porque só aquém dessa data a vida da família, o homem sinceramente homem, e não ensaiado e trajado para aparecer na praça pública, se nos vai pouco a pouco revelando. As formas e o estilo que convêm aos tempos visigóticos seriam, desde então, absurdos e, parece-me, até, que ridículos.

A Espanha romano-germânica transformou-se na Espanha rigorosamente moderna no terrível cadinho da conquista árabe. A obra literária (novela ou poema – verso ou prosa – que importa?) relativa a essa transição deve combinar as duas formulas – indicar as duas extremidades a que se prende; fazer sentir que o descendente de Teodorico ou de Leovigildo será o ascendente do Cid ou do Lidador; que o herói se vai transformar em cavaleiro; que o servo, entidade duvidosa entre homem e coisa, começa a converter-se em altivo e irrequieto burguês.

E a forma e o estilo devem aproximar-se mais ou menos de um ou de outro extremo, conforme a época em que lançamos a nossa concepção esta mais vizinha ou mais remota da que vai deixando de existir ou da que vem surgindo. A dificultosa mistura dessas cores na paleta do artista nenhuma doutrina, nenhum preceito lha diz: ensinar-lha-á o instinto.

Tive eu esse instinto? E mais provável o não que o sim. Se a arte fora fácil, para todos os que tentam possuí-la, não nos faltariam artistas!


Capítulo I

OS VISIGODOS

A um tempo toda a raça goda, soltas as rédeas do governo, começou a inclinar o ânimo para a lascívia e soberba.

MONGE DE SILOS: Chronicon, c. 2

A raça dos Visigodos conquistadora das Espanhas subjugara toda a Península havia mais de um século. Nenhuma das tribos germânicas que, dividindo entre si as províncias do império dos césares, tinham tentado vestir sua bárbara nudez com os trajos despedaçados, mas esplêndidos, da civilização romana soubera como os Godos ajuntar esses fragmentos de púrpura e ouro para se compor a exemplo de povo civilizado. Leovigildo expulsara da Espanha quase que os derradeiros soldados dos imperadores gregos, reprimira a audácia dos Francos, que em suas correrias assolavam as províncias visigóticas de além dos Pirenéus, acabara com a espécie de monarquia que os Suevos tinham instituído na Galécia e expirara em Toletum, depois de ter estabelecido leis políticas e civis e a paz e ordem públicas nos seus vastos domínios, que se estendiam de mar a mar e, ainda, transpondo as montanhas da Vascónia, abrangiam grande porção da antiga Gália Narbonense.

Desde essa época, a distinção das duas raças, a conquistadora ou goda e a romana ou conquistada, quase desaparecera, e os homens do Norte haviam-se confundido juridicamente com os do Meio-Dia em uma só nação, para cuja grandeza contribuíra aquela com as virtudes ásperas da Germânia, esta com as tradições da cultura e polícia romanas. As leis dos césares, pelas quais se regiam os vencidos, misturaram-se com as singelas e rudes instituições visigóticas, e já um código único, escrito na língua latina, regulava os direitos e deveres comuns quando o arianismo, que os Godos tinham abraçado abraçando o Evangelho, se declarou vencido pelo catolicismo, a que pertencia a raça romana. Esta conversão dos vencedores à crença dos subjugados foi o complemento da fusão social dos dois povos. A civilização, porém, que suavizou a rudeza dos bárbaros era uma civilização velha e corrupta. Por alguns bens que produziu para aqueles homens primitivos, trouxe-lhes o pior dos males, a perversão moral. A monarquia visigótica procurou imitar o luxo do império que morrera e que ela substituíra. Toletum quis ser a imagem de Roma ou de Constantinopla. Esta causa principal, ajudada por muitas outras, nascidas em grande parte da mesma origem, gerou a dissolução política por via da dissolução moral.

Debalde muitos homens de génio revestidos da autoridade suprema tentaram evitar a ruína que viam no futuro: debalde o clero espanhol, incomparavelmente o mais alumiado da Europa naquelas eras tenebrosas e cuja influência nos negócios públicos era maior que a de todas as outras classes juntas, procurou nas severas leis dos concílios, que eram ao mesmo tempo verdadeiros parlamentos políticos, reter a nação que se despenhava. A podridão tinha chegado ao âmago da árvore, e ela devia secar. O próprio clero se corrompeu por fim. O vício e a degeneração corriam soltamente, rota a última barreira. Foi então que o célebre Roderico se apossou da coroa. Os filhos do seu predecessor Vitiza, os mancebos Sisebuto e Ebas, disputaram-lha largo tempo; mas, segundo parece dos escassos monumentos históricos dessa escura época, cederam por fim, não à usurpação, porque o trono gótico não era legalmente hereditário, mas à fortuna e ousadia do ambicioso soldado, que os deixou viver em paz na própria corte e os revestiu de dignidades militares. Daí, se dermos crédito a antigos historiadores, lhe veio a última ruína na batalha do rio Chrysus ou Guadalete, em que o império gótico foi aniquilado.

No meio, porém, da decadência dos Godos, algumas almas conservaram ainda a têmpera robusta dos antigos homens da Germânia. Da civilização romana elas não haviam aceitado senão a cultura intelectual e as sublimes teorias morais do cristianismo. As virtudes civis e, sobretudo, o amor da pátria tinham nascido para os Godos logo que, assentando o seu domínio nas Espanhas, possuíram de pais a filhos o campo agricultado, o lar doméstico, o templo da oração e o cemitério do repouso e da saudade. Nestes corações, onde reinavam afectos ao mesmo tempo ardentes e profundos, porque neles a índole meridional se misturava com o carácter tenaz dos povos do Norte, a moral evangélica revestia esses afectos duma poesia divina, e a civilização ornava-os de uma expressão suave, que lhes realçava a poesia. Mas no fim do século sétimo eram já bem raros aqueles em quem as tradições da cultura romana não haviam subjugado os instintos generosos da barbaria germânica e a quem o cristianismo fazia ainda escutar o seu verbo íntimo, esquecido no meio do luxo profano do clero e da pompa insensata do culto exterior. Uma longa paz com as outras nações tinha convertido a antiga energia dos Godos em alimento das dissensões intestinas, e a guerra civil, gastando essa energia, havia posto em lugar dela o hábito das traições covardes, das vinganças mesquinhas, dos enredos infames e das abjecções ambiciosas. O povo, esmagado debaixo do peso dos tributos, dilacerado pelas lutas dos bandos civis, prostituído às paixões dos poderosos, esquecera completamente as virtudes guerreiras de seus avós. As leis de Vamba e as expressões de Ervígio no duodécimo concilio de Toletum revelam quão fundo ia nesta parte o cancro da degeneração moral das Espanhas. No meio de tantos e tão cruéis vexames e padecimentos, o mais custoso e aborrecido de todos eles para os afeminados descendentes dos soldados de Teodorico, de Torismundo, de Teudes e de Leovigildo era o vestir as armas em defensão daquela mesma pátria que os heróis visigodos tinham conquistado para a legarem a seus filhos, e a maioria do povo preferia a infâmia que a lei impunha aos que recusavam defender a terra natal aos riscos gloriosos dos combates e à vida fadigosa da guerra.

Tal era, em resumo, o estado político e moral da Espanha na época em que aconteceram os sucessos que vamos narrar.


Capítulo II

O PRESBÍTERO

Sublimando ao grau de presbítero... quanta brandura, qual caridade fosse a sua o amor de todos lho demonstrava.

ÁLVARO DE CÓRDOVA, Vida de Santo Eulógio, c. 1

No recôncavo da baía que se encurva ao oeste do Calpe, Carteia, a filha dos Fenícios, mira ao longe as correntes rápidas do estreito que divide a Europa da África. Opulenta outrora, os seus estaleiros tinham sido famosos antes da conquista romana, mas apenas restam vestígios deles; as suas muralhas haviam sido extensas e sólidas, mas jazem desmoronadas; os seus edifícios foram cheios de magnificência, mas caíram em ruínas; a sua povoação era numerosa e activa, mas rareou e tornou-se indolente. Passaram por lá as revoluções, as conquistas, todas as vicissitudes da Ibéria, durante doze séculos, e cada vicissitude dessas deixou aí uma pegada de decadência. Os curtos anos de esplendor da monarquia visigótica tinham sido para ela como um dia formoso de Inverno em que os raios do Sol resvalam pela face da Terra sem a aquecerem, para depois vir a noite, húmida e fria como as que a precederam. Debaixo do governo de Vitiza e de Roderico a antiga Carteia é uma povoação decrépita e mesquinha, à roda da qual estão espalhados os fragmentos da passada opulência, e que, talvez, na sua miséria, apenas nas recordações que lhe sugerem esses farrapos de louçainhas juvenis acha algum refrigério às amarguras da malfadada velhice.

Não! Resta-lhe ainda outro: a religião do Cristo.

O presbitério, situado no meio da povoação, era um edifício humilde, como todos os que ainda subsistem alevantados pelos Godos sobre o solo da Espanha. Cantos enormes sem cimento alteiam-lhe os muros; cobre-lhe o âmbito um tecto achatado, tecido de grossas traves de carvalho subpostas ao ténue colmo: o seu portal profundo e estreito pressagia de certo modo a misteriosa portada da catedral da Idade Média: as suas janelas, por onde a claridade, passando para o interior, se transforma em tristonho crepúsculo, são como um tipo indeciso e rude das frestas que, depois, alumiaram os templos edificados no décimo quarto século, através das quais, coada . por vidros de mil cores, a luz ia bater melancólica nos alvos panos dos muros gigantes e estampar neles as sombras das colunas e arcos enredados das naves. Mas, se o presbitério visigótico, no escasso da claridade, se aproxima do tipo cristão de arquitectura, no resto revela que ainda as ideias grosseiras do culto de Ódin não se têm apagado de todo nos filhos e netos dos bárbaros, convertidos há três ou quatro séculos à crença do Crucificado.

O presbítero Eurico era o pastor da pobre paróquia de Carteia. Descendente de uma antiga familia bárbara, gardingo na corte de Vitiza, depois de ter sido tiufado ou milenário do exército visigótico, vivera os ligeiros dias da mocidade no meio dos deleites da opulenta Toletum. Rico, poderoso, gentil, o amor viera, apesar disso, quebrar a cadeia brilhante da sua felicidade. Namorado de Hermengarda, filha de Fávila, duque de Cantábria, e irmã do valoroso e depois tão célebre Pelágio, o seu amor fora infeliz. O orgulhoso Fávila não consentira que o menos nobre gardingo pusesse tão alto a mira dos seus desejos. Depois de mil provas de um afecto imenso, de uma paixão ardente, o moço guerreiro vira submergir todas as suas esperanças. Eurico era uma destas almas ricas de sublime poesia a que o mundo deu o nome de imaginações desregradas, porque não é para o mundo entendê-las. Desventurado, o seu coração de fogo queimou-lhe o viço da existência ao despertar dos sonhos do amor que o tinham embalado. A ingratidão de Hermengarda, que parecera ceder sem resistência à vontade de seu pai, e o orgulho insultuoso do velho prócere deram em terra com aquele ânimo, que o aspecto da morte não seria capaz de abater. A melancolia que o devorava, consumindo-lhe as forças, fê-lo cair em longa e perigosa enfermidade, e, quando a energia de uma constituição vigorosa o arrancou das bordas do túmulo, semelhante ao anjo rebelde, os toques belos e puros do seu gesto formoso e varonil transpareciam-lhe a custo através do véu de muda tristeza que lhe entenebrecia a fronte. O cedro pendia fulminado pelo fogo do céu.

Uma destas revoluções morais que as grandes crises produzem no espírito humano se operou então no moço Eurico. Educado na crença viva daqueles tempos; naturalmente religioso porque poeta, foi procurar abrigo e consolações aos pés d'Aquele cujos braços estão sempre abertos para receber o desgraçado que neles vai buscar o derradeiro refúgio. Ao cabo das grandezas cortesãs o pobre gardingo encontrara a morte do espírito, o desengano do mundo. Ao cabo da estreita senda da Cruz acharia ele, porvcntura, a vida e o repouso íntimos? Era este problema, no qual se resumia todo o seu futuro, que tentava resolver o pastor do pobre presbitério da velha cidade do Calpe.

Depois de passar pelos diferentes graus do sacerdócio, Eurico recebera ainda de Siseberto, o predecessor de Opas na Sé de Híspalis, o encargo de pastorear esse diminuto rebanho da povoação fenícia. O moço presbítero, legando à catedral uma porção dos senhorios que herdara juntamente com a espada conquistadora de seus avós, havia reservado apenas uma parte das próprias riquezas. Era esta a herança dos miseráveis, que ele sabia não escassearem na quase solitária e meia arruinada Carteia.

A nova existência de Eurico tinha modificado, porém não destruído, o seu brilhante carácter. A maior das humanas desventuras, a viuvez do espírito, abrandara, pela melancolia, as impetuosas paixões do mancebo e apagara nos seus lábios o riso do contentamento, mas não pudera desvanecer no coração do sacerdote os generosos afectos do guerreiro, nem as inspirações do poeta. O templo havia santificado aqueles, moldando-os pelo Evangelho, e tomando estas mais solenes, alimentando-as com as imagens e sentimentos sublimes estampados nas páginas sacrossantas da Bíblia. O entusiasmo e o amor tinham ressurgido naquele coração que parecera morto, mas transformados: o entusiasmo em entusiasmo pela virtude; o amor em amor dos homens. E a esperança? Oh, a esperança, essa é que não renascera!


Capítulo III

O POETA

Nenhum de vós ouse reprovar os hinos compostos em louvor de Deus.

Concílio de Toledo IV, c. 13

Desde então ninguém mais lhe seguiu os passos. Assentado nos alcantis do Calpe, vagabundo pelas campinas vizinhas ou embrenhado pelas selvas sertanejas, deixaram-no tranquilo embalar-se nos seus pensamentos. Na conta de inspirado por Deus, quase na de profeta, o tinham as multidões. Não gastava ele as horas que lhe sobejavam do exercício de seu laborioso ministério numa obra do Senhor? Não deviam esses hinos da soledade e da noite derramar-se como um perfume ao pé dos altares? Não completava Eurico a sua missão sacerdotal, revestindo a oração das harmonias do céu, estudadas e colhidas por ele no silêncio e na meditação? Mancebo, o numeroso clero das paróquias vizinhas considerava-o como o mais venerável entre os seus irmãos no sacerdócio, e os velhos procuravam na sua fronte, quase sempre carregada e triste, e nas suas breves mas eloquentes palavras o segredo das inspirações e o ensino da sabedoria.

Mas, se os que o acatavam como um predestinado soubessem quão negra era a predestinação do poeta, porventura que essa espécie de culto de que o cercavam se converteria em compaixão ou antes em terror. Os hinos tão suaves, tão cheios de unção, tão íntimos, que os salmistas das catedrais de Espanha repetiam com entusiasmo eram como o respirar tranquilo do sono da madrugada que vem depois de arquejar e gemer de pesadelo nocturno. Rápido e raro passava o sorrir nas faces de Eurico; profundas e indeléveis eram as rugas da sua fronte. No sorriso reverberava o hino pio, harmonioso, santo dessa alma, quando, alevantando-se da terra, se entranhava nos sonhos de um mundo melhor. Às rugas, porém, da fronte do presbítero, semelhantes às vagas varridas pelo noroeste, respondia um canto lúgubre de cólera ou desalento, que rebramia lá dentro, quando a sua imaginação, caindo, como a águia ferida, das alturas do espaço, se rojava pela morada dos homens. Era este canto doloroso e tétrico, o qual lhe transudava do coração em noites não dormidas, na montanha ou na selva, na campina ou no estreito aposento, que ele derramava em torrentes de amargura ou de fel sobre pergaminhos que nem o ostiário nem ninguém tinha visto. Estes poemas, em que palpitava a indignação e a dor de um ânimo generoso, eram o Getsémani do poeta. Todavia, os virtuosos nem sequer o imaginavam, porque não perceberiam como, tranquila a consciência e repousada a vida, um coração pode devorar-se a si próprio, e os maus não criam que o sacerdote, embebido unicamente em suas esperanças crédulas, em suas cogitações de além do túmulo, curasse dos males e crimes que roíam o império moribundo dos Visigodos; não criam que tivesse um verbo de cólera para amaldiçoar os homens aquele que ensinava o perdão e o amor. Era por isso que o poeta escondia as suas terríveis inspirações. Monstruosas para uns, objecto de ludíbrio para outros, numa sociedade corrupta, em que a virtude era egoísta e o vício incrédulo, ninguém o escutara, ou, antes, ninguém o entenderia.

Levado à existência tranquila do sacerdócio pela desesperança, Eurico sentira a princípio uma suave melancolia refrigerar-lhe a alma requeimada ao fogo da desdita. A espécie de torpor moral em que uma rápida transição de hábitos e pensamentos o lançara pareceu-lhe paz e repouso. A ferida afizera-se ao ferro que estava dentro dela, e Eurico supunha-a sarada. Quando um novo afecto veio espremê-la é que sentiu que não se havia cerrado, e que o sangue manava ainda, porventura, com mais força. Um amor de mulher mal correspondido a tinha aberto: o amor da pátria, despertado pelos acontecimentos que rapidamente sucediam uns aos outros na Espanha despedaçada pelos bandos civis, foi a mão que de novo abriu essa chaga. As dores recentes, avivando as antigas, começaram a converter pouco a pouco os severos princípios do cristianismo em flagelo e martírio daquela alma, que, a um tempo, o mundo repelia e chamava e que nos seus transes de angústia sentia escrita na consciência com a pena do destino esta sentença cruel: nem a todos dá o túmulo a bonança das tempestades do espírito.


Capítulo IV

RECORDAÇÕES

Onde se escondeu enfraquecida a antiga fortaleza?

Sto EULÓGIO, Memorial dos Santos, liv. 3º

4

O mundo actual nunca poderá entender plenamente o afecto que vibrando-me dolorosamente as fibras do coração, me arrastava para as solidões marinhas do promontório, quando os outros homens nos povoados se apinhavam à roda do lar aceso e falavam das suas mágoas infantis e dos seus contentamentos de um instante.

E que me importa a mim isso? Virão um dia a esta nobre terra de Espanha gerações que compreendam as palavras do presbítero.

Arrastava-me para o ermo um sentimento íntimo, o sentimento de haver acordado, vivo ainda, deste sonho febril chamado vida, e de que hoje ninguém acorda, senão depois de morrer.

Sabeis o que é esse despertar de poeta?

É o ter entrado na existência com um coração que trasborda de amor sincero e puro por tudo quanto o rodeia, e ajuntarem-se os homens e lançarem-lhe dentro do seu vaso de inocência lodo, fel e peçonha e, depois, rirem-se dele:

É o ter dado às palavras – virtude, amor pátrio e glória – uma significação profunda e, depois de haver buscado por anos a realidade delas neste mundo, só encontrar aí hipocrisia, egoísmo e infâmia:

É o perceber à custa de amarguras que o existir é padecer, o pensar descrer, o experimentar desenganar-se e a esperança nas cousas da terra uma cruel mentira de nossos desejos, um fumo ténue que ondeia em horizonte aquém do qual está assentada a sepultura.

Este é o acordar do poeta. Depois disso, nos abismos da sua alma só há para mandar aos lábios um sorriso de desprezo em resposta às palavras mentidas dos que o cercam ou uma voz de maldição desabridamente sincera para julgar as acções dos homens.

É então que para ele há unicamente uma vida real – a íntima; unicamente uma linguagem inteligível – a do bramido do mar e do rugido dos ventos; unicamente uma convivência não travada de perfídia – a da solidão.


Capítulo V

A MEDITAÇÃO

Então os Godos cairão na guerra;

Então fero inimigo há-de oprimi-los

Com ruínas sem conto, e o susto e a fome.

Hino de Sto Isidoro, LUCAS DE TUI, Chronicon, liv. 3º

2

Quem é hoje cristão e godo nesta nossa terra de Espanha?

Uma geração degenerada pisa os restos de heróis: homens sem crença, blasfemos ou hipócritas, sucederam aos que criam na grandeza moral do género humano e na providência de Deus.

Dantes, os príncipes do povo eram os capitães das hostes: a espada dos reis a primeira que se tingia no sangue dos inimigos da pátria.

Dantes, o sacerdote era o anjo da terra: os que passavam curvavam-se para beijar a fímbria da sua estringe; porque a paz e a esperança entravam em todas as moradas sobre que desciam as bênçãos dele.

Dantes, o juiz era o pai do oprimido, o tribunal o abrigo do inocente, a justiça o nervo do Império Gótico.

Dantes, nos conselhos dos prelados, dos nobres, dos homens livres, as leis iam buscar a sanção da sabedoria e aferir-se pela utilidade comum. Lá, o rei sabia que o poder lhe vinha de Deus e da vontade dos Godos, que o ceptro era cajado de pastor, não cutelo de algoz, e a coroa uma carga pesada, não uma auréola de vanglória.

Hoje, nos paços de Toletum só retumba o ruído das festas, os francos e os Vascónios talam as províncias do Norte, e a espada dos guerreiros só reluz nas lutas civis.

Hoje, os príncipes na embriaguez dos banquetes esqueceram-se das tradições de avós; esqueceram-se de que era aos capitães das hostes da Germânia que os romanos imbeles davam o nome de reis.

Hoje, a prostituição entrou no templo do Crucificado: os Claustros das catedrais velam com o seu manto de pedra as abominações da torpeza, e as mãos do sacerdote deixam muitas vezes humedecida a tela que veste os altares com vestígios do sangue derramado covarde e vilmente.

Hoje, a cobiça assentou-se no lugar da equidade: o juiz vende a consciência no mercado aos poderosos, como as mulheres da Babilónia vendiam a pudicícia nas praças públicas aos que passavam, diante da luz do dia.,

Hoje, a espada substituiu o conselho dos prelados, dos nobres e dos homens livres: a coroa é uma conquista, a lei vontade do desonrado vencedor de pelejas domésticas, a liberdade palavra mentida.

Império de Espanha, império de Espanha! porque foram os teus dias contados?


Capítulo VI

SAUDADE

Cristo! – dá-me o perdão, dá-me o remédio;

Que entre tão vário mal fraqueia a mente!

EUGÉNIO TOLEDANO, Opúsculos, XI

Na Ilha Verde.

Ao pôr do Sol das calendas de Abril da era de 749.

1

O mar estava tranquilo, e o ar puro e diáfano. As costas de África fronteiras, lá na extremidade do horizonte, pareciam uma orla escura bordada no manto azul do firmamento.

A aragem do norte encrespava suavemente a superfície das águas; as ondas vinham espraiar-se preguiçosas no areal da baía.

O barqueiro Ranimiro dormia na sua barca amarrada na foz do Palmónio. Uma saudade indizível atraía-me para o mar.

Saltei na barca; o ruído que fiz despertou Ranimiro.

– Ao largo – disse-lhe eu. Empunhou os remos, e partimos.

– Para onde, presbítero? – perguntou o barqueiro, depois de vogar alguns momentos em silêncio.

– Quero respirar o ar puro e fresco da tarde; mais nada – repliquei. – Leva-me para onde te aprouver.

– Se vos parece – tornou Ranimiro –, rodearemos a Ilha Verde, entraremos no canal, e saltareis na margem. Pelo tempo que vai, ela estará agora esmaltada de verdura e boninas.

Calei-me: o barqueiro tomou por aprovação o meu silêncio. Voltando a proa para poente, corremos ao largo da ilha e, rodeando a sua margem ocidental, abicámos em terra pelo lado da enseada que a separa do continente.

Ranimiro não se enganara: como uma tapeçaria riquíssima lançada ao som das águas, a superfície da ilha agitava-se trémula com a aragem da terra, que curvava brandamente as flores e as folhinhas lanceoladas da relva.

Assentado à sombra de uma rocha que formava um promontoriozinho do lado do sul, lancei os olhos em volta até onde se descobria o horizonte. Lá, no extremo do Estreito para a banda do mar interior, viam-se na ponta da África os cimos das torres de Septum fronteira aos cerros escalvados do Calpe. De Septum para o ocidente as costas africanas contrastavam nas suas ondulações suaves com a penedia áspera das ribas hispânicas, e, confrangido entre os dois continentes, o mar balouçava-se resplandecente com os raios já inclinados do Sol.

De roda de mim a atmosfera estava impregnada de um hálito perfumado: era a natureza que sorria afagada pela Primavera. As aves aquáticas redemoinhavam nos ares ou pousavam sobre as águas, e pareciam, nos seus voos incertos, ora vagarosos, ora rápidos, folgarem com os primeiros dias da estação dos amores.

Uma melancolia suave se me erguia lentamente no coração, debaixo daquele céu puro, naquela atmosfera balsâmica, ante aqueles horizontes saudosos. As lágrimas rebentaram-me involuntariamente dos olhos.

Era feliz neste momento, porque repousava de amarguras. Olhei para a barca: Ranimiro adormecera de novo à proa. Repousavam bem perto um do outro a matéria e o espírito.

Bem-aventurado, pensei eu comigo, aquele em quem os afagos de uma tarde serena de Primavera no silêncio da solidão produzem o torpor dos membros; porque nessa alma dormem profundamente as dores no meio do ruído da vida!

E este pensamento trouxe-me pouco e pouco à memória as tempestades do passado. Ai de mim! Logo se me enxugaram as lágrimas, porque eram de consolação, e essa lembrança as estancou!

2

Porquê não adormeço eu, como o rude barqueiro, ao murmúrio das vagas sonolentas, ao sussurro da brisa do norte?

Porque mulher bárbara não entendeu o que valia o amor de Eurico; porque velho orgulhoso e avaro sabia mais um nome de avós do que eu, e porque nos seus cofres havia mais alguns punhados de ouro do que nos meus.

As mão imbeles de uma donzela e de um velho esmagaram e despedaçaram o coração de um homem, como os caçadores covardes assassinam no fojo o leão indomável e generoso.

E, todavia, este coração sentia a voz da consciência pregoar-lhe largos destinos! Porquê não emudeceu essa voz quando do pórtico do templo lancei ao mundo a maldição da despedida?

Porquê me lembra com saudade, aqui, a estas horas, o tempo das minhas esperanças?

É porque o viver é o ecúleo do espírito: a alma estorce-se como agonizante no meio dos mais incomportáveis tormentos, sem nunca poder expirar, e os seus afectos profundos são com ela; não lhes é dado o morrer.

Paz e esquecimento, oh meu Deus!

3

Os raios derradeiros do Sol desapareceram: o clarão avermelhado da tarde vai quase vencido pelo grande vulto da noite, que se alevanta do lado de Septum. Nesse chão tenebroso do oriente a tua imagem serena e luminosa surge a meus olhos, oh Hermengarda, semelhante à aparição do anjo da esperança nas trevas do condenado.

E essa imagem é pura e sorri; orna-lhe a fronte a coroa das virgens; sobe-lhe ao rosto a vermelhidão do pudor; o amículo alvíssimo da inocência, flutuando-lhe em volta dos membros, esconde-lhe as formas divinas, fazendo-as, porventura, suspeitar menos belas que a realidade.

É assim que eu te vejo em meus sonhos de noites de atroz saudade: mas, em sonhos ou desenhada no vapor do crepúsculo, tu não és para mim mais do que uma imagem celestial; uma recordação indecifrável; um consolo e ao mesmo tempo um martírio.

Não eras tu emanação e reflexo do céu? Porquê não ousaste, pois, volver os olhos para o fundo abismo do meu amor? Verias que esse amor do poeta é maior que o de nenhum homem; porque é imenso, como o ideal, que ele compreende; eterno, como o seu nome, que nunca perece.

Hermengarda, Hermengarda, eu amava-te muito! Adorava-te só no santuário do meu coração, enquanto precisava de ajoelhar ante os altares para orar ao Senhor. Qual era o melhor dos dois templos?

Foi depois que o teu desabou, que eu me acolhi ao outro para sempre.

Porquê vens, pois, pedir-me adorações quando entre mim e ti está a cruz ensanguentada do Calvário; quando a mão inexorável do sacerdócio soldou a cadeia da minha vida às lájeas frias da igreja; quando o primeiro passo além do limiar desta será a perdição eterna?

Mas, ai de mim!, essa imagem que parece sorrir-me nas solidões do espaço está estampada unicamente na minha alma e reflecte-se no céu do oriente através destes olhos perturbados pela febre da loucura, que lhes queimou as lágrimas.

Tu, Hermengarda, recordares-te?! Mentira!... Crês que morri, ou porventura, nem isso crês; porque para creres era preciso lembrares-te, e nem uma só vez te lembrarás de mim!

Lá, no tumulto dos cortesãos, onde o amor é cálculo ou sentimento grosseiro, terás achado quem te chame sua, quem te aperte entre os braços, quem tivesse para dar a teu pai o preço do teu corpo e te comprasse como alfaia preciosa para serviço doméstico. O velho estará contente, porque trocou sua filha por ouro.

A isto chama prudência o mundo estúpido e ambicioso; a isto, que não é mais do que uma prostituição abençoada sacrilegamente perante as aras sacrossantas. Oh, quantas vezes esse pensamento repugnante me tem feito vagueara louco pelas montanhas, uivando como o lobo esfaimado e tentando despedaçar os rochedos com as mãos, donde me goteja o sangue!

E tu folgas e ris! Oxalá nunca saibas quão intenso e atroz é o meu tormento, que devo velar diante dos homens debaixo de aspecto tranquilo, como se, em vez de martírio, ele fosse um abominável crime.

4

E quem te disse, presbítero, que o teu amor não era um crime?

Tens razão, consciência! Quando aos pés do venerável Siseberto o gardingo Eurico jurou que abandonava o mundo, devia despir as paixões que do mundo trouxera.

A luz brilhantes de afeições e esperanças a que vivia e que me povoava o coração de felicidade devia apagar-se então, como a lâmpada do templo ao amanhecer; porque eu voltava-me para o céu, buscando a luz do Senhor.

Mas o sol, apenas nasceu para mim, logo desapareceu no ocaso, e os que me crêem alumiado mal pensam que vivo em trevas!

As minhas paixões não podiam morrer, porque eram imensas, e o que é imenso é eterno.

E assim, nem ouso pedir a paz do sepulcro; porque para mim não haveria paz, senão no aniquilamento.

O aniquilamento! Que mal te fiz eu, oh meu Deus, para não me deixares cá dentro mais que uma ideia risonha, mais que um desejo capaz de encher o abismo da minha desventura? Que mal te fiz eu para que esse desejo, essa ideia seja a que unicamente resta ao precito que se revolve em perpétuas angústias?

Mas para mim, como para ele, tal pensamento é vão e mentido! Eternidade, eternidade, a alma do homem está encerrada e cativa no ilimitado do teu império!


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