Projecto Vercial

Cesário Verde


Cesário Verde

José Joaquim Cesário Verde nasceu em Lisboa a 25 de Fevereiro de 1855 e faleceu no Lumiar a 19 de Julho de 1886. Matriculou-se no curso de Letras da Universidade de Lisboa, mas desistiu, indo trabalhar para a loja de ferragens que o seu pai tinha na Rua dos Bacalhoeiros. Começou a publicar poesias no Diário de Notícias, no Diário da Tarde, no Ocidente, entre outros. Adoecendo gravemente, fixa-se na quinta da família em Linda-a-Pastora. Morreu tuberculoso ainda muito novo. Foi graças aos esforços do jornalista Silva Pinto que as suas poesias são postumamente publicadas em volume com o título O Livro de Cesário Verde (1887). A sua estética literária anda próxima do Parnasianismo. O seu poema mais famoso é "O sentimento de um ocidental", publicado em Portugal a Camões, publicação extraordinária do Jornal de Viagens do Porto, no dia 10 de Junho de 1880.

Outras páginas sobre o autor:

  • Cores, Forma, Luz, Movimento: A Poesia de Cesário Verde.
  • Impressões da cidade em palavras-pinceladas de uma poesia-pintura de Cesário Verde



    O LIVRO DE CESÁRIO VERDE (extracto)

    O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL

    I

    AVE-MARIAS

    Nas nossas ruas, ao anoitecer,
    Há tal soturnidade, há tal melancolia,
    Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
    Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

    O céu parece baixo e de neblina,
    O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
    E os edifícios, com as chaminés, e a turba
    Toldam-se duma cor monótona e londrina.

    Batem os carros de aluguer, ao fundo,
    Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
    Ocorrem-me em revista, exposições, países:
    Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

    Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
    As edificações somente emadeiradas:
    Como morcegos, ao cair das badaladas,
    Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

    Voltam os calafates, aos magotes,
    De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
    Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
    Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

    E evoco, então, as crónicas navais:
    Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
    Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
    Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

    E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
    De um couraçado inglês vogam os escaleres;
    E em terra num tinido de louças e talheres
    Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

    Num trem de praça arengam dois dentistas;
    Um trôpego arlequim braceja numas andas;
    Os querubins do lar flutuam nas varandas;
    Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

    Vazam-se os arsenais e as oficinas;
    Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
    E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
    Correndo com firmeza, assomam as varinas.

    Vêm sacudindo as ancas opulentas!
    Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
    E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
    Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

    Descalças! Nas descargas de carvão,
    Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
    E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
    E o peixe podre gera os focos de infecção!

    II

    NOITE FECHADA

    Toca-se às grades, nas cadeias. Som
    Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
    O Aljube, em que hoje estão velhinhas e criancas,
    Bem raramente encerra uma mulher de "dom"!

    E eu desconfio, até, de um aneurisma
    Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
    À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
    Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

    A espaços, iluminam-se os andares,
    E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
    Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
    E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

    Duas igrejas, num saudoso largo,
    Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
    Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
    Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

    Na parte que abateu no terremoto,
    Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
    Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
    E os sinos dum tanger monástico e devoto.

    Mas, num recinto público e vulgar,
    Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
    Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
    Um épico doutrora ascende, num pilar!

    E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
    Nesta acumulação de corpos enfezados;
    Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
    Inflama-se um palácio em face de um casebre.

    Partem patrulhas de cavalaria
    Dos arcos dos quartéis que foram já conventos;
    Ilustração de Bernardo Marques Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
    Derramam-se por toda a capital, que esfria.

    Triste cidade! Eu temo que me avives
    Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
    Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
    Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

    E mais: as costureiras, as floristas
    Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
    Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
    E muitas delas são comparsas ou coristas.

    E eu, de luneta de uma lente só,
    Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
    Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
    Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.

    III

    AO GÁS

    E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
    Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
    Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
    Um sopro que arrepia os ombros quase nus.

    Ilustração de Bernardo Marques Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
    Ver círios laterais, ver filas de capelas,
    Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
    Em uma catedral de um comprimento imenso.

    As burguesinhas do Catolicismo
    Resvalam pelo chão minado pelos canos;
    E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
    As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

    Num cutileiro, de avental, ao torno,
    Um forjador maneja um malho, rubramente;
    E de uma padaria exala-se, inda quente,
    Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

    E eu que medito um livro que exacerbe,
    Quisera que o real e a análise mo dessem;
    Casas de confecções e modas resplandecem;
    Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

    Longas descidas! Não poder pintar
    Com versos magistrais, salubres e sinceros,
    A esguia difusão dos vossos reverberos,
    E a vossa palidez romântica e lunar!

    Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
    Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
    Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
    Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

    E aquela velha, de bandós! Por vezes,
    A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
    Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
    Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

    Desdobram-se tecidos estrangeiros;
    Plantas ornamentais secam nos mostradores;
    Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
    E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

    Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
    Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
    Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
    Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

    "Dó da miséria!... Compaixão de mim!..."
    E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
    Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
    Meu velho professor nas aulas de Latim!

    IV

    HORAS MORTAS

    O tecto fundo de oxigénio, de ar,
    Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
    Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
    Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

    Por baixo, que portões! Que arruamentos!
    Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
    Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
    E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

    E eu sigo, como as linhas de uma pauta
    A dupla correnteza augusta das fachadas;
    Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
    As notas pastoris de uma longínqua flauta.

    Se eu não morresse, nunca! E eternamente
    Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
    Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
    Que aninhem em mansões de vidro transparente!

    Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
    Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
    Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
    Numas habitações translúcidas e frágeis.
    Ilustração de Bernardo Marques
    Ah! Como a raça ruiva do porvir,
    E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
    Nós vamos explorar todos os continentes
    E pelas vastidões aquáticas seguir!

    Mas se vivemos, os emparedados,
    Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
    Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
    E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

    E nestes nebulosos corredores
    Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
    Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
    Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

    Eu não receio, todavia, os roubos;
    Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
    E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
    Amareladamente, os cães parecem lobos.

    E os guardas que revistam as escadas,
    Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
    Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
    Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

    E, enorme, nesta massa irregular
    De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
    A Dor humana busca os amplos horizontes,
    E tem marés, de fel, como um sinistro mar!


    (Em Portugal a Camões, publicação extraordinária
    do Jornal de Viagens do Porto, no dia 10 de Junho de 1880)



    DESLUMBRAMENTOS


    Milady, é perigoso contemplá-la,
    Quando passa aromática e normal,
    Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
    Com seus gestos de neve e de metal.

    Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
    Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
    Eu vejo-a, com real solenidade,
    Ir impondo toilettes complicadas!...

    Em si tudo me atrai como um tesoiro:
    O seu ar pensativo e senhoril,
    A sua voz que tem um timbre de oiro
    E o seu nevado e lúcido perfil!

    Ah! Como me estonteia e me fascina...
    E é, na graça distinta do seu porte,
    Como a Moda supérflua e feminina,
    E tão alta e serena como a Morte!...

    Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
    Britânica, e fazendo-me assombrar;
    Grande dama fatal, sempre sozinha,
    E com firmeza e música no andar!

    O seu olhar possui, num jogo ardente,
    Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
    Como um florete, fere agudamente,
    E afaga como o pêlo de um regalo!

    Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
    E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
    O modo diplomático e orgulhoso
    Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

    E enfim prossiga altiva como a Fama,
    Sem sorrisos, dramática, cortante;
    Que eu procuro fundir na minha chama
    Seu ermo coração, como um brilhante.

    Mas cuidado, milady, não se afoite,
    Que hão-de acabar os bárbaros reais;
    E os povos humilhados, pela noite,
    Para a vingança aguçam os punhais.

    E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
    Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
    Eu hei-de ver errar, alucinadas,
    E arrastando farrapos – as rainhas.



    A DÉBIL

    Eu, que sou feio, sólido, leal,
    A ti, que és bela, frágil, assustada,
    Quero estimar-te, sempre, recatada
    Numa existência honesta, de cristal.

    Ilustração de Bernardo Marques Sentado à mesa dum café devasso,
    Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
    Nesta Babel tão velha e corruptora,
    Tive tenções de oferecer-te o braço.

    E, quando socorreste um miserável,
    Eu, que bebia cálices de absinto,
    Mandei ir a garrafa, porque sinto
    Que me tornas prestante, bom, saudável.

    "Ela aí vem!" disse eu para os demais;
    E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
    O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
    Na frescura dos linhos matinais.

    Via-te pela porta envidraçada;
    E invejava, – talvez que o não suspeites! –
    Esse vestido simples, sem enfeites,
    Nessa cintura tenra, imaculada.

    Ia passando, a quatro, o patriarca,
    Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
    Uma turba ruidosa, negra, espessa,
    Voltava das exéquias dum monarca.

    Adorável! Tu, muito natural,
    Seguias a pensar no teu bordado;
    Avultava, num largo arborizado,
    Uma estátua de rei num pedestal.

    Sorriam, nos seus trens, os titulares;
    E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
    A tua boa mãe, que te ama tanto,
    Que não te morrerá sem te casares!

    Soberbo dia! Impunha-me respeito
    A limpidez do teu semblante grego;
    E uma família, um ninho de sossego,
    Desejava beijar sobre o teu peito.

    Com elegância e sem ostentação,
    Atravessavas branca, esvelta e fina,
    Uma chusma de padres de batina,
    E de altos funcionários da nação.

    "Mas se a atropela o povo turbulento!
    Se fosse, por acaso, ali pisada!"
    De repente, paraste embaraçada
    Ao pé dum numeroso ajuntamento.

    E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
    Julguei ver, com a vista de poeta,
    Uma pombinha tímida e quieta
    Num bando ameaçador de corvos pretos.

    E foi, então, que eu, homem varonil,
    Quis dedicar-te a minha pobre vida,
    A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
    Eu, que sou hábil, prático, viril.


    1875



    DE TARDE

    Naquele pique-nique de burguesas,
    Houve uma coisa simplesmente bela,
    E que, sem ter história nem grandezas,
    Em todo o caso dava uma aguarela.

    Ilustração de Bernardo Marques Foi quando tu, descendo do burrico,
    Foste colher, sem imposturas tolas,
    A um granzoal azul de grão-de-bico
    Um ramalhete rubro de papoulas.

    Pouco depois, em cima duns penhascos,
    Nós acampámos, inda o Sol se via;
    E houve talhadas de melão, damascos,
    E pão-de-ló molhado em malvasia.

    Mas, todo púrpuro a sair da renda
    Dos teus dois seios como duas rolas,
    Era o supremo encanto da merenda
    O ramalhete rubro das papoulas!


    1887




    VAIDOSA

    Dizem que tu és pura como um lírio
    E mais fria e insensível que o granito,
    E que eu que passo aí por favorito
    Vivo louco de dor e de martírio.

    Contam que tens um modo altivo e sério,
    Que és muito desdenhosa e presumida,
    E que o maior prazer da tua vida,
    Seria acompanhar-me ao cemitério.

    Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
    A déspota, a fatal, o figurino,
    E afirmam que és um molde alabastrino,
    E não tens coração como as estátuas.

    E narram o cruel martirológio
    Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
    E julgam que é monótono o teu peito
    Como o bater cadente dum relógio.

    Porém eu sei que tu, que como um ópio
    Me matas, me desvairas e adormeces,
    És tão loira e doirada como as messes,
    E possuis muito amor... muito amor próprio.


    (Ilustrações de Bernardo Marques)


    Voltar à página inicial

  • Site apoiado pelo Alfarrábio da Universidade do Minho | © 1996-2015 Projecto Vercial