Silva Gaio

António de Oliveira da Silva Gaio (1830-1870) nasceu em Viseu e faleceu em Buçaco. Educado no seminário de Almeida, formou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra, onde foi professor. Fundou na mesma cidade O Comércio de Coimbra. Publicou apenas um romance, Mário, que relata as lutas entre liberais e absolutistas, inserindo-se na corrente romântica, com influências de Alexandre Herculano e Camilo Castelo Branco. Obras de ficção: Mário (1868). Teatro: Frei Caetano Brandão (1869).


MÁRIO

CAPÍTULO I

Um presbitério na Beira

Conheceis a Beira Alta?

É uma fértil província, portuguesa de lei, que vê, a leste, a serra da Estrela com as suas neves; a oeste, o Caramulo com a sua tristeza; ao sul, o Buçaco de gloriosa memória e de mística tradição.

É acidentado o solo, sucedendo-se às pequenas ondulações do terreno as colinas, os cerros e os montes, separados uns dos outros por quebradas e valeiros, onde sussurram as águas, caídas das alturas.

As cumeadas ou são vestidas de urzes e de ásperos tojos, ou são toucadas com a rama verde-negra dos pinheiros. Mas tão rica de seiva é toda a terra que, nos lugares em que o machado desbastou o pinhal, vedes logo aparecer a leira verdejante, que irá escorregando pela encosta, até se casar com a farta cultura dos vales.

Aos soutos de castanheiros de carcomido tronco, e aos pinhais e carvalhedos, segue-se, aqui, o rico plaino animado pelo ribeiro e pelo moinho ruidoso; ali, a vinha a espreguiçar-se na encosta; mais acima, e longe e perto, a oliveira.

São tristes as aldeias, porque o granito beirão, mal desbastando e enegrecido, lhes dá a cor do luto; e como elas, e como a oliveira, é triste o aspecto do país. Não há as amplas planuras, em que a vista se deleita e se namora; nem os meandros da lisa corrente a luzir, em longa fita, por entre as folhas dos salgueirais; nem o alvejar de muita casa branca, no pendor das colinas; nem a laranjeira odorosa, enfileirada em pomares extensos, que, fora do Vale de Besteiros, somente a encontrareis como benéfico atavio da casa do lavrador!

Mas na altura, no lugar vistoso, aparecer-vos-á bem caiada a capela ou a igreja, meia escondida detrás das folhas de castanheiros, de carvalhos e de oliveiras. São a devota alegria das povoações vizinhas; são a respeitada causa de festas e romagens, onde o povo troca por sincera alegria o ar sério e grave, que lhe é habitual.

Na Beira vereis a infância dos processos agrícolas; o homem a suar trabalhos, a mulher a lidar no campo, e até as crianças empregadas no duro serviço, que só é devido aos braços. Mas ao cair do dia, vê-los-eis alegres e cantantes, apesar da fadiga de tantas horas. Descobrir-se-ão diante de vós, e ouvi-los-eis a dizerem «guarde-o Deus» ou «Deus o salve»!

Da torre da próxima igreja descerá o toque da ave-maria, como bênção da tarde, que vem de cima; e enquanto vão caminhando, silenciosos e recolhidos na breve oração, só ouvireis as campainhas dos gados, que se recolhem ao redil.

E em tudo vereis a crença e a força; o trabalho e a paz, e esta sã virilidade dos povos lavradores, que é o eterno louvor da natureza!

Caminhai para leste, vinde comigo. Na falda dessa Estrela, desse velho Hermínio, vereis unidas a agricultura e a indústria: que dos alcantis da montanha lhes corre a água em torrentes, para em baixo ser transformada em motor económico.

Dizeis-me que estamos em Dezembro de 1828; que tudo agora ali está velado por farto lençol de neve; que atravessa o corpo o frígido vento, que de lá sopra; que toda aquela parte da Beira é como um corpo morto e amortalhado.

Vinde, porém, assim mesmo. A hospitalidade é lá generosa e franca, e na lareira das asas crepitam os cavacos e ramos secos.

Daquela altura parecer-vos-á planície, este imenso espaço até ao Caramulo.

Levar-vos-ei ao presbitério de S. Romão: quereis vir?

É uma casa solitária, de um só andar, bem rasgada por janelas pouco acima do solo. Tem na frente um jardim, que parece guardado por duas grandes olaias, plantadas aos lados da entrada. Sobem-se dois degraus, e dá-se numa sala pequena com três portas ao fundo. À do meio aponta um corredor, sobre o qual se abrem alguns quartos, e que vai terminar em outra saída, atravessando todo o edifício. Às dos lados correspondem duas salas; uma, das visitas; outra, quarto de dormir do actual possuidor.

São oito horas da noite; Dezembro vai no fim, e esta nevando.

No fundo da casa vê-se o clarão brilhante, que da cozinha se expande para o próximo corredor. Sente-se de longe o rumorejar das fortes chamas, e o crepitar da lenha seca.

Sopra gélido vento! Brame nevosa tempestade! A lareira do presbitério de S. Romão é, a um tempo, conforto e alegria.

Lá fora pendem dos beirados as estalactites cristalinas, geladas lágrimas do Inverno. Do cimo da serra desce a grande toalha branca, que esconde, até muito longe, toda a verdura e toda a vida. As árvores cobertas de neve fazem lembrar rocadas de alvíssima lã, que alguém (feiticeira, decerto) emaranhasse, arrepelasse, desgrenhasse com fúria.

E voam e revoam em confusão os flocos de neve, encontrando-se, impelindo-se, afastando-se, subindo, descendo, pousando, erguendo-se: borboletas disformes, leves, subtis, a nadarem silenciosas no fluido atmosférico!

Sopra gélido vento! A lareira do presbitério tem calor e vida.

*

A lareira é ampla. Tem no topo a pilheira da cinza, e dos lados dois troncos aplainados. Está encostada à extremidade inferior do mais curto uma cadeira de braços, coberta de sola, com grandes pregos de cobre luzente, e assaentado nela um homem de cabelos brancos. É o vigário de S. Romão.

Uma mulher idosa, senhora no rosto, na linguagem e nas maneiras, entra na cozinha com os preparativos para o chá da noite. Desprende do gancho, cravado na parede, comprida mesa, que, gemendo nos gonzos, desce até à ilharga do vigário, e se firma no pé, que lhe está apenso. Estende-lhe em cima branca toalha, fabricada em casa; dispõe o necessário para a refeição, e ilumina tudo com um candeeiro de três bicos.

– Valha-te Deus, Leonor! – disse o vigário. És a abelha cuidadosa! Não podes chamar a criada?

– Não queres que eu te sirva, Maurício? A criada está a fabricar o pão.

– Vem então para aqui, irmã. Aproxima a tua cadeira.

– Que tempestade lá vai fora!

– E o rapaz sem vir – exclamou o vigário. – Colheu-o, decerto a neve pelo caminho, e ficou-se em algum povo.

– É nós aqui tão consolados! – disse Leonor, levantando um pouco a saia, e mostrando quentes sapatos de ourelo.

– Graças a Deus! – lhe tornou o padre. Coitada da pobreza.

– É para os pobres, Maurício, o pão que a criada está preparando. Ao menos, nenhum tem fome.

Acabado o chá, e levantada a mesa, pôs-se Leonor a fiar, e o vigário a ler, em voz alta, nos trabalhos de Jesus Cristo, do nosso Frei Tomé de Jesus.

*

Cantava o fuso na mão de Leonor; fervia o cozido nas panelas enfileiradas aos lados da fogueira, e os testos arfavam com a tensão dos vapores. Suspensa de fone corrente, estava uma caldeira com a comida dos porcos, e sobre esta, comprida colher de pau, com que Leonor, às vezes, abrandava o ímpeto da fervura. Em cima, no caniço, estalava, de quando em quando, a casca das castanhas. Tudo ali falava.

O vigário interrompeu a leitura, para admirar, com a irmã, as santas páginas do belo livro; e algum tempo depois, disse outra vez:

– O rapaz já cá não vem!

Como se lhe respondesse ao cuidado, entrou este na cozinha, com grande capa de palha, toda coberta de neve.

– Guarde-nos Deus, sr. vigário, e sra. D. Leonor!

– Pudeste romper, António Marcos! Ó rapariga, traz dali vinho para o meu afilhado. Senta-te, Marcos! Chega-te ao lume.

– Muito obrigado, sr. vigário...

– Pois sim, mas senta-te. Anda, tira a capa, e vem aquecer-te. Pobre rapaz!

– Aqui tem uma carta do correio, meu padrinho.

Leonor saiu, enquanto este se aquecia e o padre começava a ler. Quando voltou, viu Maurício com as lágrimas nos olhos, e perguntou inquieta:

– Que é, irmão?!

– Põe as mãos, Leonor, e agradece a Deus a felicidade que nos manda. Paulo volta de Itália, e traz consigo a nossa sobrinha para nunca mais nos deixarem. Oh! Deus de bondade!

– Deus de bondade! – repetia a velhinha de mãos erguidas.

*

O padre Maurício era um velho alto, de sessenta e quatro anos. O seu rosto magro, e pálido, faria lembrar as figuras ascéticas dos painéis religiosos, se uns olhos portugueses, de bondosa vivacidade, e uma boca de afável expressão, não suavizassem a séria gravidade das outras feições.

Tinha a fronte espaçosa, alta, e bem comada de cabelos brancos, que, rareados na frente, lhe caíam dos lados, em anéis.

Este velho abraçara o seu estado como verdadeiro crente da religião católica, e convencido de que o celibato, no sacerdócio, era uma homenagem e um sacrifício necessário. Pensava e ensinava que o período mais sublime da história da humanidade era aquele em que Jesus havia consagrado a liberdade e a igualdade, pregando no meio do aniquilamento geral das nações sujeitas a Roma.

Conhecia bem a história do papado, e condenava-lhe os abusos; mas cria e sustentava que eram, e seriam sempre, úteis e grandiosas a autoridade e unidade da Igreja. Lera Voltaire, e achava-o tão torpe como as máximas daqueles que, fazendo da religião uma arma política, haviam querido abafar a razão humana e a liberdade de pensamento. E no meio destas altas questões, que sabia tratar com ânimo seguro e reflectido, conservara sempre as tendências e os prazeres de um poeta namorado da natureza!

Nos seus largos passeios, ao descair do dia, punha-se a olhar para o Sol no ocaso, ou para a nuvem de colorido inconstante, ou para as flores do campo, ou para as árvores seculares, como se naquele peito houvesse um coração de vinte anos. Espreitava o lidar do insecto, e quantas vezes arredava obstáculos que lhe empeciam o trabalho! Quantas vezes se afastava de um lugar por supor que o voejar de tímido passarinho denunciava ninho próximo! Para que havia de inquietar a pobrezinha da ave, ele, que tanto se enlevava nos seus cantares; ele, que, dois passos mais além, achava, como atrás, como ao lado, a nervura da folha para admirar, o gomo do ramo para lhe imaginar a vida interior, a flor da árvore para lhe embalsamar o ar, o azul do céu, de além do qual via Deus?!

E então da sua alma subiam para o Criador de tantas harmonias, de tantas vidas, hinos santos. Cantava-os, mais e melhor que as palavras, o seu agradecido olhar.

– Deus! Deus! – clamava ele de mãos postas.

Os aldeões, ao vê-lo sereno e grave, sozinho, olhando, como em êxtase, para o longínquo horizonte, perguntavam de longe uns aos outros:

– O nosso vigário estará a rezar ali?

E estava! Orações sem palavras, que o Céu entende muito bem.

Às vezes procurava um e outro dos seus fregueses, longe das casas, no meio das lavouras. Deixava aqui um conselho; além, fazia um pedido; mais adiante, repreendia com severidade. Dias depois, havia mais alegria numa casa; noutra, viam-se mais lavados os filhos; naquela, havia no domingo o salário da semana, porque o homem o não fora jogar no sábado à noite; nesta o Manuel não batera na mulher, antes era bem-falante, e agradecia, mal ou bem, a alvura e o engomado da camisa.

Topou, numa tarde, com um menino que martirizava um feio sapo. Ao pé dele, muitos outros a rirem-se do esforço que o pobre animal fazia para fugir. A pouca distância uns homens, a olharem para aquela luta desigual, e a rirem-se como as crianças.

– Para que fazes mal a esse desgraçado? – perguntou o pastor ao pequeno.

– É tão feio, nosso vigário...

– Coitado! – tornou o padre, afagando a cabeça do menino. É verdade! mas nunca te fez mal; e faz-te bem indirectamente. Olha, come muitas lagartas de insectos, que haviam de roer as raízes do que teu pai semeia. Deixa-o. A caridade é para tudo quanto vive.

– Eu cuidava...

– Bem sei, filho. Julgavas que não fazias mal. Eu também não ralho: aconselho e peço. E vós? – continuou o vigário olhando para os outros pequenos. Tendes andado a caçar e a matar pintassilgos...! É mal feito: são tão lindos e tão alegres! E além disto, pequenos, comem as sementes dos cardos, que são daninhos à cultura. Não torneis a fazer isso.

– Mas os pardais, esses sim, são maus; não são, sr. vigário?

– Não, minha cabecinha loira – respondeu este a um pequeno de sete anos, guapo e decidido. Não. Olha cá: não valem, os poucos grãos que eles comem, a alegria que lançam no ar? E, além disto, também matam muito bichinho, que, se vivesse, desbastaria a seara! Não sabias?

– Não sabia.

– Aí tens. Não é maldade vossa, é ignorância. É como a tua, Lucas – disse o vigário para um dos homens. Apanhaste uma pobre coruja, mataste-a, e ergueste-a, num pau, acima do teu telhado! Para quê?

– Nosso vigário! Para as outras terem o exemplo, e fugirem!

– Pobre Lucas! Então também inventas a pena de morte para ensinares as aves? Ouve. Se não queres emendar-te por caridade, emenda-te por interesse. Tu sabes de que se sustentava aquela desgraçada coruja?

– Do azeite que ia furtar à lâmpada da igreja.

– Valha-te Deus! – disse o vigário, repetindo a frase, que era o seu bordão. Olha, caçava os ratos, que dizimam o teu pobre celeiro. Era o teu gato, mas que não miava a pedir-te de comer! E também têm os seus afectos, os seus ninhos, os seus filhos. Tem dó disto. Só voa de noite? Que queres? É porque os seus olhos se magoam com a muita luz. Adeus.

– Adeus, nosso vigário.

– Está célebre – disse o Lucas. Não se pode fazer mal a nenhuma alimária, que o nosso vigário não venha acudir!

Mas iam-se respeitando os conselhos e pedidos do padre, que vivera sempre em estreitezas porque repartia, com todos, as rendas da vigairaria. E ele, que em tudo lia a bondade divina, que por toda a parte pregava a aridade, entrava no presbitério com o espírito cheio de Deus.

Sua irmã Leonor era como ele, até onde podia sê-lo. Lastimava que todos os padres não fossem como o irmão, e distinguia sempre o padre do homem. Quando o sacerdote estava no exercício das funções religiosas, entendia que tomava, quase, outra natureza, e que nesse momento devia ser acabado com sincero respeito, embora a sua vida fosse cheia de pecados. Era dois anos mais velha que o vigário, e muitas vezes tinha passado com tristeza que morreria sem ver sua sobrinha, nem seu irmão Paulo, médico residente na Itália, havia muitos anos.

O pai destes dois homens, e de Leonor, tinha casado na Índia Portuguesa, para onde fora pouco tempo depois do terramoto de 1755. Levaram-no para tão longe a perda dos haveres que tinha depositados em casas comerciais em Lisboa, e o incansável ódio de uma família poderosa pela opulência e pela protecção do marquês de Pombal, então Sebastião José de Carvalho e Melo.

O pai do vigário era amigo da família dos Melos, à qual havia jurado inexorável guerra a dos Pintos, uma e outra a pequenas distâncias do presbitério.

Granjeada alguma fortuna, mandou Paulo para França, onde se formou em medicina, e cedeu aos desejos de Maurício, que tomou ordens e começou a missionar. No último quartel da vida voltou a Portugal, e obteve para Maurício á vigairaria de S. Romão. Ali viviam todos, no tempo da primeira invasão francesa.

Junot não pôde sustentar-se, e quando chamou para Lisboa o general Loison, que estava em Almeida, agonizava o pai do vigário. Não o desampararam os seus três filhos, e a vanguarda de Loison achou uma casa habitada na sua descida para o sudoeste. Comandava-a um brilhante general de brigada, parente muito próximo da imperatriz Josefina Beauhamais. Achando ali três portugueses, que lhe pediam protecção e respeito para a agonia, que estava próxima, deu-lha generosamente, e no dia seguinte foi honrar, com soldados em funeral, a descida do velho à sepultura, que mandara abrir na igreja.

O general de brigada chamava-se Eugénio de Aurilly, e deixou no presbitério uma sagrada e imensa gratidão.

O príncipe regente, depois D. João VI, deixara em Portugal uma regência, que, logo depois da saída dos franceses, começou a perseguir, com o nome de jacobinos, um grande número de portugueses. A família dos Pintos acendeu as iras do governo contra Paulo, e este viu-se obrigado a emigrar. Encontrou em Paris o general de Aurilly, e acompanhou-o quando ele partiu para o exército de Itália.

– Não vai bater-se contra portugueses – lhe dizia ele – nem contra soldados de qualquer país. É médico, e vai exercer a sua profissão nas ambulâncias.

Paulo foi, e a amizade, começada em Portugal, radicou-se numa extrema afeição do general francês ao médico português.

Acompanhou sempre o príncipe Eugénio, e quando em 1815 o imperador sucumbiu, sob a coalizão, já Paulo tinha uma filha de dois anos, cujo nascimento custou a vida da mãe. Foi então para Ravena, onde tinha parentes de sua mulher, e ali exerceu a medicina.

Na velha cidade, alumiada sempre pela memória do Dante no exílio, recordando com entusiástico afecto todas as partes da Itália napoleónica, mas sereno e mudo perante os pequenos herdeiros do grande império, aparentemente só viveu para os seus doentes, para os seus estudos e para a educação de sua filha.

E isto pode explicar que o condecorado com a Legião de Honra não fosse perseguido pela intolerância do governo papal, exercido então por baionetas austríacas.


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