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Recepção parodística de Cesário Verde, Sá-Carneiro e F. Pessoa no intertexto surrealista

1. INTERTEXTO E DISCURSO PARODÍSTICO

A intertextualidade é uma característica determinante do texto literário e decorre directamente da memória do próprio sistema1. O termo e conceito kristeviano de intertextualidade conheceu uma enorme divulgação no campo dos estudos literários a partir dos anos 60-70. Definindo a intertextualidade como "le travail de transformation et d'assimilation de plusieurs textes opéré par un texte centreur qui garde le leardship du sens", L.Jenny concebe o intertexto como sinónimo de "texte absorbant une multiplicité de textes tout en restant centré par un sens"2.

A polémica e dinâmica semiose textual dos surrealistas portugueses só alcançará pleno entendimento se, desde logo, for concebida como o espaço de um amplo e revolucionário intertexto paródico 3. Isto é, a primeira e talvez a mais explícita modalidade de Paródia é aquele que confronta dois ou mais textos, relação textual em que um se apresenta como texto parodiante (hipertexto) e outro (s) como texto(s) parodiado(s)4. A escrita poética surrealista, possuidora de uma boa memória literária, gera frequentemente um tecido intertextual onde dialogam, parodicamente, vozes ou textos plurais, podendo ser encarada como um espaço de afirmação conflitual e agónica de novos escritores que se revelam "em competição e em confronto com os detentores do poder do campo literário", processo emulativo que "implica a luta consciente ou inconsciente pelo domínio do fundamento e do instrumento primordial de todo o poder simbólico — a linguagem verbal"5.

Nem sempre é fácil detectar as influências e matrizes hipotextuais do intertexto surrealista. Se é certo que em muitas passagens os poetas citam outros textos (com ou sem aspas) ou disseminam inúmeras referências facilmente identificáveis, já noutros casos isso não acontece. A estas modalidades forte e branda do intertexto surrealista, devemos acrescentar uma característica essencial. Referimo-nos aos desafios de interpretação suscitados por um intertexto conscientemente conflitivo; isto é, à obscuridade de alguns textos, explicável pelo profundo desejo de inovação e ruptura. Não satisfeito com uma explicação tradicional, que aponta a técnica da escrita automática como uma das técnicas geradores da obscuridade surrealista, M.Riffaterre reitera posições críticas de outros ensaios anteriores: para este teorizador, a obscuridade da escrita surrealista radica principalmente na proliferação das relações intertextuais:

Un des facteurs importants de la production du sens, sinon le principal, est le fait que certains mots du texte littéraire, au lieu d'avoir des référents non-verbaux, réfèrent à d'autres textes qu'ils citent ou qu'ils présupposent. Comme il n'y a pas de raison que l'écriture surréaliste ne relève pas des mêmes lois que les autres formes du discours littéraire, la production du sens obscur, d'interprétation difficile ou différée, voire du nonsens, ne paut être qu'un cas particulier de la production du sens, donc um cas particulier d'intertextualité6.

Na realidade, o texto surrealista apresenta-se diante do leitor como um espaço intertextual polifónico, isto é, como um discurso literário plural, onde o texto presente nos reenvia para outro(s) texto(s). Mais concretamente, o texto surrealista é animado frequentemente de conotações paródicas, isto é, como texto parodístico, aparece-nos enxertado de outros textos que ele re-escreve, transposiciona ou desconstrói. A Paródia surrealista nutre-se, assim, pantagruelicamente, de um imenso e variado intertexto, não se limitando a uma época, a determinados autores ou certas obras específicas da história da Literatura Portuguesa.

Isso mesmo poderíamos inferir dos versos que M.Cesariny elucidativamente intitula "Alheio..." (1989a: 19-29) e coloca na boca do próprio F. Pessoa — texto poético onde é fácil descortinar referências mais ou menos paródicas e explícitas a F.Pessoa (Álvaro de Campos, Bernardo Soares) e a Mário de Sá-Carneiro; mas também a Mendinho, Gil Vicente, Bernardim e a Camões; sem esquecer também as referências menos significativas a Rimbaud, Shakespeare, Marlowe, António Botto, Raúl Leal, Donne, Milton, Coleridge ou Antero de Quental, entre outros.

Não se pense, pelo que fica dito, que a poética surrealista parodiou, do mesmo modo e com os mesmos objectivos, textos e autores de toda a história da literatura portuguesa. Ao contrário, valorizou, compreensivelmente, determinados períodos, como o lirismo medieval, a literatura barroca ou o esteticismo finissecular, para além de manterem relações privilegiadas com correntes ou movimentos que os precederam, com óbvio destaque para o modernismo de Orpheu e para o Neo-Realismo. Na óbvia impossibilidade de analisarmos com profundidade e exaustão todas as manifestações parodísticas do intertexto surrealista, vamo-nos deter em três relações que julgamos pertinentes.


2. A VISÃO SURREAL DO REALISMO VISUALISTA DE CESÁRIO

Tomemos como ilustrativo exemplo a parodística admiração de M.Cesariny por Cesário (autores quase homónimos...), através da comparação intertextual do poema cesariano "De Tarde" e da sua contrafacção parodística, o texto ironicamente intitulado "homenagem a cesário verde", grafado com minúsculas. A uma leitura superficial, é notório o contraste: o colorido e inocência do encontro descrito por Cesário são pervertidos parodisticamente pelo excesso grotesco e pantagruélico de Cesariny, numa antifrástica "homenagem" ao autor do Livro.

Assim, em Cesário, a beleza luminosamente sensual causada pela impressão de semelhante quadro, origina a vontade de o eternizar numa "aguarela" — pictoralmente, portanto, este "Déjeuner sur l'herbe" resultaria num poema pictórico. Em Cesariny, o que o quadro tinha de colorido e vivacidade, é agora acentuado pelo exagero grotesco (vejam-se as díspares referências gastronómicas); pela metamorfose do do terno "burrico" convertido em "burro"; mas também pela alusão paródica ao topos descritivo do pôr-do-sol e ao pretexto da deambulação.

Numa paródia da obra heteronímica de F.Pessoa, o mesmo Cesariny volta a citar parodisticamente este texto de Cesário, introduzindo-lhe comportamentos sexuais pouco condizentes com o cenário inocente e idílico descrito pelo autor do Livro: "E era felatio para todos/ E pão de ló molhado em malvasia"(Cesariny, 1989a: 70). Para maior ilustração, apresentemos esta curiosa relação intertextual, cotejando o hipertexto surrealista de Cesariny (1982a: 13 [Texo B])7, com o respectivo hipotexto cesariano (1992: 112-113 [Texto A ]):


[Texto A]

De Tarde

Naquele pic-nic de burguesas,

Houve uma coisa simplesmente bela,

E que, sem ter história nem grandeza,

Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,

Foste colher, sem imposturas tolas,

A um granzoal azul de grão-de-bico

Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,

Nós acampávamos, inda o Sol se via;

E houve talhadas de melão, damascos,

E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda

Dos teus dois seios como duas rolas,

Era o supremo encanto da merenda

O ramalhete rubro de papoulas !

[Texto B]

homenagem a cesário verde

Aos pés do burro que olhava para o mar

depois do bolo rei comeram-se sardinhas

com as sardinhas um pouco de goiabada

e depois do pudim, para um último cigarro

um feijão branco em sangue e rolas cosidas


Pouco depois cada qual procurou

com cada um o poente que convinha.

Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário

Verde

Que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!


Não falta também, no ambíguo exercício de louvor e simplificação da poética do engenheiro naval, uma alusão a Cesário Verde: o texto poético de Cesariny (1991: 65) — "(...) e começou o dia/ a varina infectou a perna esquerda nos lixos da Ribeira"— evoca-nos a imagem decadente dos "focos de infecção" gerados pela descarga do carvão pelas varinas, em "O Sentimento dum Ocidental" (Verde, 1992: 103). Não nos deve estranhar esta convocação de Cesário, no momento em que Cesariny parodia A.Campo: Cesário é, consabidamente, o mestre de Campos e Caeiro8.

Aliás, também o texto Corpo Visível, a primeira obra publicada por Cesariny e incluída na Pena Capital, se inicia com uma palimpséstica referência a Cesário e aos "calceteiros,/ [que] Com lentidão, terrosos e grosseiros,/ Calcam de lado a lado a longa rua"(Verde, 1992: 68): "A esta hora entre os blocos de prédios enevoados a/ bela mancha diurna dos calceteiros na praça" (Cesariny, 1982a: 69) — assim começa um extenso discurso poético de enumerações do ambiente citadino.

No poema da "Autocrítica" de O'Neill, uma das influências é justamente Cesário Verde. O humor de O'Neill não resiste a parafrasear, quase literalmente, o seu desejo de "lançar originais e exactos,/ Os meus alexandrinos..."(Verde, 1992: 57). O'Neill dirá ironicamente que a felicidade do poeta residia nesse culto da forma perfeita do "verso habilmente proseado": "e vê-se que para ele o ser feliz/ era lançar, originais e exactos, os seus alexandrinos". Não se ficando por aqui, O'Neill ironiza também com as frequentes referências de Cesário Verde (cf.1992: 57) a ferramentas, ao falar no "ferramental honesto": "Cesário diz-me muito: gostava de ferramentas, como eu" (O'Neill, 1990: 264). Nesta transformação hipertextual, O'Neill socorre-se ainda de jogos de palavras ("halo" / "elo"). Falta apenas referir que os versos citados em que O'Neill fala de Cesário são jocosamente complementados por uma de nota exclamativa, entre parêntesis e em itálico, dizendo: "(Que feliz eu seria, ó prima, se o Cesário/ me tivesse deixado uma garlopa !)"9.


3. A AMBÍGUA DES-MI(S)TIFICAÇÃO DA SOMBRA DE ORPHEU


Os poetas do Orpheu, particularmente Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, foram concerteza, pela "revolução mental" e estética que operaram (cf.Cesariny, 1985: 262), dos escritores mais admirados pelos surrealistas, mas também foram, ao mesmo tempo, mas por outras razões, dos autores mais parodiados ao nível do intertexto surrealista10. A utilização paródica de textos da autoria dos modernistas de Orpheu deve ser enquadrada numa funcionalidade ambivalente11, cujo ethos vai desde a violenta derisão paródica à homenagem mais ou menos velada. Não é fácil destrinçar os motivos que levaram os surrealistas a descontruir os textos dos poetas de Orpheu, particularmente os de F.Pessoa. Entre as várias razões apontadas, sobressai uma: a moda Pessoa ocultaria, injustamente, na sombra alguns — citando um verso de Cesariny (1981a: 162) — "dos melhores poetas pós-fernandinos", como Teixeira de Pascoaes12.

A relação parodística com os escritores da Geração do Orpheu não se limita à escrita poética, manifestando-se também em textos crítico-doutrinários, como em "O Senhor Cágado e o Menino", de A.Maria Lisboa (1977: 205-6), um texto de certo recorte autobiográfico:

O snr. Cágado tem um enorme Buda na sua frente e um eléctrico que é Orpheu e a explicação do Orpheu com a presença de sempre do snr. Fernando Pessoa Almada Negreiros e Sá-Carneiro e a presença de às vezes dos outros e de toda a gente e de nós. O snr. Cágado pensou também escrever esta explicação do Orpheu que era o Carro Eléctrico seu destino cósmico individual e seu destino social: um a morte, outro a morte e a vida, outro a morte viva ou a morte e a vida e a vida.

Mas é sobretudo na "Carta Aberta Ao Snr.Dr.Adolfo Casais Monteiro" que António Maria Lisboa (1977: 106) se interroga criticamente sobre a relevância da obra de F.Pessoa — não hesitando em considerá-lo como "literato"—, sem esconder as suas preferências pela de Sá-Carneiro:

(...) e porquê Fernando Pessoa a figura central ? Por assiduidade ao café? pelo seu inglês clássico? ou pelas respostas às charadas que enviava para Londres ? Ouve centro? e a havê-lo não seria esse Magnífico Sá-Carneiro de que todos se serviam e perante o qual Pessoa perde todas as pessoas porque Sá-Carneiro é o seu assassino? A que distância um do outro: Pessoa, o capacho-confesso, Sá-Carneiro...um Esfinge-Gorda, exacto! Um, um literato, fazendo um esforço de QUATRO para não recuperar o meio - fracassando; o outro, excesso do meio !13


Estes pronunciamentos críticos não escondiam, em muitos momentos, uma forte relação de emulação com os poetas do Orpheu: M.Cesariny, por ex., (in Lisboa, 1977: 8) considera o surrealista António M.Lisboa o "mais importante poeta nosso depois de Fernando Pessoa"14. Veja-se também o "Anti-Cadáver-Esquisito", escrito em 1949 e assinado por Pedro Oom (1980: 32-33), onde se satiriza um certo tipo de homenagens: "Daí que resultem ridículas as homenagens colarinho-alto ou selecta-de-infância com que é costume, aqui e lá fora, enfaixar o cadáver daqueles que como Fernando Pessoa, Rimbaud ou Gomes Leal foram em vida o mais esforçado testemunho contra o bom-senso-não-deites-a-língua-de-fora" (Cesariny, 1966: 95-96; 1989b: 39-40).


3.1. Recepção de Sá-Carneiro, poeta da dispersão interior

A obra de Mário de Sá-Carneiro ocupa, realmente, um lugar destacado no intertexto surrealista15. Como já o demonstrou M.ª Fátima Marinho16, a escrita poética de Sá-Carneiro, recorrendo a certos processos poéticos e temas, demonstra afinidades com a poética surrealista: as enumerações mais ou menos caóticas, a obsessão por metáforas do mundo da cor e dos sons, a percepção sinestésica da realidade, a atracção por imagens inesperadas e insólitas, a predilecção pelo inverosímil, pelo fantástico e pelo onírico; mas também determinadas temáticas obsessivas, como a dispersão do sujeito poético e a demanda de um outro mundo supra-real onde o sujeito poético se harmonize.

Partindo do questionável pressuposto de que, em Portugal, o Surrealismo começou a manifestar-se efectivamente no Modernismo, H.Houwens Post defende e procura demonstrar a tese de que M.Sá-Carneiro é "um dos primeiros surrealistas portugueses juntamente com o seu amigo Fernando Pessoa"17. Contudo, embora sejamos tentados a concordar com o papel de percursor que é atribuído ao autor dos Indícios de Oiro, temos de sublinhar uma importante ressalva: a semelhança de técnicas, processos e temáticas da obra de Sá-Carneiro e da poética surrealista não nos impede de concluir que os objectivos que presidiam à escrita do nosso poeta modernista eram bastante diversos dos que orientavam a criação poética dum escritor surrealista18. Analisemos, de seguida, alguns textos inspirados em Sá-Carneiro.

Em A.O'Neill, por ex., deparamos com a peculiar utilização parodística dum texto significativo da mundividência dispersiva de M.Sá-Carneiro. Referimo-nos ao célebre poema "7", que O'Neill entrelaça, alternada e dialogicamente, com outro texto de Sá de Miranda — protótipo da relação intertextual —, de que é significativa a lúdica fusão dos nomes dos dois poetas (Sá de Miranda e Sá Carneiro), gerando um terceiro texto intitulado "SÁ DE MIRANDA CARNEIRO"(O'Neill, 1990: 373):

comigo me desavim

eu não sou eu nem sou o outro

sou posto em todo o perigo

sou qualquer coisa de intermédio

não posso viver comigo

pilar da ponte de tédio

não posso viver sem mim

que vai de mim para o Outro

Este processo de cruzamento textual, recorrendo a uma técnica tipicamente surrealista — a técnica plástica e verbal da colagem 19, curiosamente já ensaiada também por Luís Pacheco (1959: 13), no título "De André Tolentino a Nicolau Breton" — proporciona a A.O'Neill patentear assim a natureza eminentemente intertextual do seu texto, sem deixar de condimentar a interna conflituosidade dramática dos dois poetas com uma boa dose de ironia e de jogo verbal.

Esta temática modernista da dispersão no labirinto interior (metamorfose do mito da catábase) de Sá-Carneiro, sobretudo no longo poema "Dispersão", é motivo de paródia para M.Cesariny (1981a: 64-66), num texto que dá pelo título de "Vinte quadras para um dadá", de que transcrevemos a primeira quadra: "eu estou presente/ todo eu sou sim/ e é de repente/ não dou por mim"20. Esta subversão parodística da temática nuclear de Sá-Carneiro conhece, ainda na pena do mesmo Cesariny, uma espécie de amplificatio de recorte igualmente paródico — falamos da continuação em "Vinte quadras para um dadá II" (1982a: 14-18).

Num "Cadáver Esquisito Extraordinariamente Ortodoxo", também nos aparece citado o nome de Sá-Carneiro, entre o de outros escritores a quem se deve a autoria colectiva (A.O'Neill, A.Maria Lisboa, M.Cesariny e Pedro Oom). O texto que tem o título de "Comunicação" e é mais ou menos patente a auto-reflexividade dramática do autor de Dispersão e a sua constante atracção por uma imagética da cor - como se pode avaliar pela transcrição da primeira estrofe (Cesariny, 1980: 87; 1989b: 53): "Nesta ilusão iludi-me./ A hora da vida já/ Soltou uma gargalhada/ E saiu pela janela".

Já na colectânea dos seus primeiros textos surrealistas, justamente num texto em que se proponha louvar e simplificar Álvaro de Campos, o heterónimo futurista e sensacionista, M.Cesariny (1991: 69) alude parodisticamente a alguns dos mais célebres versos de M.Sá-Carneiro — particularmente os poemas "Quase" ou "A Queda" (1978: 68-69 e 79-80 ) —, ao mesmo tempo que elogia a sua opção pelo suicídio:

Com certa espécie de solidariedade

lembro-me de ti, Mário de Sá-Carneiro,

Poeta-gato-branco à janela de muitos prédios altos.

Lembro-me de ti, ora pois, para saudar-te,

para dizer bravo e bravo, isso mesmo, tal qual!

Com certa espécie de solidariedade

lembro-me de ti, Mário de Sá-Carneiro,

para dizer bravo e bravo, isso mesmo, tal qual!

Fizeste bem, viva Mário!, antes a morte que isto,

viva Mário a laçar um golpe de asa e a estatelar-se todo cá em baixo

(viva, principalmente, o que não chegaste a saber, mas isso é

[já outra história...)

Na iconoclasta explicação de Pessoa às criancinhas, o tom da paródia da obra de Sá-Carneiro aumenta significativamente. Depois de pôr na boca de Pessoa versos do seu amigo Sá-Carneiro, Cesariny (1988a: 26-27)21, desarticula assim parodisticamente alguns versos do poema "Quase", interpolando despropositados e irónicos comentários na narcísica e decadente confissão do fracasso — a agonia de ser-quase — por parte do poeta de Orpheu (Sá-Carneiro, 1978: 68 [Texto A]):

[Texto A]

Um pouco mais de sol — eu era brasa.

Um pouco mais de azul — eu era além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa...

Se ao menos eu permanecesse aquém...

 

[Texto B]

Um pouco mais de sol — eu era brasa

(Ainda aza que tem pouco sol em casa)

Um pouco mais de azul — e eu era além

(Com o azul japonez que o Sky portuguez tem)

Para atingir, faltou-me um golpe de asa.

Se ao menos eu permanecêsse àquem... (mais

perto de casa).



3.2. Recepção de Fernando Pessoa, o virgem negra

Detenhamo-nos agora na relevância do hipotexto pessoano. Embora a obra poética de Álvaro de Campos seja a mais parodiada, juntamente com a de Pessoa-ortónimo, não deixam de ocorrer algumas desconstruções de Caeiro, o autor de "O Guardador de Rebanhos". As "variações narcísicas" de Manuel João Gomes (1980), por ex., contemplam, entre outros autores, os nomes de Ricardo Reis e de Álvaro de Campos, alcunhado de "pai do Espelho lúbrico".

Numa "Saudação a João Cabral de Melo Neto", O'Neill (1990: 164-165) a propósito de influências e do pretenso "prosaísmo" deste poeta brasileiro contemporâneo, interroga-se ironicamente: "Será no mesmo sentido/ de Pessoa-Alberto Caeiro/ (outro prosaico, mas pouco desiludido...): / «... escrevo a prosa dos meus versos/ e fico contente»?"22. Deve-se também a A.O'Neill (1990: 196), depois de saudar futurística e pessoanamente Walt Whitman ("Já não te podem suportar, Walt Whitman"), uma interessante reflexão acerca da influência de Pessoa — acontece no fundamental poema da "Autocrítica"(1990: 262-266), texto em que surpreendemos um diálogo irónico de O'Neill com o poeta criador dos heterónimos.

No poema "Autocrítica", o nome de Pessoa surge ao lado de outros poetas que, segundo a perspectiva irónica de O'Neill, a crítica garante terem influenciado decisivamente o poeta (Guerra Junqueiro, Nicolau Tolentino, Paulino A.Cabral, Cesário Verde, António Nobre) — sobretudo no pendor irónico-satírico da sua escrita —, fazendo dele um repetidor ou, na melhor das hipóteses, um "ser reminiscente" (antente-se no valor estilístico das formas verbais reflexas): "Dizem que me junqueiro, que me tolentino/e até que me paulino,/que tenho tudo e Todos no ouvido/e não sou nada original". Autocrítica antecedida por um não menos irónico "prólogo", colocado entre parêntesis e grafado em itálico: "E em conclusão ao megalómano discurso,/ ó prima, um bilhete-postal para o Pessoa,/ a quem devemos todos tanto, a prima inclusive!":

[Texto A]

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.


Já disse: sou lúcido.

Nada de estéticas com coração: sou lúcido.

Merda! Sou lúcido.

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Cerca de grandes muros quem te sonhas.


(Pessoa, 1981: 349 e 122)23

[Texto B]

Muito querido Pessoa, saberias agora

que não basta ser lúcido, merda, que não basta

a gente coser-se com as paredes

e cercar de grandes muros quem se sonha,

que não basta dizer basta de provincianos !


 

 

(O'Neill, 1990: 265)

Através do cerzimento de algumas alusões ou brevíssimas incrustações do hipotexto pessoano — como podemos constatar através do cotejo com o hipotexto inspirador —, O'Neill questiona assim, em jeito de sátira parodística, determinada concepção de poesia e uma certa visão pessoana de Portugal, ou, pelo menos, distancia-se dela criticamente. Noutro poema, intitulado "As voltas da poesia"(1990: 258), são identificáveis, palimpsesticamente, irónicas alusões à "dobrada" de Pessoa-Campos (Pessoa, 1981: 352).

Aliás, ainda a propósito do citado hipertexto de O'Neill, também na paródica explicação de F. Pessoa elaborada por M.Cesariny (1989a: 33), deparamos com um exemplo do que M.Bakhtine designaria por baixo corporal: "Lúcido, sim, Lúcido até às fèzes". Confissão que, no discurso de Cesariny (1989a: 34), leva o próprio Pessoa a fazer um uma auto-análise mental: "Lúcido! Sim! E medonho. Ou bisonho./ Tirado do natural".

Também no poema "Dores", constituído por uma breve estrofe de quatro versos, o mesmo O'Neill alude a outro poema de F.Pessoa (1981: 98-9 [Texto A]), o texto poético da "Autopsicografia", operando uma irónica re-interpretação da complexa teoria do fingimento racionalista pessoano. O excessivo celebralismo pessoano não se coaduna com uma estética surreal, valorizadora do fantástico e do maravilhoso, nem com o humor magoado de O'Neill (1990: 85 [Texto B]):

[Texto A]

O Poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,

na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

[Texto B]

Às dores inventadas

Prefere as reais.

Doem muito menos

Ou então muito mais...


 

 

 

 

 

Esta definição da criação artística e sobretudo a questão da racionalização dos sentimentos — que origina a pessoana dor de pensar — é também por Pessoa (1981: 99) expressa claramente no poema "Isto": "Dizem que finjo ou minto/ Tudo o que escrevo. Não./ Eu simplesmente sinto/Com a imaginação. Não uso o coração". Ao que Cesariny contrapõe, dentro do mesmo estilo do baixo corporal bakhtiniano, uma contrafacção paródica, de que transcrevemos a primeira estrofe, suficiente para ajuizar do alcance deste tipo de desconstrução (Cesariny, 1989a: 61): "Dizem que eu sou um chão/ De rodas de veículos,/ Dizem que é assim mas não,/ Eu simplesmente são/ Com a imaginação./ Nunca uso os testículos"24.

De facto, são muito frequentes as alusões, referências ou citações de Pessoa — o referido percursor dos surrealistas25 — no intertexto surrealista, particularmente na obra de M.Cesariny. Há casos em que a paródia de Cesariny (1980: 203) se faz a partir de referências e citações do hipotexto pessoano, como neste exemplo: "Ai que prazer! gritava Segismundo correndo na praia depois da exposição de pintura. Que prazer ter um livro para ler!...// ...E não o fazer!". Texto que retoma, quase literalmente, os quatros primeiros versos do poema "Liberdade" de Pessoa (1981: 122).

Noutros textos de Cesariny, a paródia opera-se a partir de alusões, como é o caso do poema "Pastelaria" (Cesariny, 1991: 15-16) e das articulações palimpsésticas que estabelece com o conhecido poema de Álvaro de Campos, "Tabacaria" (Pessoa, 1981: 296-300). Para lá da analogia de serem dois lugares de encontro e reflexão intelectual — repare-se também na semelhança fónica e semântica dos lexemas que titulam ambos os textos —, ao nível do hipertexto cesariniano sobressai uma espécie de contrafacção carnavalescamente paródica do hipotexto pessoano. O texto da "Tabacaria" é, indubitavelmente, uma produção da última fase da evolução de A.Campos, centrtado numa cansada e frustrante tentativa de auto-análise, responsável por um patológico estádio de abolia e cepticismo - ou seja, uma fase bem distante da primeira euforia futurista e da volúpia sensacionista da "Ode Triunfal". O texto-matriz de Pessoa-Campos [Texto A ] apresenta-se como um discurso poético analítica e doentiamente reflexivo. O excesso de cogitação como que inibe o poeta / Homem de agir, lançando-o no labirinto dos seus pensamentos niilistas e absurdos. Por isso, impedido de viver pelas suas enredadas cogitações metafísicas, o poeta inveja a menina que despreocupadamente come chocolates — "Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates" —, o "Esteves sem metafísica" e, por fim, reconhece que, perante a actividade do dono da Tabacaria, a sua literatura não passa de uns "versos inúteis", exprimindo assim o seu mortal cepticismo (Pessoa, 1981: 299):

Ele morrerá e eu morrerei.

Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.

A certa altura morrerá a tabuleta também e os versos também.

Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,

E a língua em que foram escritos os versos.

Morrerá depois o planeta girante em que isto se deu.

Opostamente, M.Cesariny aproveita a sugestão de Campos acerca da "confeitaria" - "(Come chocolates, pequena,/ Come chocolates" (Pessoa, 1981: 298) e, no poema "Pastelaria" [Texto B ] desvaloriza e, parodisticamente, desmonta a excessiva introspecção que leva o poeta (Homem) a um estádio de náusea e decadência, e a mundividência que lhe está subjacente: "Que afinal importa não é haver gente com fome/ porque assim como assim ainda há muita gente que come" (Cesariny, 1991: 15). Revalorizando a captação do real quotidiano, Cesariny reduz, dum modo anafórico e irónico, a arte literária à sua devida dimensão: "Afinal o que importa não é a literatura/ nem a crítica de arte nem a câmara escura"(1991: 15). Desmi(s)tificando corrosivamente a metafísica absurdista de Pessoa-Campos, Cesariny exclama que o que é preciso é desproblematizar e rir de tudo o que nos cerca: "Que afinal o que importa é pôr a gola do peludo/ à saída da pastelaria, e lá fora — ah, lá fora! — rir de tudo// No riso admirável de quem sabe e gosta/ ter lavados e muitos dentes brancos à mostra"(1991: 16).

Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos foi escrito em 1946, pouco depois da primeira edição das Poesias do heterónimo pessoano e cerca de dez anos após a morte de Pessoa. Apenas publicada, incompleta, em 1953, foi reeditada recentemente (Cesariny, 1991: 61-73). Desde logo, é um texto que ostenta um subtítulo duplamente significativo — "Fragmento": quer porque o texto que agora lemos foi objecto da censura; quer também, num sentido mais simbólico e irónico, porque caracteriza a desmontagem parodística de alguns textos de F.Pessoa, contrariando assim o martirológio crescente em torno da obra pessoana (cf.Cesariny, 1991: 61; 1985: 23), mas também a sua excessiva vulgarização — "Assim como a Poesia não é para um par de sapatos, assim Fernando Pessoa não é para todos os dias"(id., 1991: 62). Finalmente, o próprio autor adverte-nos do significado desta experiência (id., 1991: 61-62): "«Simplificar» Fernando Pessoa tomando de empréstimo alguma da sua linguagem, e reduzi-lo ao voto de um barco para o Barreiro, é coisa em que cada um só deve cair uma vez. Fique, pela parte que me toca, o molde e o valor da experiência" (cf.Cesariny, 1982a: 3).

Esta confessada "reconstrução paródica" (cf.Marinho, 1982: 30) da escrita poética de Pessoa-Campos, incidindo mais ou menos indistintamente sobre as fases decadentista e futurista deste heterónimo pessoano, convoca e entrelaça várias citações e alusões, não resistindo em transformar o hipotexto pessoano, recorrendo, para o efeito, a técnicas de simplificação como o resumo, a mutilação, a montagem ou a inversão. Deste modo, o "paquete" da "Ode Marítima" de A.Campos dá aqui lugar ao "barco para o Barreiro"(Cesariny, 1991: 64, 71); as "rodas" e "engrenagens" da "Ode Triunfal" (Pessoa, 1981: 240) transformam-se nas "correias volantes" da "fábrica"(Cesariny, 1991: 66); na referência ao "charuto", "fumo"e ao "cigarro" do texto de Cesariny (1991: 65, 66, 67, 69), ecoa o poema pessoano da "Tabacaria" (Pessoa,1981: 296-300); o "automóvel verdadeiramente aerodinâmico" do poema de Cesariny (1991: 66) evoca o pessoano "Chevrolet pela estrada de Sintra" (1981: 305); e, sobretudo, o cais metafísico da "Ode Marítima" — "todo o cais é uma saudade de pedra!"(Pessoa,1981: 249), toma, em Cesariny, a forma dum prosaico e proletário cais com "gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro"(Cesariny,1991: 64 e 71)26.

Para além da paródia textual, e como não poderia deixar de ocorrer, deparamos também com desconstrução do processo heteronímico pessoano e alusões irónicas à obra pessoana não publicada. Em Um Auto Para Jerusalém, várias personagens dramáticas se pronunciam sobre esta complexa questão, desmistificando-a nestes termos: "Fernandus Pessoas, um judeu estrangeirado. Doutor em.. em... nada", define o sábio Cornelius Macissus. Ao que Salomé exclama: "Ah. Um poeta que não é letrado". Por sua vez, outra personagem, Matatias, acrescenta: "Ainda não foi descoberto pela Judá Editora". Quando Eleazar alude ao baú de Pessoa — "Vai ser um frenezim, quando lhe descobrirem o baú!" —, Cornelius Macissus coloca a questão da criação heteronímica nesta formulação irónica e derisória: "Vive com quatro homens ao mesmo tempo!" (id., 1991: 96)27.

Mais recentemente, este polígrafo poeta surrealista deu à estampa um novo livro, O Virgem Negra, que, mais rigorosamente, ostenta o seguinte título completo: O Virgem Negra. Fernando Pessoa explicado às criancinhas naturais & estrangeiras por M.C.V. 'Who Knows Enough About It' seguido de Louvor e Desratização de Álvaro de Campos pelo Mesmo no mesmo lugar. Com 2 cartas de Raul Leal (Henoch) ao Heterónomo; e a Gravura da Universidade, seguido de mais alguns esclarecimentos: Escrito & Compilado de Jun.1987 a Set.1988 (Cesariny,1989a). Como podemos constatar, aqui a escrita paródica inicia-se, desde logo, pela imitação derisória dum dos elementos constituintes do peritexto literário, mais expecificamente do título clássico, longo e descritivo.

Nesta recente explicação de Pessoa, a paródia do processo de criação heteronímica assume colorações mais violentas. No texto com que abre o livro, intitulado "Prótese", recorrendo a um discurso ostensivamente demolidor, grotesco e pornográfico, Cesariny põe na boca do próprio poeta a justificação da génese dos heterónimos: "Co'a breca da antinomia/ Em desuso há seis mil anos/ Fabriquei a cartesia/ dos heterónimos manos.// Desvestidos de seus nus,/ De pernas muito afastadas,/ Duas medidas de mus/ (Duas formas co-irmãs)/ Masturbam homens de as-/ Pecto decente nos/ Vãos de escadas"(1989a: 11).

Seguidamente, ora nos é apresentado Álvaro de Campos "a heterossexuar e a urinar"(id.,1989a: 25); ora, próximo de um discurso do baixo corporal bakhtiniano, em antinómicas auto-relações sexuais: "Toda parte e todo todo/ Todo não e todo sim/ Quando não fodo é que fodo/ E quando fodo é a mim"(id.,1989a: 38). Ao longo do discurso poético, muitas vezes em jeito de autocaracterização deste poeta polinómico, Pessoa merece epítetos tão variados, inesperados e grosseiros como estes: aldeão do mundo, cabalista, alquimista, paneleiro, mulher, homossexual, Onan, virgem-negra, grogue, quadrado, Zen com hemorróidas, anti-génio, anti-Cristo, Super-Camões, entre outros. Noutras passagem desta obra, volta a destacar a pluralidade pessoana, dizendo que até ultrapassa as pessoas da Trindade (divina?): "sentam outros que êle é dez/ mais do que a espiral Trindade" (id., 1989a: 37).

De facto, nada mais estranho à poética surrealista, profundamente valorizadora da busca da unidade do ser, do que a despersonalização (drama em gente) da escrita de Pessoa, tal como a dispersão e a obsessiva autognose de Sá-Carneiro. Numa panorâmica história do movimento surrealista — "Para uma cronologia do surrealismo em português" — Cesariny (1985: 262-3) é bastante claro no esclarecimento das relações que aproximavam a poética surrealista do grupo modernista do Orpheu: "O que em Fernando Pessoa interessou profundamente os surrealistas foi o desligar da corrente alterna que ligava há séculos o discurso racionalista ao princípio da identidade, foi a destruição do conceito (válido) de «personalidade» (...) e não, nunca, o da sua divisão, compartimentação ou dispersão".

Colocando o discurso poético na boca do próprio Pessoa, processo que mais acentua o efeito paródico desta conflitiva reescrita, Cesariny fragmenta e reconstrói parodisticamente o hipotexto pessoano. Assim, ora procede ao desmembramento ou amputação de textos de Pessoa, ora os reescreve borgesianamente, isto é, transcrevendo-os 'ipsis verbis'. Estão no primeiro caso, por exemplo, poemas em que Cesariny literalmente desmonta o hipotexto pessoano, alterando alguns lexemas fundamentais e denegando parodicamente o pendor racionalista da escrita pessoana. Através do trocadilho, introduz uma conotação ironicamente erótica ("Sonho-te tão bem/ Que o corpo me vem/ E me venho sem ir") , a qual declaradamente constrasta com o texto de Pessoa ("Quero-te para sonho/ Não para te amar"). Cotejemos os dois textos para melhor avaliarmos esta transformação parodística:

Dorme enquanto eu velo...

Deixa-me a sonhar....

Nada em mim é risonho.

Quero-te para sonho,

Não para te amar.


A tua carne calma

É fria em meu querer.

Os meus desejos são cansaços.

nem quero ter nos braços

Meu sonho do teu ser.


Dorme, dorme, dorme,

Vaga em teu sorrir...

Sonho-te tão atento

Que o sonho é encantamento

E eu sonho sem sentir. (Pessoa, 1981: 75)

Dorme que eu velo

sedutora imagem

Terna miragem

..........................

Nada em mim é risonho

Ou anseia viagem.

Quero-te para sonho

Não para gôzo e dor.


Tua carne psalma

Fria em meu querer.

Os meus desejos são cansaços

Nem quero ter nos braços

...................................

Dorme, filha, dorme,

Vaga em teu sorrir.

Sonho-te tão bem

Que o corpo me vem

E me venho sem ir. (Cesariny, 1989a: 45)

No outro caso referido, da reescrita borgesiana, estão os poemas em que Cesariny re-escreve parodisticamente alguns textos de Pessoa, citando-os 'ipsis verbis'. Veja-se, a título de exemplo, o poema de Cesariny "Quem te disse ao ouvido êsse segredo", que transcreve literalmente o texto poético de Pessoa ortónimo que tem por título "Intervalo". Atente-se, pois, na propositada e significativa coincidência, para o que só transcrevemos as primeiras estrofes:


Quem te disse ao ouvido êsse segredo

Que raras deusas têm escutado -

Aquele amor cheio de crença e mêdo

Que é verdadeiro só se é segredado ?...

Quem to disse tão cedo ?


(Pessoa, 1981: 64)


Quem te disse ao ouvido êsse segredo

Que raras deusas têm escutado -

Aquele amor cheio de crença e mêdo

Que é verdadeiro só se é segredado ?...

Quem to disse tão cedo ?


(Cesariny, 1989a: 51)

A pergunta surge com naturalidade e pertinência: estaremos perante um plágio descarado ? Certamente que não28. Mais do que uma forma de "plágio de derisão"29, este texto de Cesariny é uma revolucionária e destruidora forma de reescrita. No relato de Jorge Luís Borges (1991b), "Los Teólogos", o mesmo texto de vinte palavras, da autoria de Juan de Panonia, serve para refutar uma heresia, e constitui, depois, prova material para a sua condenação à morte. À imagem do que acontece também com o célebre relato de Jorge L.Borges (1991a: 52), "Pierre Menard, autor del Quijote", em que o simbolista francês reescreve uma parte do livro de Cervantes, citando-o literalmente: "No quería componer otro Quijote (...). Su admirable ambición era producir unas páginas que coincidieran — palabra por palabra y línea por línea — con las de Miguel de Cervantes". Esta reescrita a quatro séculos de distância não se confunde com plágio: "El texto de Cervantes y el de Menard son verbalmente identicos, pero el segundo es casi infinitamente más rico" (Borges, 1991a: 56-57).

A este tipo de citações transcontextualizadoras se aplica a reflexão de D.Bilous: "(...) la parodie la plus efficace reste celle qui se contenterait, pour subvertir le sens hypotextuel, de transplanter en contexte ingrat le mot d'autrui, de le dépayser mais en le citant littéralment"30. Tal como nos é demonstrado pela experiência borgesiana, a citação literal implica, necessariamente, transcontextualização; a cópia do Quixote pelo autor moderno constitui realmente, não um simples plágio, mas uma repetição crítica, uma efectiva reescrita.

Também a (mera) citação operada pelo intertexto surrealista, tal como aqui acontece exemplarmente, não deve ser tomada como um procedimento inocente31. Neste contexto, convoque-se a opinião mais radical de Michel Butor: "La citation la plus littérale est déjà dans une certaine mesure une parodie"32. Aplica-se aqui cabalmente a definição que L.Hutcheon propõe de Paródia, quando fala em repetição com distanciamento crítico 33.

Num procedimento intermédio entre estas duas modalidades analisadas — fragmentação e reescrita — está, por exemplo, o texto em que Cesariny entrelaça dois textos (discursos) distintos de Pessoa. Mais concretamente, as citações das cinco estrofes do poema "Aqui na orla de praia, mudo e contente do mar" do ortónimo (Pessoa, 1981: 84) alternam com algumas fórmulas ou expressões carinhosas retiradas do discurso epistolográfico pessoano, que tinham Ofélia como destinatária (Pessoa, 1983: 39, 89, 145, etc.). Vejamos o início deste novo texto de Cesariny (1989a: 63), que, confessadamente, se alimenta de Pessoa:


Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,

Sem nada já que me atraia, sem nada que desejar,

Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida

E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

A nini Bèbèzinho

Do Ibi

Dá Òféli

Bjinho ?

Próximo desta técnica, encontra-se também o poema de Cesariny (1989a: 87-88) intitulado "Na sombra do Monte Abiegno" que reescreve, literal e parodisticamente, o texto poético de Pessoa com o mesmo título (Pessoa, 1981: 96), citando quase literalmente o hipotexto do Cancioneiro em seis novas quadras, amputando-lhes apenas os dois versos finais das sextilhas pessoanas, com excepção da última estrofe.

Como judiciosamente nos adverte L.Jenny34, "la redite n'existe pas", isto é, a simples repetição é portadora de um sentido crítico e, no caso do intertexto surrealista, de uma funcionalidade deformadora e paródica. Neste sentido, aplicam-se ao intertexto surrealista as palavras do mesmo crítico francês: "Si l'avant-gardisme intertextuel est volontiers savant, c'est qu'il est à la fois conscient de l'object sur lequel il travail et des souvenirs culturels qui le hantent. Son rôle c'est de ré-énoncer de façon décisive des discours dont le poids est devenu tyranique". Seguindo esta perspectiva, está M. Riffaterre: "Loin d'être un caractère superficielle ou acidentel, elle [a repetição] est au coeur même du phénomène parodique"35.


 

2.3. Conclusão: a paródia e a ambiguidade da relação icoloclasta

Como reflexão final, é talvez oportuno reafirmar e justificar mais detidamente dois pontos de vista que se podem inferir do que antes fomos expondo: primeiro, a assinalável diferença com que estes dois poetas do Orpheu são re-avaliados ao nível do intertexto paródico surrealista. Se Pessoa é o poeta que, intencionalmente, os surrealistas desconstroiem, como que para exorcisar o fantasma da sua sombra ou omnipresença paterna e tutelar, Sá-Carneiro, não deixando de ser objecto de várias transformações hipertextuais, é motivo de in-confessada admiração.

O tratamento do hipotexto pessoano — tendo presente a entusiástica recepção crítica que foi conhecendo nos anos de afirmação do movimento surrealista, que concorreu para a génese de uma certa aura de génio à volta de F.Pessoa — é equivalente ao que a teorizadora italiana N.Giannetto classifica como desmistificação paródica, ao propor-se "dismitizzare il valore troppo assolutizzato, la sacralità intocabile di um auctor"36. Diferentemente, a obra e a figura de M.Sá-Carneiro, mesmo quando objecto da paródia surrealista, parecem conhecer uma recepção bastante distinta, que, recorrendo mais uma vez à classificação de N.Giannetto, se assemelha mais a uma canonização paródica (ou homenagem dissimulada), pois nesta modalidade de paródia "l'autore parodiato è oggetto di ammirazione da parte del parodiante"37. Apesar das diferenças apontadas, e ao contrário do que acontece com a generalidade do hipotexto clássico ou classicista convocado pelo intertexto surrealista, pensamos não estar perante um tipo de paródia malévola, pois talvez não pretenda demolir a herança de Orpheu, mas antes desempenhar a função de releitura crítica dos textos e autores parodiados. Na terminologia crítica de G.Almansi e G.Fink, as relações do intertexto surrealista com a obra pessoana oscilariam, ambiguamente, entre o falso perverso e o falso consacrante. Embora, como reconhecem os mesmos autores, nem sempre seja fácil delimitar fronteiras, pois "risulta chiaro che la parodia più maligna è ancheatto d'omaggio, l'ammirazione più sincera una forma d'inconscio esorcismo"38.

Em segundo lugar, cremos que a relação conflituosa, e ocasionalmente corrosiva, dos surrealistas, particularmente a de M.Cesariny, com os poetas de Orpheu (F.Pessoa, sobretudo) deve ser encarada, pelo menos em parte, como uma relação de pendor agónico e contestatário. Estaríamos próximos da perspectiva psicologista de H.Bloom39, designada como ansiedade da influência 40, que leva o Poeta a recorrer a vários processos de afastamento ou negação da influência do pai poético (precursor), a fim de afirmar a sua maturidade, independência ou emancipação estética.

A paródia surrealista do hipotexto pessoano, sobretudo na escrita poética de Cesariny — tendo em conta a aura mítica que ia envolvendo a vida e obra de Pessoa, sem esquecer certas afinidades que faziam dele uma espécie de percursor dos surrealistas —, assemelhar-se-ia a uma rejeição edipiana mais ou menos profunda, embora tenhamos que reconhecer que este discurso paródico não se esgota nesse tipo de relação. Somos mesmo de opinião de que esta diálogo parodístico dos surrealistas com os poetas de Orpheu é profundamente ambivalente: ora nos aparece no seu fulgor destrutivo e textofágico, podendo ser visto, numa modalidade mais branda, como um distanciamento irónico diante da obsessão ou hegemonia (moda) pessoana; ora pode ser encarado como uma indirecta e respeitosa homenagem41, uma vez que a paródia do hipotexto pessoano deixa aflorar, no nosso entender, uma certa simpatia pelo "pobre do Álvaro de Campos", mas sobretudo por Sá-Carneiro. Para os surrealistas (cf.Cesariny,1982: 221), assim se evitavam os excessos, sempre condenáveis, de uma "farsa elogiosa repugnante", como aconteceu depois da morte de Verlaine e Rimbaud.

Esta teia de relações intertextuais, de que temos vindo a dar suficientes (mas não exaustivos) exemplos, as inevitáveis apropriações do outro texto (autor) e as várias modalidades de mimetismo parodístico, não se confundem, obviamente, com qualquer forma de plágio lúdico42, como também já tivemos oportunidade de demonstrar, mas constituem antes um frequente procedimento de assimilação ou re-leitura crítica. Por outras palavras, estas manifestações de diálogo com o outro texto pretendem significar uma demarcação ou distanciamento mais ou menos polémicos em relação a certos textos ou tradição literária 43; ao mesmo tempo que vão quebrando a "continuidade da herança antiga" de que falava H.R.Jauss44, demarcando as suas próprias concepções e constituindo a sua tradição.

Em suma, como estética da descontinuidade e da ruptura, o intertexto marcadamente parodístico dos surrealistas busca a libertação do primado da mimesis, como condição 'sine qua non' para a inauguração duma literatura absolutamente nova e surreal . Com efeito, o diálogo intertextual de natureza paródica usado pelos surrealistas contribuiu decisivamente para que esta poética vanguardista se apresentasse, nas oportunas palavras de Cesariny (1985: 93), como uma profunda e demolidora erupção no "espaço artístico-intelectual" português.


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NOTAS:

1 Vítor Manuel de AGUIAR E SILVA, Teoria da Literatura, Vol. I, 7ª ed., Coimbra, Almedina, 1986, p. 258.

2 Laurent JENNY, "La stratégie de la forme", Poétique 27, pp. 262 e 267.

3 Uma das consequências da impressionante fortuna da teoria da intertextualidade reside nas inúmeras (e contraditórias) definições deste conceito, o qual deu origem a um verdadeiro campo nocional — cf. a este propósito o lúcido e bem fundamentado artigo de Marc ANGENOT, "L'intertextualité: enquête sur l'émergence et la difusion d'un champ notionnel", Revue des Sciences Humaines, 189 (1983), pp. 121-135. Mais recentemente, uma das mais felizes sínteses deve-se a Marc EIGELDINGER, Mytologie et Intertextualité, Genève, Éd.Slatkine, 1987, pp. 9-20. Para maior rigor terminológico, devemos afirmar que partilhamos das concepções de intertextualidade e de intertexto propostas e enunciadas por AGUIAR E SILVA (op.cit., p. 625) deste modo: "Definindo--se intertextualidade como a interacção semiótica de um texto com outro(s) texto(s), definir-se-á intertexto como o texto ou corpus de textos com os quais determinado texto mantém aquele tipo de interacção".

4 Cf. S. GOLOPENTIA-ERETESCU, "Grammaire de la parodie", Cahiers de Linguistique Théorique et Appliquée, 6 (1969) p. 167; B. SAINT-PIERRE, "Watt: le sens de la parodie", in GROUPAR, Le Singe à la Porte.Vers une Théorie de la Parodie, New York-Berne-Francfort, Peter Lang, 1980, p. 30.


5 V. AGUIAR E SILVA, op.cit., p. 426.

6 Michael RIFFATERRE, "Intertextualité surréaliste", Mélusine, 1 (1980), Lansanne, pp. 27-28.

7 Apesar de não serem muito frequentes, as referências a Cesário acontecem na escrita poética dos autores surrealistas. No final de um "Inventário", A. O'Neill invoca ironicamente o poeta de "Cristalizações": "Ó Cesário Verde como eu queria/ Que estivesses aqui!" (1990: 57). Já agora, cabe mencionar que Natália Correia (cf.1973: 93-94 e 264-265), na sua antologia das "constantes" do Surrealismo na Poesia Portuguesa, não deixa de incluir dois textos de Cesário.

8 Cf. Pessoa-Caeiro (Pessoa, 1981: 139): "Leio até me arderem os olhos/ O livro de Cesário Verde"; ou Pessoa-Campos (1981: 248): "E que misterioso o fundo da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre". A "Saudação a João Cabral de Melo Neto", leva o autor de Abandono Vigiado a interrogar-se se o grande poeta brasileiro contemporâneo não irá ser chamado de "prosaico", e comentar ironicamente mais adiante: "mas de prosaico não foi chamado/ o nosso Cesário Verde ?/ O lugar-comum se repete/ aqui ou do outro lado..."(O'Neill, 1990: 163).

9 A um século de distância, Cesário e O'Neill são dois grandes poetas da Cidade (Lisboa), poetas do colorido quotidiano de uma cidade provinciana, sendo o autor do "Sentimento du Ocidental", neste particular, reconhido ternurentamente por O'Neill como verdadeiro mestre — cf. a este respeito o breve mas elucidativo artigo comparativo de Óscar Lopes, "Cesário e O'Neill", in Cesário Verde (Comemorações do Centenário da morte do poeta), Lisboa, Fund.Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 103-116.

10 Embora possamos encontrar referências a outros poetas de Orpheu, como Raul Leal (Cesariny, 1989a: 91-109) ou a Almada Negreiros. Natália Correia selecciona alguns textos como exemplos das "constantes" surrealistas da poesia portuguesa, não deixando de apontar Sá-Carneiro e F.Pessoa como percursores da estética surrealista em Portugal, ao coligir também alguns textos "surrealizantes" destes autores (Correira, 1973: 18-21,164-165, 198-19,293 e 15-18, 162-164,197-198,255-257, respectivamente). Opinião que é também partilhada por alguns críticos — veja-se, por ex., Perfecto-E. CUADRADO, "Notas sobre la poesía surrealista portuguesa", in Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XXXI, Lisboa-Paris, Fund. Calouste Gulbenkian, 1992, p. 489.

11 Cf. Fernando J. B. MARTINHO, Pessoa e os Surrealistas, Lisboa, Hiena, 1988, p. 8.

12 Em vários textos teóricos (cf.Cesariny, 1985: 236), os surrealistas acusam satiricamente a própria crítica e investigação universitária de contribuirem, dum modo exagerado, para esta moda Pessoa: "Quanto à universidade destes tempos todos, depois do habitual compasso de espera, lançou-se como loba sobre Fernando Pessoa e daí não arreda — tem tanto que fazer". Um pouco mais adiante (Cesariny, 1985: 257-8), não resiste a comparar Pessoa e Pascoaes, cotejo de que sai valorizado o autor de Marânus.

13 Esta tomada de posição crítica de A.M.Lisboa, sintomática do estado de espírito de outros surrealistas, merece-nos o seguinte comentário: alguns críticos acentuam o facto de Pessoa, ele próprio, ter activamente contribuído para a mitificação de Sá-Carneiro, quase como uma espécie de heterónimo da sua constelação, uma espécie de vítima (Werther) da dramatização heteronímica ou da erupção pessoana (cf.Cesariny, 1966: 169).

14 Carlos Filipe MOISÉS, Poesia e Realidade, S.Paulo, Cultrix, 1977, p. 184. Interessante a este respeito, é também a nota comemorativa que Cesariny (1963) publicou, intitulada "Orpheu tem setenta anos".

15 E nem sempre num tom parodístico. No início da Apenas Uma narrativa, de A.Pedro (1978: 9), encontramos a citação (em epígrafe) de um verso de M.Sá-Carneiro: "Meu dislate a conventos longos orça". Também na poesia de Natália Correia é fácil detectar imagens pertencentes ao universo simbólico de Sá-Carneiro, como a das "insónias rochas"(cf.1993, I: 238); ou quando um grotesco patriota acusa em tribunal a feiticeira Cotovia: "Era o salão do manicómio/ De Mário de Sá-Carneiro". Sem esquecer a irónica alusão ao suicídio do poeta (1993, I: 245 e 288).

16 Maria de Fátima MARINHO, O Surrealismo em Portugal, Lisboa, IN-CM, 1987, pp. 140-148.

17 H.Houwens POST, "Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), precursor do surrealismo português",Ocidente, vol. LXXIV, 358 (1968), p. 65.

18 Críticos há que também se pronunciaram pelo mesmo diapasão de André Coyné (in Seixas, 1986: IX). Este autor, ao referir-se à concepção poética de Almada, defende que este modernista do Orpheu, "sans avoir jamais été strictement surrealiste, eut de plus en plus à voir, jusqu'au bout, avec le Surréel". Cf.Pedro Oom (1980: 84).

19 A colagem é uma composição verbal formada por elementos textuais diversos, oriundos de textos pré-existentes. Podemos mesmo distinguir entre texto "colante", aquele que é sujeito à manipulação literária (hipotexto), e o texto "colado", isto é, aquele que recebe o texto de empréstimo, operando uma transformação maior ou menor (hipertexto). Há autores que ainda distinguem entre "colagem pura", "colagem transformada" ou "autocolagem". Oriunda das artes pictóricas, esta técnica estendeu-se às artes verbais ("collages verbaux"). A respeito desta técnica surrealista, revelam-se dignas de interesse as definições dos próprios surrealistas (cf.Breton, 1988-92, II: 800) e as reflexões de José PIERRE, Le Surréalisme, Paris, Fernand Hazan Éd., 1973, pp.42-44; Henri BÉHAR, Littéruptures, Lausanne, L'Âge d'Homme, 1988, pp. 184-185; e ainda Perfecto-E. CUADRADO, op.cit., pp. 477-479.

20 Numa tomada de posição crítica, Cesariny (1985: 263) não deixa de reflectir sobre o que aproximou os surrealistas da obra poética de Sá-Carneiro: "O que saudámos em Mário de Sá-Carneiro não é, de modo algum, a «dispersão do ser» (...), mas sim a recusa de ser, este, aquele, aquilo, isto, ou aqueloutro («eu não sou eu nem sou o outro», diz o poeta) que leva à descoberta de associações cinéticas tão prodigiosas como as do poema «Rodopio»".

21 Texto em que também ecoa, palimpsesticamente, A.Caeiro.F.Pessoa (1981: 324): "(...) Se ao menos endoidecesse deveras!/ Mas não: é este estar entre,/ Este quase,/ Este poder ser que...,/ Isto". Como acontece com alguma frequência, o mesmo hipotexto pode desencadear mais do que um hipertexto paródico. É precisamente o que volta a acontecer aqui: Cesariny (1982a: 168) volta a aludir à matriz textual de Sá-Carneiro no poema "outra coisa", nomeando imagens importantes da escrita do poeta de Orpheu.

22 Citando assim uma breve passagem do poema 28 d'O Guardador de Rebanhos em que Caeiro (Pessoa,1981: 153) reafirma a sua mundividência antimetafísica e prosaica das coisas (o objectivismo total ou absoluto de que fala o seu discípulo Ricardo Reis): "Por mim, escrevo a prosa dos meus versos/ E fico contente,/ Porque compreendo a Natureza por fora".

23 O hipertexto paródico de O'Neill tem em mira a desmontagem paródico-satírica da descrição do carácter nacional perfilhada por F.Pessoa e sobretudo ironiza a concepção implícita do cosmopolitismo de A.Campos. Descortina-se aqui, aliás, uma alusão de O'Neill ao texto em prosa de Pessoa (1986: 336-342), "o provincianismo português"- concepção de provincianismo que não se confunde, evidentemente, com o revitalizante regresso ao campo, de Cesário Verde (1992: 124) —"Nós vamos para lá; somos provincianos", mas também o longo poema "Nós" (id., 1992: 142) ou com o queiroziano regresso de Jacinto à serra, por cansaço da Civilização. Aliás, é conhecida a caracterização que de Cesário faz A.Caeiro-Pessoa (1981: 139): "Ele era um camponês/Que andava preso em liberdade pela cidade".

24 Várias formas lexicais e verbais ilustram este princípio constitutivo do carnaval bakhtiniano —baixo material e corporal (Mikhail BAKHTINE, L'Œuvre de François Rabelais, Paris, Gallimard, 1970, p.373) —, sem, no entanto, atingir as conotações cósmicas de ambivalência regeneradora, como na obra de Rabelais: umas mais polidas ou perifrásticas (vir-se, sacodir, abrir, introduzir, enterrar, ou poma, vulva, membro, pénis, testículos,...); outras mais "realistas", como: foder, pinar, urinar, mijar, levar no cu, ou caralho, colhões, pentelhos,... O mesmo acontece com a citação (recitação) das três primeiras estrofes do poema pessoano "Não sei, ama, onde era" (Pessoa, 1981: 57), que merece a uma personagem de Cesariny (1991: 95) este comentário: "Também muito bom, também muito engraçado. Mas falta-lhe qualquer coisa! Falta-lhe... um bocado de caralho!" Noutros textos da mesma obra desmi(s)tificadora, Cesariny (1991: 41) acusa Pessoa de "Pinar só co'a cabeça".

A paródia hipertextual de Cesariny opera, deste modo, uma espécie dinamitização daquilo a que poderíamos chamar a "retórica da castidade" pessoana, desmontagem caricatural e pornográfica em que a obra poética de Pessoa se assemelharia a uma espécie de expurgada edição 'ad usum delphini'... Não é por acaso que Pedro Oom (1980: 67), ao caracterizar a mundividência surrealista, fala em "sexualizar a língua". Finalmente, cumpre assinalar que também António Pedro cita o célebre poema da "Autopsicografia", mas apenas para definir o fingimento do Actor (apud Marinho, op.cit., 1987, p.597).

25 Cf. Mª. de Fátima MARINHO, op.cit, 1987, pp. 132-140; João Garpar SIMÕES, "Poemas com Endereço de Alexandre O'Neill", in Jornal de Letras e Artes (27.III.1963), p.3; e Fernando J. B. MARTINHO, op. cit., 1988.

26 Pela sua análise comparativa, mostra-se bastante elucidativo da recepção paródica de Campos em Cesariny o breve artigo de M.ª de Fátima MARINHO, "Cesariny leitor de Álvaro de Campos", Persona, 7 (1982) pp.30-33; por sua vez, Fernando J. B. MARTINHO, op.cit., p.9, defende que a publicação de Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos representa, para M. Cesariny, a constatação dos "perigos do culto fernandino" e da "mitificação" galopante da sua obra.

27 Manuel Jão Gomes (1980: 29) justificará assim a criação heteronímica e a relevância do perfil de Campos: "Na ânsia desvairada de encontrar o Outro, Nogueira Pessoa forjou mais do que um Eu. Todos falharam nessa altruista missão. O último de todos, Álvaro de Campos, representa o regresso ao Narcicismo Absoluto e Perfeitamente Assumido". Seguidamente, aproximando da figura de Alice criada por Lewis Carrol, cita parodicamente vários textos de Pessoa-Campos, fazendo-os acompanhar de variados e irónicos comentários que incidem predominantemente sobre a obsessão pelo Mar e sobre as conotações erótico-sexuais de alguns textos deste engenheiro naval, particularmente da "Ode Triunfal".

28 Sobretudo tendo em conta concepções tradicionais e moralistas do plágio. Alguns teorizadores pós-modernos, em vez da concepção tradicional de plágio (plagiarism ), preferirão falar de playgiarism, acentuando a feição lúdica da nova re -presentação — cf. Margaret A. ROSE, Parody: Ancient, Modern and Post-Modern, Cambridge Univ. Press, 1993, pp. 212-3. Curiosamente, o próprio Cesariny (1985: 176), referindo-se à extrema semelhança de certos versos de Louis Aragon com a obra de Appolinaire — "tudo rapado, com desenvoltura máxima, dos versos de Appolinaire"—, conclui que "não é de plágio que se trata".

29 Michel SCHENEIDER, Voleurs de Mots (Essai sur le Palgiat, la Psychanalyse et la Pensée ), Paris, Gallimard, 1985, p.54.

30 David BILOUS, "Intertexte/pastiche. L'intermimotexte", Texte, 2 (1983), p. 138.

31No caso dos surrealistas, podemos concluir que, geralmente, a citação opera uma transcontextualização paródica. Sobre as implicações do texto de Borges e a questão da citação como forma de reescrita, vejam-se as oportunas reflexões de Graciela REYS, Polifonía Textual (La Citación en el Relato Literario), Madrid, Gredos, 1984, pp. 47-57), mas sobretudo o longo e bem fundamentado trabalho de M. LAFONT, Borges ou la Réécriture, Paris, Seuil, 1990.

32 Apud Graciela REYS, op.cit., p.57.

33 Cf. Linda HUTCHEON, A Theory of Parody, p .6; id., A Poetics of Postmodernism History, Theory, Fiction), New York-London, Routledge, 1991, p. 26. Vários autores, como Michael ISSACHAROFF, têm ultimamente acentuado a ideia de que a citação pode ser escolhida para significar justamente um afastamento crítico: "La pratique inhérente à la parodie consiste à évoquer un texte antérieur, non à titre d'autorité, mais afin de le tourner en dérision" (Lieux Comiques ou le Temple de Janus, Paris, José Corti, 1990, p.18). Mais adiante: "L'effet parodique peut être réalisé grâce à la simple répétition (citation), dans un contexte neuf, de textes célèbres". Neste sentido, a citação tem o poder de transformar a repetição em diferença , isto é, a citação "correspond au processus parodique par excellence" (Id., 1990: 26, 27).

Se, por vezes, o hipertexto paródico recorre a uma tessitura de fragmentos citados do hipotexto parodiado — procedimento aparentado com a técnica do centão —, noutros, mais raramente, como é o caso presente, o parodista não resiste a citar, integral mas desconstextualizadamente, o texto que é objecto de paródia. Neste caso, a paródia não fica a dever-se a transformações hipertextuais, mas a uma re-presentação deslocada de um texto primeiro.

34 L.JENNY, op.cit, p. 279.

35 Michel RIFFATERRE, "Parodie et répétion", in GROUPAR, op.cit., p. 87. A citação, que tradicionalmente, sobretudo ao nível do intertexto classicista, era concebida como símbolo da auctoritas, como homenagem respeitosa ou como ornamentação — no contexto mais amplo da literatura como mimese (cf. Volker KRAPP, in M.-M.MÜNCH, Recherches Sur L'Histoire de la Poétique, Nancy-Berne-Francfort-s.Main-New York, Peter Lang, 1984, pp. 237-254), é agora utilizada para combater essas concepções, desconstruindo não só a funcionalidade que tradicionalmente lhe era cometida, como também as ideias de autores-modelos ou de uma memória colectiva. Se antes a retórica das citações correspondia a um saber organizado, agora é utilizada com finalidades claramente paródicas: quer pela sua profusão inflacionária, quer pela sua recontextualização inadequada.

36 Nella GIANNETO, "Rassegna sulla Parodia in Letteratura", Lettere Italiane XXIX, 4, p.4 69.

37Idem, ibidem.

38 Guido ALMANSI — Guido FINK, Quasi Come (Letteratura e Parodia ), Melano, Tascabili Bompiani, 1991 (1ª ed., 1976), p. 199.

39 Cf. Harold BLOOM, A Ansiedade da Influência, Lisboa, Cotovia, 1991, pp. 71-72.

40 Sobre esta teoria de H.BLOOM, contestável em vários pontos, pronunciaram-se criticamente vários autores: cf. L.Jenny, op.cit., p.258; Aguiar e Silva, V.M., op.cit., p.633; L.HUTCHEON, "Ironie et parodie: stratégie de structure", Poétique, 36 (1978), pp.471,477; id., "Ironie, satire, parodie", Poétique, 46 (1981), 154; id., A Theory of Parody, 1985, p. 96.

41 À paródia dos surrealistas, nomeadamente à sua relação com o hipotexto pessoano, se poderia aplicar a caracterização proposta por Michel LAFONT, op.cit., p. 11, para a reescrita borgeseana. Concebendo a reescrita como um vasto conjunto de práticas de segunda mão — "copie, citation, allusion, plagiat, parodie, pastiche, imitation, transposition, traduction, résumé, commentaire, explication, correction"—, refere que na base das técnicas de reescrita reside uma dupla motivação, não necessariamente contraditória: a reescrita como devoção e devoração (M. LAFON, op. cit., p. 9). Como informação final das ambíguas relações do intertexto surrealista com a obra pessoana, anote-se o curioso "Diálogo de Pessoa com Breton", de José Carlos González (1986: 59-61).

42 Michel SCHENEIDER, op. cit., p. 35.

43 Ferdinand ALQUIÉ, Philosophie du Surréalisme, Paris, Flammarion, 1955, pp. 47-49.

44 Hans Robert JAUSS,Literatura como Provocação, Lisboa, Vega, 1993, p. 32.

(Este artigo constitui uma parte (reformulada) do Cap. II da tese, Teoria do Carnaval Surrealista (A Paródia na Poética e Poesia Surrealistas Portuguesas), dissertação apresentada para Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica, em 1994, sob a orientação do Prof.Doutor Vítor Aguiar e Silva. Para maior economia nas citações e referências da bibliografia activa no corpo do artigo (sobretudo de autores surrealistas), optámos por fazê-las abreviadamente (ano e página), remetendo o leitor para uma bibliografia final.)

J. Cândido Martins (Universidade Católica Portuguesa – Braga)

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