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Ensaios


O Mar, as Descobertas e a Literatura Portuguesa

1.

O Mar e a Vocação

Neste mês de Maio, em Lisboa, inaugura-se uma das maiores efemérides levadas a cabo em Portugal: a realização de uma Exposição Universal, a Expo'98, sob o tema geral dos Oceanos. Esta grandiosa exposição tem como pano de fundo a comemoração dos 500 Anos dos Descobrimentos portugueses, da Evangelização e do Encontro de Culturas. Por isso, achei oportuno escrever, a partir deste mês, alguns textos breves e despretensiosos sobre o Mar, a partir duma perspectiva literária e cultural.

No princípio era o Mar

Sendo um dos maiores elementos da Criação (Gen.1, 10), o Mar não nos deixa indiferentes à sua grandeza, mistérios e simbolismos. Sempre foi um espaço lendário, associado a numerosos mitos e lendas, povoado por um variado bestiário fabuloso e até por ilhas encantadas e utópicas.

Simbolicamente, o Mar representa a vida e a morte. Com efeito, existem as águas transparentes e lustrais, que revitalizam e salvam. Por ex., a água purificadora do baptismo ou água viva de Cristo. O Mar é o símbolo da fecundidade e da Vida, e uma das grandes metáforas do Amor. Terá sido do Mar que surgiram as primeiras formas de vida. Ainda hoje nos fascinam a beleza natural, a riqueza mineral e variedade das espécies piscículas do espantoso mundo submarino.

Porém, também existem as águas negras e profundas ou estagnadas, as águas tempestuosas e letais, que perdem, engolem ou matam. Na linguagem bíblica, o Mar simboliza muitas vezes a hostilidade de Deus. O Mar também pode ser conotado com o perigo e a morte. O ininterrupto movimento das águas pode ainda simbolizar o lado transitório da existência, o inexorável fluir do tempo. Já as tempestades marítimas representam ora a omnipotência divina ou da natureza, ora, na escrita metafórica e mística, a convulsão dos sentimentos e paixões em que se debatem e naufragam os corações humanos.

O Mar e as águas também deram origem a grandes e fecundos mitos literários: o mito de Narciso, mirando fatidicamente a sua beleza no espelho das águas; o mito de Ofélia, boiando doce e fatalmente à flor das águas; o mito de Caronte, transportando na sua barca os mortos que se preparam para a travessia final; o mito do holandês errante, alegoria do homem condenado à errância perpétua, até ser salvo pelo amor de uma mulher; ou ainda a simbólica figura de Jonas, engolido por uma baleia marinha e depois vomitado.

O Mar descoberto pelos poetas

A literatura e cultura portuguesas estão salpicadas de Mar, cheiram a maresia. Desde o princípio, o Mar foi a nossa paisagem quotidiana, impregnando profundamente a psicologia, as tradições, a literatura, a arte e até a gastronomia portuguesas.

A inspiração marítima é tão antiga como a nossa literatura. Curiosamente, foram os poetas trovadorescos e palacianos (sécs. XII a XIV), que descobriram o Mar, bem antes das Descobertas quinhentistas. Com efeito, já nos alvores da nacionalidade o apelo do Mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-português, com suas barcarolas ou marinhas, inspiradas na temática marítima.

É ainda um Mar costeiro, visto de terra. Tem suas ondas e marés mais ou menos ameaçadoras, por vezes até confidentes de corações saudosos: Ondas do mar de Vigo,/ se vistes meu amigo,/ e ai Deus se verrá cedo.// Ondas do mar levado,/ se viste meu amado,/ e ai Deus se verrá cedo. Ou ainda: Ay ondas que eu vim ver!/ se me saberedes dizer/ porque tarda meu amigo/ sen mi?. O Mar é o cenário do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu amado: "Quantas sabedes amar amigo/ treides comig'a lo mar de Vigo;/ e bannar nos emos nas ondas! (Martim Codax).

Na genial composição de Mendinho, a donzela sobe à capelinha de S. Simião, à espera do seu namorado. Cercada pelas ondas do Mar, cuja maré subira, não poder contar com o auxílio de barca ou barqueiro: Sedia-me eu na ermida de San Simion/ Cercaron-mi as ondas que grandes son,/ Eu atendend'o meu amigo!// Nen hei barqueiro nem sei remar/ E morrerei fremosa, no alto mar!/ Eu atendend'o meu amigo!

Não é ainda o Mar largo e grandioso, descrito por Camões. É apenas um Mar que se admira e teme: O mar dá muit', crede que non/ se pod'o mundo sen el governar,/ e pode muit', e á tal coraçon/ que o non pode ren apoderar" (Paay Gomes Charinho).

Há também quem faça juras, entediado com a arte de marear: Tenho tão avorrecida/ todarte de marear,/ que nam ey nela dentrar/ nesta vida. Do mesmo Garcia de Resende: Ribeiras do mar,/ que tantas mudanças,/ as minhas lembranças/ deixai-as passar.

À imagem do futuro Velho do Restelo, já nessa altura poetas havia que amaldiçoavam o Mar e o dano que ele lhe causava: Quand'eu vejo as ondas/ e as muit' altas ribas,/ logo me veên ondas/ ao cor pola velida./ Maldito seja o mare,/ Que me fez tanto male! (Rui Fernandes). Se uns condenavam o Mar, outros havia que cantavam as barcas novas acabadas de fazer para deitar às águas: En Lixboa, sobre la mar,/ barcas novas mandei lear;/ Ai mha senhor velida!// Barcas novas mandei lear/ e no mar as mandei deitar;/ Ai mha senhor celida! (João Zorro).

Em suma, nascemos a ver, ouvir e sentir o Mar. Desde os alvores da nacionalidade, e terminada a conquista do solo, o Mar era o nosso grande chamamento, a nossa vocação essencial. Chegara o momento de partir e desbravar o Mar Desconhecido, torná-lo no nosso mar arável. Com essa partida, mudaríamos o rumo da nossa História e transformaríamos a face do mundo até então conhecido. Era a hora de ir para o cais e encetar a grande Viagem da Expansão.

2.

O Mar e a Viagem

Consolidada virilmente a conquista da Terra pátria e voltada de costas para Castela, a nação portuguesa via no Mar a sua porta natural — Onde a terra acaba e o mar começa. Chegara a hora de um país de marinheiros desbravar o lendário Mar Tenebroso, a partir da ocidental praia lusitana. Portugal lançava-se, assim, na maior aventura colectiva da sua História: a descoberta de novas terras e do grande oceano por achar.

A política expansionista

Começámos por adquirir longa experiência na navegação costeira. Em Lisboa, desde muito cedo, a construção de barcos tornou célebre a Ribeira das Naus, como já aparece referido nas crónicas de Fernão Lopes. Rodeámo-nos dos melhores especialistas nas ciências náuticas (árabes, genoveses ou catalães). O grande impulso vinha da figura emblemática e predestinada, o Infante D. Henrique, com a sua mítica Escola de Sagres.

Devidamente preparados, encetámos a grande e sonhada aventura: a progressiva descoberta da longa costa africana e o desvendar do largo oceano Atlântico. Os Descobrimentos eram o cometimento grande e grave de todo um povo, o peito ilustre lusitano. Contudo, a grande empresa era descobrir o desejado caminho marítimo para a Índia, dobrando o Cabo das Tormentas, símbolo mítico dos vedados términos e alegoria de todos os medos e perdições.

Antes da concretização da grande viagem, assistimos a uma paulatina e persistente descoberta de toda a longa costa africana. Entre as figuras de pioneiros navegadores, heróicos executantes da expansão ultramarina, salientam-se os nomes de Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Gil Eanes ou Pedro Álvares Cabral. Dentro desta política expansionista, mas também de sigilo, procedemos à partilha do mundo conhecido e desconhecido no célebre Tratado de Tordesilhas.

A partir da viagem inaugural de Vasco da Gama, Portugal começa a enviar regularmente armadas para o Oriente, conhecida como a rota da carreira da Índia. Ao mesmo tempo, vai consolidando o seu poderio através do povoamento, da construção de praças militares e de feitorias comerciais, das ilhas às costas africanas e ao longínquo Oriente.

A mais arriscada mas também a mais desejada viagem da Expansão portuguesa, foi a pioneira descoberta do caminho marítimo para a verdadeira Índia. Em 1498, completam-se agora 500 anos, Vasco da Gama chegava à Índia, à frente de uma heróica armada, ao serviço de D. Manuel. Abria, assim, uma nova rota que iria mudar as relações comercias e culturais do mundo conhecido. Concretizava-se, deste modo, um sonho e uma vocação: chegar por via marítima às distantes e exóticas terras orientais.

A grande viagem épica

Ainda hoje podemos reviver o quotidiano de bordo da carreira da Índia, através da descritiva relação de Álvaro Velho, mas também de outros importantes roteiros, ou ainda de detalhadas cartas, redigidas pelos missionários aos seus superiores.

É muito interessante recordar, hoje, com que indescritíveis dificuldades era feita essa longa e penosa viagem para a Índia. Imaginemos as dramáticas cenas da despedida, com sinos repicando, depois da missa e da procissão até à praia do Restelo. Seguia-se o embarque de cerca de cinco centenas de tripulantes e passageiros em cada nau, ancoradas na foz do Tejo, devidamente apetrechadas e engalanadas com a Cruz de Cristo nas velas desfraldadas. Depois, à medida que a armada se afastava, era o adeus definitivo à terra pátria e o início da viagem para o perigo e o desconhecido.

Em seguida, iniciava-se uma dura e arrriscadíssima viagem. Tendo partido de Lisboa pela Primavera, e conforme as condições atmosféricas, só chegavam a Goa lá para o fim do ano. As dificuldades ou provações eram incontáveis: fome, sede, frio, calor, desconforto, promiscuidade, doenças, intempéries, ataques de piratas, naufrágios, etc..

De facto, os navegantes enfrentavam ora o tórrido calor equatorial, ora o gélido frio do sul, chegando a nevar nas embarcações. Noutros momentos, eram surpreendidos por atemorizadores fenómenos naturais ou perigosas coisas do mar, como o fogo de Santelmo ou a tromba marítima; ou ainda por terríveis tempestades e prolongadas calmarias equatoriais: Sofrendo tempestades e ondas cruas,/ Vencendo os torpes frios no regaço/ Do Sul, e regiões de abrigo nuas,/ Engolindo o corrupto mantimento/ Temperado com um árduo sofrimento.

Como descreve Camões, que também viveu essa viagem, um dos grandes problemas era a comida e a bebida, pois durante a viagem os racionados géneros alimentares degradavam-se, ou escasseava a preciosa água potável. Para minorar estas privações, as naus aportavam em alguns lugares para fazer a aguada. Como se não bastasse, apareciam as epidemias e o temível mal das gengivas, o escorbuto, a doença crua e feia.

Além dos actos de culto religioso quotidiano, para obviar à dureza da vida a bordo e à monotonia dos infindáveis dias, tinham lugar algumas distracções, como jogos, representações teatrais (comédias e autos religiosos), e até fingidas corridas de touros.

Foi esta heróica Viagem para a Índia, símbolo maior da nossa aventura marítima, que Camões celebrou n'Os Lusíadas como o ponto culminante de toda a História portuguesa. Com a descoberta do caminho marítimo para a Índia, esta gente ousada unia o Atlântico e o Índico, o Ocidente e o Oriente, a Europa e a Ásia. Ultrapassando medos e perigos vários, o Homem desmistificava o Mar Tenebroso. Os portugueses elevavam-se assim à categoria de heróis lendários, dando um passo de gigante na Expansão ultramarina e abrindo novos mundos ao Mundo.

3.

O Mar e a Descoberta

Depois de ter calcorreado vários países e atravessado repetidamente o Atlântico, o novo mundo que os navegantes lusos ajudaram a conhecer, o P. António Vieira exclamou: os portugueses têm um berço pequeno para nascer e o mundo inteiro para morrer.

As Descobertas da política expansionista dos portugueses deram, de facto, novos mundos ao mundo. O mítico Mar Tormentoso fora domesticado no heróico Mar Português. E um desconhecido mundo nascia, perante o espanto do homem europeu. Cidadãos do mundo, deve-se aos portugueses a criação do espírito universalista.

Novo Mundo

Outro mundo encoberto/ Vimos então descobrir, poetava Garcia de Resende. Celebrando o triunfo ultramarino, Gil Vicente escrevia que os reis de Portugal conquistam o Mar do Mundo. Sulcando os mares temidos e misteriosos, descobrimos, conquistámos, colonizámos — se mais mundo houvera lá chegara o esforço expanionista português. Contactámos outras culturas, espantámo-nos com outras paisagens, inteirámo-nos de outras concepções de vida. Nunca, em tão poucas décadas, uma pequena nação contribuíu, dum modo tão decisivo, para alterar radicalmente a face do universo até então conhecido. Pelo seu impacto a vários níveis, os Descobrimentos inauguram a era moderna da História da Humanidade.

A riquíssima literatura de viagens do período dos Descobrimentos constitui um valioso tesouro, de elevadíssimo interesse humano, literário e etnográfico-cultural. Ela representa o espanto do homem europeu perante o novo mundo descoberto.

Um dos capítulos mais ricos da nossa literatura dos Descobrimentos é constituído pelas coloridas e riquíssimas páginas dos cronistas e viajantes. Para a posteridade, em páginas memoráveis, fixaram os grandes feitos políticos, militares e científicos dos portugueses. Mas também descreveram, admiravelmente, as viagens, as terras, as culturas e os povos contactados. Alguns arriscaram-se a penetrar bem no interior dos territórios descobertos, deixando-nos páginas inesquecíveis de anotações deslumbradas sobre o exotismo dos costumes e tradições desses povos desconhecidos.

Um dos grandes documentos é a famosa Carta de Achamento do Brasil, de Pêro Vaz de Caminha, que acompanhava Pedro Álvares Cabral na viagem de 1500. Nesta longa carta, o entusiasmado e descritivo redactor noticia ao rei D. Manuel do descobrimento da Terra da Vera Cruz. Outra das obras paradigmáticas da descoberta dos novos mundos é a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto: descrição do exotismo, das gentes, das paisagens, dos costumes, a par da narração de aventureiras deambulações do seu incansável protagonista, numa incomparável sede de novidade. Por isso Eduardo Lourenço vê esta obra como o livro do deslumbramento perante o fabuloso e mítico Oriente.

Nova Cultura

O saber de experiência feito dos navegadores portugueses foi proporcionado por repetidas viagens, novas rotas, explorações terrestres, relação com outros povos e outras terras, outras línguas e outras religiões, outros climas e outras culturas. O contacto com a magestade da grande natureza mudou, decisivamente, a face do conhecimento recebido da autoridade dos antigos (gregos, latinos, Padres da Igreja, etc.), dando origem a uma nova mentalidade científica. Para os descobridores modernos, a experiência era, de facto, a madre de todas as coisas na revelação de um novo mundo.

Originando uma enorme massa de conhecimento, as Descobertas alargaram decisivamente os horizontes do saber científico e humanístico do seu tempo. Como escreveu o astrónonomo e matemático quinhentista Pedro Nunes, com a Expansão portuguesa revelamos ao mundo novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos, e, o que mais é, novo céu e novas estrelas. Pode-se dizer que os Descobrimentos representam um dos maiores saltos do conhecimento em toda a história da humanidade.

Disso são representativas as obras de vários cientistas portugueses, respeitadíssimos na mais alta cultura do tempo, desde as ciências náuticas (Cosmografia, Astronomia, Cartografia, etc.) à Matemática ou à Medicina. Algumas proeminentes figuras intelectuais portugueses eram lidos, traduzidos e prestigiados no mundo culto e académico de Europa do tempo. Ressaltem-se os nomes de: Damião de Góis, André de Resende, D. Jerónimo Osório, Frei Heitor Pinto, André de Gouveia, Diogo de Teive. A grande projecção da cultura humanística e renascentista na época dos Descobrimentos manifestou-se nos mais diversos domínios — nas Ciências (Pedro Nunes, Duarte Pacheco Pereira, Garcia da Horta, Tomé Pires); na Historiografia (Gomes Eanes de Zurara, F. Lopes Castanheda, Diogo do Couto, João de Barros, Gaspar Correia, etc.); na Literatura (Gil Vicente, Camões, Sá de Miranda, F. Mendes Pinto e tantos outros).

Camões celebra, em verso heróico e eloquente, a descoberta do caminho marítimo para a Índia como o clímax da História de Portugal e um dos feitos mais altos da Humanidade, justamente no meio d' Os Lusíadas. O seu poema é, assim, a exaltação máxima da nossa gesta dos Descobrimentos. Ergue-se como a nossa grande epopeia nacional e o símbolo maior do esplendor que Portugal alcançou na cultura europeia.

Em suma, o progresso do conhecimento científico e o florescimento cultural dos sécs. XV e XVI receberam o inestimável contributo dos Descobrimentos portugueses e da prosperidade económica então vivida. Numa palavra, a inteligência renascentista e o humanismo universalista tiveram o indelével cunho português.

4.

O Mar e a Missão

A difusão da Fé cristã acompanhou sempre a epopeia ultramarina. Nas velas brancas desfraldadas ao vento, as embarcações que saíam da barra do Tejo ostentavam a Cruz de Cristo desenhada a vermelho vivo. Desde a conquista de Ceuta aos Mouros pela ínclita geração, que o movimento expansionista português assumiu o proselitismo religioso como uma das suas grandes bandeiras. Assim se retomavam os ideais do espírito de Cruzada, de propagação da Fé, indissociável da Expansão lusa: dilatando a Fé e o Império, como resumiu admiravelmente Camões.

Em nome da Cruz de Cristo

Tão importante como a nossa privilegiada situação geográfica, a ânsia de conhecimento, ou a vocação marítima e comercial, o nosso ancestral zelo de expansão da Fé cristã constituíu um dos grandes factores impulsionadores dos Descobrimentos: ad maiorem Dei gloriam. Na singular visão do P. António Vieira, os descobridores lusos eram soldados de Cristo, ao serviço da construção de um novo reino de Cristo sobre a terra. À missão evangelizadora dos lusos navegantes e conquistadores se aplicaria a frase evangélica de Jesus aos apóstolos: Vos estis Lux mundi.

A expansão ultramarina constituía a ocasião privilegiada de concretizar o apelo evangélico de levar a mensagem cristã a todos os povos: Um dia, Portugal foi púlpito da Boa Nova de Jesus Cristo para o mundo, levada para longe em frágeis caravelas por arautos impelidos pelo sopro do Espírito — recordava o papa João Paulo II em Lisboa (1991), o espírito de missão dos portugueses.

O sentimento de missão providencial dos portugueses era antigo, remontando ao ancestral espírito de cruzada. Recorde-se que, ao princípio, as despesas com as viagens marítimas eram pagas com os proventos da Ordem de Cristo. Acreditava-se também na existência de um imenso reino cristão na África oriental, de Preste João, nosso aliado na expansão religiosa contra os infiéis.

Segundo a cultura e a teologia do tempo, a expansão da Fé e do Império constituíam apenas um ideal, legitimando a guerra santa ou guerra justa aos infiéis, mouros ou gentios. Já o cronista Diogo do Couto acentua esta natural aliança dos ideais da Cruz e da Coroa: Os reis de Portugal sempre procuraram na conquista do oriente, ao unirem os dois poderes, espiritual e temporal, que um não pudesse nunca se exercido sem o outro. Infelizmente, nem sempre a prática de alguns alferes da Fé (bela expressão de Gil Vicente) condizia com os ideais da lei de Cristo. Com o primeiro ouro de Quíloa, manda D. Manuel fazer a célebre custódia de Belém.

Numa época em que parte da Europa se separava de Roma, Portugal alargava decididamente os limites da cristandade mediterrânica, a República Cristiana, na expressão de Camões, Para do Mundo a Deus dar parte grande. Como dizia Gil Vicente, que exaltara o ideal de Cruzada no momento das campanhas do norte de África, Deus é português!

O trabalho catequético e cultural

Intrépidos e activos missionários foram os grandes protagonistas da expansão da Fé pelos novos mundos. Embarcavam nas naus ou galeões que largavam da praia do Restelo. Pertenciam a várias ordens religiosas: jesuítas, franciscanos, agostinhos, dominicanos. Nas longas viagens, representavam o alento espiritual, presidindo aos actos de culto quotidiano: missas, confissões, procissões, etc. Como eram das poucas pessoas cultas, elaboraram algumas das mais notáveis descrições da vida a bordo, bem como dos contactos estabelecidos com outros povos.

Quando se descobria uma nova terra, assinalava-se a posse com um padrão duplamente simbólico, ostentando, ao alto, a Cruz de Cristo e as Quinas da coroa portuguesa. Por vezes, os missionários davam acção de graças, celebrando uma primeira missa em cada porto ou costa descoberta. Depois de dizer que a expansão era obra simultaneamente humana e divina, F. Pessoa escreve que, para estes homens navegantes e conquistadores, só Deus era o porto sempre por achar.

Neste trabalho missionário, distinguiu-se a Companhia de Jesus, pondo em prática o espírito da Contra-Reforma. Entre os nomes maiores da nobilíssima missão evangelizadora dos portugueses, destacam-se: Francisco Xavier, João de Brito, José de Anchieta, Manuel da Nóbrega, Inácio de Azevedo, António Vieira, entre tantos nomes de mártires, santos e devotados missionários.

Espalhados por meio mundo, das terras do Brasil à África e aos distantes territórios orientais, os missionários desdobraram-se a semear de Cristo a lei (Camões): transmitiram a fé cristã; construíram magníficas igrejas; abriram escolas; fundaram imensas aldeias, vilas ou cidades; ensinaram a língua portuguesa; assimilaram ainda a cultura desses povos, num notável processo de aculturação, necessário ao seu trabalho evangelizador.

Além de se ter divulgado como língua comercial no Oriente, o português era o idioma da cristianização de tantas gentes, de tão remotas e estranhas províncias. Por isso, João de Barros escreveu sobre o legado português: As armas e os padrões portugueses, postos em África e em Ásia e em tantas mil ilhas fora da repartição das três partes da Terra, materiais são e pode-as o tempo gastar. Mas não gastará doutrina, costumes, linguagem que os Portugueses nessas terras deixaram.

Pela boca e acção dos missionários, difundimos a Fé, expandimos a nossa Cultura, divulgámos a língua portuguesa. Ficamos ainda a dever-lhes a execução de um trabalho intelectual de valor incalculável: obras históricas, gramáticas e dicionários das línguas autóctones, tratados científicos, descrição dos hábitos e dos costumes em preciosos trabalhos etnográficos, e até a decisiva influência ao nível da criação cultural e artística.

5.

O Mar e as Lágrimas

A Tragédia caminhou lado a lado com a Epopeia, enobrecendo o esforço das conquistas ultramarinas dos portugueses. A grandiosa expansão marítima de Portugal pelos quatro continentes teve um duro preço, quer em termos humanos, quer materiais e financeiros.

A capacidade de arrostar com o perigo e de enfrentar o sofrimento contribuiu decisivamente para nobilitar a gesta heróica dos Descobrimentos portugueses. Como dirá Fernando Pessoa sobre o mar salgado português: Deus ao mar o perigo e o abismo deu,/ Mas nele é que espelhou o céu.

A face dramática da epopeia

A grandiosa gesta das Descobertas portuguesas arrostava constantemente com o perigo e o com desconhecido. Navegando em lenho leve, perdido na imensidão do mar irado, misterioso e temível, o homem enfrentava a morte a cada instante. Isso mesmo sintetizou Camões, o grande pintor marítimo, que experimentou na pele as agruras da viagem para a Índia: No mar tanta tormenta e tanto dano,/ Tantas vezes a morte apercebida.

Já na partida, junto à areia da praia, o Velho do Restelo lançara um pressagiador grito de condenação da política expansionista. Dando voz aos mais cépticos, para ele, os descobrimentos eram uma aventura insensata, arriscada, de resultados duvidosos e até contrária à lei natural: Oh! maldito o primeiro que no mundo/ Nas ondas velas pôs em seco lenho!/ Dino da eterna pena do profundo/ Se é justa a justa lei que sigo e tenho!

Bramindo pela voz do gigante Adamastor — inesquecível prosopopeia do Medo e do Perigo que os lusos navegantes desafiaram e venceram —, o Mar nos advertira, em negras profecias, dos grandes perigos e das dolorosas perdas, pela ousadia de desbravarmos os desconhecidos oceanos. Os seus terríveis vaticínios não amedrontaram Vasco da Gama. Com estes episódios, mais admiravelmente Camões ressalta o justo prémio merecido pelo heróico esforço dos portugueses.

Como outras grandes realizações do espírito humano, também a epopeia lusa foi perpassada por muitos suspiros e gritos envoltos em muita quantidade de lágrimas, como disse F. Mendes Pinto. Numa arrojada e inesquecível metáfora, tendo presente a temível carreira da Índia, Diogo do Couto escreveria que se o Oceano, em vez de água, fosse antes uma estrada, estaria toda calçada de ossos dos Portugueses, perdidos em tão perigosa viagem.

Quantos poetas, sobretudo românticos, saudosistas ou místico-nacionalistas, glosaram a imagem de Camões como Poeta do Mar, salvando Os Lusíadas do naufrágio! Camões personifica o génio português do poeta-soldado, que lutou com a pena e com a espada pelo engrandecimento da Pátria. Que é a sua epopeia senão o poema do Mar? Mar espumando oitavas, alto e fundo!/ Lusíadas — poema feito de água! O mesmo poeta, Mário Beirão, fala no Mar de todas as lágrimas, tendo dedicado todo um livro ao tema. Intitulou-o Mar de Cristo, escrevendo: O mar da Praia Ocidental, entoando/ Lusíadas nas horas de negrume.

Perigos do Mar Salgado

Um fundo sentimento religioso sempre esteve presente na aventura ultramarina dos portugueses de quinhentos. É interessante salientar que, no contexto da devoção cristã, existiam sentidas preces, como a Oração a Nossa Senhora pelos Navegantes das Índias.

A partida das naus era precedida por cerimónias religiosas diante da Senhora de Belém (confissões, missa, procissão), na ermida do Restelo. Depois, a dolorosa despedida dos embarcados e dos que ficavam em terra era muitas vezes feita já perto da barra, no alto da capela da Senhora da Boa Viagem, dos frades arrábidos. Como nos lembram Camões, Gil Vicente ou João de Barros, desfraldadas as velas e iniciada a viagem, uns oravam e outros gritavam da margem: Boa Viagem!

Vários cronistas da época nos retratam os compreensíveis temores dos embarcados, mas sobretudo dos familiares, na hora da partida. Por notícias de outras viagens, sabiam que muitos não regressariam nunca mais. D. Jerónimo Osório evoca os olhos cheios de lágrimas dessas horas angustiantes da despedida. E João de Barros chama mesmo ao Restelo a praia de lágrimas.

O rifoneiro tradicional fixou os perigos do Mar em alguns ditados, como o conhecido Quem passa o Cabo Não, ou voltará ou não, aludindo com isso aos frequentes naufrágios e mortes. Lembrando as invocações dirigidas em dramáticos momentos pelos desesperados navegantes, rezava assim um provérbio quinhentista: Se queres aprender a orar, entra no mar.

O mistério e as tragédias associadas ao Mar manifestam-se, na cultura popular, em duas expressões homógrafas: mar salgado e mar sagrado. E uma conhecida quadra popular reza assim: Se fossem pedras as lágrimas,/ Que eu por ti tenho chorado,/ Já formavam um castelo/ No centro do mar salgado.

A imprevidência dos pilotos, os incêndios, os ataques de corsários e sobretudo as tormentas ocorridas na longa viagem da carreira da Índia, eram algumas das causas de trágicos sucessos. O mais célebre relato de naufrágios, profetizado pelo monstruoso Adamastor, ficou conhecido pelo nome do seu infeliz protagonista: Naufrágio de Sepúlveda.

Também o poeta Fernando Pessoa, ao compor os novos Lusíadas, dedicará ao tema o celebrado poema Mar Português. Com este poema que todos sabemos de cor, o poeta resgata o nosso sub-consciente colectivo, celebrando quer o heroísmo dos que pereceram, quer o sofrimento dos que ficaram em terra: Ó mar salgado, quando do teu sal / São lágrimas de Portugal! / Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram por casar / Para que fosses nosso, ó Mar!

6.

O Mar e o Reverso

A ufania épica e luminosa das façanhas heróicas dos Descobrimentos portugueses conheceu, como todas as grandes obras humanas, um triste mas compreensível lado negro. Na insaciável busca de riquezas e honrarias, a par de inimagináveis gestos de grandeza e heroísmo, também se cometeram excessos e atrocidades. Esta lenda negra deve ser interpretada à luz da cultura do tempo e comparada com o procedimento de outras potências. Não deixa, porém, de constituir o reverso da medalha das nossas grandezas. Hernâni Cidade chama-lhe as sombras do quadro grandioso da Expansão ultramarina.

A mítica opulência do Oriente

A grandiosa empresa dos Descobrimentos absorveu muitas e variadas gentes, desde a classe nobre aos mais simples soldados, marinheiros e mercadores. A par dos grandes objectivos de descoberta e conquista, outra actividade dominou: o comércio de produtos nobres e exóticos, e até de pessoas para o mercado de escravos. As míticas riquezas do Oriente a todos seduziam e, com elas, a miragem do enriquecimento fácil. Parafraseando D. João de Castro, muitos portugueses foram para o Oriente, não para servir o Império, mas apenas para comerciar e enriquecer.

Depois das rotas africanas do ouro e pedras preciosas, era a longínqua Índia que seduziam os navegadores e comerciantes — terra onde há minas de ouro e, como se lê numa carta de D. Manuel, grandes povoações onde se faz trato de especiaria e pedraria. Além das cobiçadas riquezas minerais, as terras do Oriente eram a grande fonte de tecidos finos, madeiras raras e, sobretudo, das apreciadas especiarias: pimenta, canela, cravo, noz moscada, gengibre, etc. Durante décadas, fomos a inveja do mundo ocidental. A riqueza oriunda das viagens ultramarinas era visível nos trajes e nos hábitos, na arquitectura ou em manifestações sumptuárias.

Disso é exemplo a ostentatória embaixada enviada por D. Manuel I ao Papa Leão X, em 1514, chefiada por Tristão da Cunha. Deixou boquiaberta a capital da cristandade perante a grandeza esplendorosa de tal séquito. Entre os sumptuosos e exóticos presentes, desfilaram pelas ruas de Roma as primícias da navegação da Índia: imponentes cavalos persas, carregados de riquezas; feras amansadas; homens orientais com vestes ornadas a ouro e pedras preciosas; e até um elefante branco que, carregando o rico cofre pontifical, borrifou os espectadores e o próprio Papa com água perfumada! Impressionado e reconhecido por tão sumptuosa oferta, Giovanni de Medicis reafirma a Portugal o monopólio de África e do Oriente, entre outros relevantes privilégios políticos e espirituais.

A riqueza da Lisboa quinhentista fez da capital do Império um vasto campo de vícios. Já os poetas do Cancioneiro Geral denunciavam a decadência dos costumes, comparando Lisboa a Roma, e a Índia à Babilónia. As novas riquezas desencadearam novos hábitos, mudaram as tradicionais necessidades, implicaram profundas transformações sociais.

Denúncia dos fumos da Índia

A própria historiografia do tempo, que faz a exaltação e apologética dos nobres feitos, não esconde algumas críticas e denúncias. Castanheda, Gaspar Correira e sobretudo Diogo do Couto censuram os actos de chatinagem e corrupção. Libelo acusatório, é n'O Soldado Prático que mais cruamente se condena a ostentação e a violência, a imoralidade e a corrupção: Já na Índia não há cousa sã; está tudo podre e afistulado. Nas comédias, satiriza-se a figura-tipo do português fanfarão, enamorado, gabarola e pelintra. Intoxicado pelos fumos da Índia, é o símbolo da degradação causada pela embriaguez da riqueza, da desenfreada ambição do lucro e da perda dos ideais de proselitismo, a caça ao ouro: caça tão real que se caça em Portugal, lê-se no Cancioneiro Geral.

Depois de ter exaltado a aventura ultramarina, Gil Vicente aponta, no Auto da Índia, o dedo crítico e satírico às consequências familiares da ausência dos homens casados, pondo na boca do viajante regressado a confissão dos trabalhos por que passaram, mas também as crueldades cometidas: Fomos ao Rio de Meca;/ Pelejámos e roubámos. Também Sá de Miranda denunciará, numa dura invectiva moralista, a decadência citadina originada pelos Descobrimentos: além de contrariar o ideal de vida rústica e violar a Natureza, a Expansão fomentava a cobiça, empobrecia a agricultura e despovoava o país: Ao cheiro desta canela/ O Reino se despovoa. A própria Peregrinação de Fernão Mendes Pinto é um grande painel da decadência portuguesa reinante no Oriente. Tanto o herói como outras personagens são astutos nos seus actos de pirataria e pilhagem, sem escrúpulos de consciência, e até com o nome de Jesus na boca e no coração.

Pela voz crítica do Velho do Restelo, Camões denuncia o reverso das épicas façanhas dos portugueses, apontando o dedo acusador à fama e à vã cobiça: Dura inquietação d'alma e da vida,/ Fonte de desamparos e adultérios,/ Sagaz consumidora conhecida/ De fazendas, de reinos e de impérios! Aliás, é o mesmo Poeta que também não cala o seu desengano perante as misérias de uma Pátria metida / No gosto da cobiça e na rudeza / De uma austera, apagada e vil tristeza. Neste aspecto, nenhuma obra como Os Lusíadas conseguiu ser a expressão mais sintética do claro-escuro que, simbolicamente, resume a Expansão ultramarina: exaltação heróica e crítica desalentada. Descontente com os sinais de agonia colectiva da Pátria, que, em derradeiro arroubo de entusiasmo, exaltou epicamente num canto crepuscular, a Camões resta-lhe morrer com Portugal, depois do trágico desastre de Alcácer-Quibir.

7.

O Mar e o Regresso

A aventura marítima dos portugueses teve o seu tempo de preparação, o seu período áureo, mas também a fase de decadência. Depois da larga odisseia, chega o momento do retorno à casa lusitana, à Ítaca natal. Cumprida a vocação expansionista, feito e desfeito o Império ultramarino, é a hora do regresso às areias de Portugal e ao cais da partida. Neste movimento centrípeto de regresso ou nostos, subsiste um duplo e contraditório sentimento: de realização duma grandiosa empresa, mas também de incumprimento do sonho. É a hora de o povo de marinheiros regressar ao rectângulo pátrio, ao jardim da Europa, à beira-mar plantado.

A desagregação do Império

No princípio, na dinastia dos Borgonha, foram os séculos de formação da nacionalidade, mais voltada para a Terra. Em seguida, teve lugar a aventura do Mar, de África e da Índia, nos reinados da casa de Avis. Depois, já com os Braganças, foi a decadência do império ultramarino, a revalorização do Brasil e a política de alianças luso-britânicas. Por fim, já no século passado, foi o começo da derrocada do império português. Vejamos.

Primeiro, em princípios do século, a par da implantação do liberalismo, acontece a alarmente independência do Brasil. Era o princípio da desagregação do Império português. Depois, pela voz pessimista de Antero de Quental, acusa-se a empresa das Descobertas de ter sido uma das causas da nossa endémica decadência, sob a forma de atraso científico e cultural: Há nações para as quais a Epopeia é ao mesmo tempo o epitáfio. No final do séc. XIX, no contexto do humilhante ultimatum inglês, Portugal debate-se com sua impotência para fazer valer pelas armas os territórios do mapa cor de rosa. Oliveira Martins perguntará se, perdido definitivamente o sonho do Império, Portugal tem ao menos capacidade política e financeira para se manter como país independente. Perante a vulnerabilidade da nação que, num clamoroso sentimento de finis patriae, se afunda no cais de outrora, chega a defender-se a solução iberista.

Por fim, já em pleno século XX, ocorre a autonomia política de outras conquistas. Começa com a perda dos longínquos territórios indianos. E termina com a dolorosa e sangrenta independência colónias africanas, que a metrópole persistia em manter a todo o custo e contra a maré dos tempos. É, definitivamente, o fim do sonho de um Portugal multicontinental, cujas províncias iam do Minho a Timor.

Na sua singular visão da História de Portugal, Oliveira Martins afirmava que ela estava simbolizada em três grandes monumentos: a Batalha, imagem do Portugal medievo e guerreiro, consolidador da sua independência; os Jerónimos, celebração do Portugal ultramarino e renascentista, na antiga praia da partida e chegada das naus; e Mafra, magnífica representação do Portugal da decadência faustosa do império.

A nostalgia do regresso

O regresso de um povo de navegantes e conquistadores ao porto de partida, lembra-me o sonho da Utopia, de Thomas More. O célebre escritor escolhe justamente um marinheiro português (Rafael Hitlodeu), que navegara pelo Novo Mundo, para comunicar a existência de uma ilha encantada, onde os homens viveriam em harmonia feliz. Depois de já ter percorrido mares e continentes, também ele regressa à quietude do lar. É o símbolo do homem que não se contentou com a pequenez da terra onde vivia, lançando-se na aventura das descobertas, com o deslumbramento e a embriaguez do desconhecido. Enfim, o protótipo de um povo de navegantes, o homem da utopia, tinha de ser português!

Viajando por Portugal, também Miguel de Unamuno pintou a sugestiva imagem de um país provinciano e meditabundo na figura de uma formosa camponesa. Sentada à beira-mar, de costas para a Europa, com os pés descalços na espuma das ondas, olha fixamente o pôr-do-sol no Mar — Mar que, para Portugal, foi teatro das suas façanhas, berço e sepulcro das suas glórias.

Do desbravado mar português, fico-nos a nostalgia. Portugal é, de novo, confinado à sua dimensão terrestre. Este regresso a casa ou ao cais, é precisamente um dos simbólicos temas que tem inspirado muita da actual Literatura portuguesa: depois do passado marítimo e colonial, Portugal interroga-se sobre o destino ou rumo como navio-nação.

Da realização de Expo'98, neste Ano Internacional dos Oceanos e da comemoração dos 500 anos dos Descobrimentos, creio que ficou um saudável sentimento de auto-estima, perante o nosso passado histórico. É tempo de nos libertarmos de sentimentos derrotistas e fatalistas. É tempo de acabarmos com despropositados complexos de inferioridade. É tempo de encarar o futuro com a confiança das grandes realizações do passado. Há 500 anos, estávamos envolvidos num empolgante sonho de expansão. Embarcámos num projecto verdadeiramente galvanizador. E hoje, que ideia ou projecto nos move? Que utopia ou sonho nos mobiliza como povo?

Desta série de sete brevíssimas reflexões, retira-se pelo menos uma conclusão: a da profunda influência do Mar na Língua, na Literatura e na Cultura portuguesas. Costeiro ou oceânico, o Mar faz parte do nosso devir histórico, está-nos no sangue. É um dos traços da nossa idiossincrasia como povo de vocação atlântica ou marítima. Por isso, numa das suas últimas intervenções públicas, Vergílio Ferreira fez esta bela afirmação: Uma língua é o lugar donde se vê o Mundo e em que se traçam os limites do nosso pensar e sentir. Da minha língua vê-se o mar.

(Estes sete breves textos foram publicados, mensalmente, na revista do Mensageiro (Braga, Ed. A. O., de Maio a Dezembro de 1998), acompanhando a Exposição Universal de Lisboa, Expo'98.)


J. Cândido Martins (Universidade Católica Portuguesa – Braga)

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