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Armando Côrtes-Rodrigues, poeta e prosador

Côrtes-Rodrigues, todos sabemos, foi Poeta. Dos melhores que estas Ilhas prometeram. Poeta do primeiro momento do Modernismo, com Fernando Pessoa e Sá-Carneiro à cabeça. Esse Orpheu que (no dizer de Eugénio Lisboa) "abandonou decisivamente o idioma dos avós e inventou, para nós, a poesia moderna que ainda somos".

A revista saiu no dia 25 de Março de 1915, a 300 réis cada número, com 83 páginas de texto e colaboração de Luís de Montalvor, Mário de Sá-Carneiro, o brasileiro Ronaldo de Carvalho, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Alfredo Guisado e o nosso poeta.

Há nos promotores do movimento uma missão a cumprir qual é a de renovar uma literatura que se tinha por estiolada. Havia, pois, que inventar audácias e requintes mais genuinamente europeus. Despertar a atenção por meio do paradoxo. Ser iconoclasta.

Nessas audácias se iniciou Sá-Carneiro com os seus poemas de Dispersão. Era o desafio. Uma espécie de pronunciamento que inevitavelmente levantou em celeuma os "castiços". Em todos os tempos foi assim.

Entre nós, portugueses, estas mudanças de rumo revestem-se de cariz próprio. Por feitio, não somos sanguinários – muito pelo contrário. Até se costuma falar dos nossos morigerados costumes, dados às artes da paz. Uma certa forma de indiferentismo que somos, talvez herança do nosso lado mourisco.

Porém, no mistério da nossa conduta, temos muitas vezes gestos impensados. Mesmo violentos. E trovejamos, gesticulamos, mais pelo incómodo que resulta da mudança das coisas, do que por motivos fundamentados da persistência nelas.

É então que se assiste ao lavar da roupa suja na praça pública, com o seu Cortejo de injúrias, as conspirações de Café, o asssobio e a chacota em que somos mestres. Mas também é verdade que estas guerras do alecrim e da manjerona geralmente acabam tão depressa como começam. E então pasma-se de ver, de um dia para o outro, os inimigos da véspera a confraternizarem, aparentemente sem ressentimentos.

Somos assim, e pronto. E há quem seja pior...

Neste caso do Orpheu, também houve o insulto e o escárnio alargados Do botequim e do café às colunas dos jornais. Mas o burburinho não durou Muito – até porque Orpheu foi uma aventura breve. Tentou-se, realmente, continuá-la com Exílio (1916), Portugal Futurista (1917), a Tríptico de Coimbra (1924-25) que teve como colaborador, entre outros, o grande poeta Afonso Duarte. É da gente destas revistas que vai sair o grupo que, em 1927, fundará a Presença (ainda em Coimbra) continuadora do movimento Modernista e divulgadora dos nomes que tinham iniciado o Orpheu.

Com esta divagação informativa quis relembrar factos e itinerários que esclareçam as razões do meu falar.

Voltando a Côrtes-Rodrigues, queria dizer que desfrutou do movimento de Orpheu, como se sabe. Companheiro que foi dos modernistas, com eles partilhou da palavra nova e das coisas essenciais do seu combate. Contagiado do clima inovador da capital e levado pelo entusiasmo tão gostoso de quem começa e é jovem, o nosso poeta viveu em companhia revolucionária e é, então, à sua maneira, revolucionário.

Porém o seu regresso à Ilha foi decisivo: voltava ao lugar de onde verdadeiramente era e a que sempre, afinal, pertencera – a reencontrar-se coma terra conservadora, tão resistente a novidades e a ousadias. Alguma coisa o chamava que ele veio e ficou para sempre.

O que o chamava era o apelo misterioso que se chama Ilha, com a sua maneira de falar de afecto, e invocar Deus e tradição. A estes sentimentos antigos se manteve sempre ligado o nosso poeta.

Decerto usou das expressões heterodoxas que o momento de Orpheu o convidava a usar, procurando irmanar-se com os camaradas de Letras que o acolhiam na circunstância. E assim fala de "Transcendências nublóticas, metafísicas raras", e de "Litanias litúrgicas de febre e de paixão", e de "Colunas de Além-Sonho, Arcos de comoção (...)" (Orpheu,1º vol.)

...Quanto a mim, sem íntimo sentir.
Mesmo na órbita de Pessoa com quem conviveu durante os cinco anos da sua vida académica, Côrtes-Rodrigues não muda assim tanto a sua alma que a não revele lírica ainda quando escreve para Orpheu:

– "Sonham comigo tuas mãos esguias,
As tuas mãos esguias no regaço,
Minhas saudades são as pedrarias,
Estrelas dos teus dedos no espaço (...)" (Orpheu,1º vol.)

Quer dizer, colaborando com o modernismo que uma facção do seu tempo pretendia fosse uma nova ordem estética e de princípios, Côrtes-Rodrigues foi mais profundamente o homem descomprometido, poetando ao sabor da sua sensibilidade tão dada à contemplação, ao lirismo e à ternura, "vulgares sentimento: humanos" que esta "geração superior" desprezava como sinal de pouca arte. A esta arrogância é alheio o nosso poeta. Sempre comovido, confessa-se mergulhado em saudades e nostalgias, em "O mar da (sua) vida (que) não tem longes (...)" sentir de tempo e de distância que no geral não condizem com a nova estética.

O indivíduo é lugar-onde das coisas acontecidas, passível de enraizar troncos de memória e de hábitos de sentir e de pensar. Assim, não é de um momento para o outro que um cristão despe a velha batina a que se acostumou, e se põe a apagar os sulcos gravados da infância de opas e de procissões, e de ladainhas rezadas ao serão. No caso do nosso poeta, a infância foi morosamente tecida dos sentimentos de um tempo em que a Vila natal "tinha um ar fundo de convento (...) e "o silêncio nas ruas era quase claustral" (como ele recorda). "As únicas manifestações colectivas nessa época, eram as religiosas" (Nota autobiográfica).

Ademais, logo órfão de mãe ao nascer, foi educado com o pai, uma tia única irmã da mãe, e Madre Margarida do Coração de Maria, a última freira professa do Convento de Santo André de Vila Franca do Campo. Tinha seis anos de idade quando foi viver para o sobredito convento, herança de sua mãe. Ainda, segundo a nota autobiográfica, frequentou o Colégio Fisher em Ponta Delgada (com nove anos) escola que era mais convento do que colégio, com uma disciplina austera de uma sobriedade rígida e monacal (...)".

Vemo-lo assim quase revestido de uma espécie de aura eclesiástica...

Deste modo enraíza e se confirma a sua tendência religiosa que explica o essencial do seu pensamento e da sua visão de vida. Não admira, pois, que o seu catolicismo tenha sobrevivido a todos os embates, a todos os ventos de inovação, e embeba como um incenso de ritual todos os seus escritos.

Por conseguinte, não é surpresa ver crescer nele a admiração pela palavra que frei Francisco em tempos semeou e no poeta germinou e amadurou em tantos poemas.

Aliás, outras solicitações acidentais o inspiram, como sabemos, não se limitando o seu virtuosismo poético ao tom monocórdico de um único instrumento e de um s6 sentir.

Por vezes, mete-se a cultivar a redondilha e com tal mestria (como em Cantares da Noite) que nos tentamos a classificá-lo, prioritariamente, como poetado povo e ao povo dedicado; outras vezes os seus monólogos interiores e a capacidade que tem de surpreender o fluir caprichoso de imagens e de ideias moldadas na forma bela, logo nos leva a conferir-lhe o título de parnasiano.

No fundo, nem houve em Côrtes-Rodrigues desentendimento ou conflito entre modernismo e tradição. O que houve é que nunca decididamente se converteu, e muito menos incorreu nos extremos e ousadias a que outros se entregaram, impelidos pelas incitaç8es de uma "Arte excessiva" ansiosa de "épater le bourgeois".

Dessa arte requintadamente excessiva (e necessariamente difícil) conservou Côrtes-Rodrigues alguns sinais, mais na forma que no espírito que a ditava.

Em Horto Fechado, por exemplo, o poeta troca algumas vezes a Redondilha da sua predilecção pelo verso livre, aproximando-se assim das formas da estética nova – mas sem deixar (como nota Eduíno de Jesus) "a serenidade dos clássicos", atitude bem oposta à de Rimbaud que desejava a Arte como "um long, immense et raisonné déréglement de tous les sens".

Em vez da atitude arrogante, elitista, de distanciamento dos poetas de Orpheu em relação ao comum, Côrtes-Rodrigues é todo lhaneza e "anseio de aproximação da alma popular" – como ele próprio confessa.

Escreve Em Louvor da Humanidade, primeiro título e bem expressivo, do seu primeiro livro publicado nove anos depois da sua experiência de Lisboa – alguma coisa que trazia no coração desde sempre como semente, e durante esses longos nove meses/anos de gestação se conformou neste louvor de Povo, nesta primitiva e honesta cor de barro da terra que o define então, claramente, e o situa.

Finalmente mostra que não lhe estava por dentro a vocação de revolucionário que não foi. Estava-lhe, sim, a vocação de poeta (e grande poeta) que foi, e é, afinal, o que importa.

Se se é mesmo poeta verdadeiro, tudo se salva – mas isto é outro assunto.

Porém, apesar do que fica dito (onde, aliás, reconheço muitas hesitações) se tivesse, em última análise, de integrar Côrtes-Rodrigues numa estética literária, incluía-o mais facilmente na Presença do que na Orpheu (juntamente com Régio) gente do "modernismo apaziguado" (ou morigerado, digamos assim). Um modernismo que representa um parcial regresso à estética neo-romântica, e onde o nosso poeta se sentiria mais a seu gosto. Assim o vejo em Horto Fechado (poesia de "inquérito ao subconsciente "na expressão de Eduíno de Jesus), a criar a sua melhor poesia, creio eu. A assumira expressão formal e estética que, entretanto, deixara de ser novidade e se fora divulgando no nosso meio. Regressava assim ao tempo de "discípulo" de Pessoa, mas agora por um impulso de dentro, temperado do seu longo percurso de poeta.

Conheci pessoalmente este poeta. Cheguei a visitar-lhe a casa. Conversei com ele já no fim da vida. Doente. Retirado do convívio, com aquela catarreira toda que o fazia, por vezes, arquejante, roxo da tosse. Uma ânsia no peito à procura de ar. Mas vivo. Ainda vivo. De um ímpeto ainda visível na vos e nos gestos, traços do entusiasmo que fora o seu – vibrátil e amante de viver.

No avanço da idade tornou-se uma espécie de figura balsaquiana no talhe e nos modos. Grosso de estatura, a cabeça maciça entre os ombros, o olhar recolhido, concentrado, quase triste. Umas vezes ensimesmado, sombrio mesmo. Outras num arrepio sagrado de emoção ou de eloquência que lhe punha na voz sacudida, cavernosa da asma, um calor humano que se comunicava e fundia todos os gelos. Era um homem inesperado e desconcertante nas falas. Cheio de contradições.

As contradições são de todos os humanos. Mais visíveis, talvez, nos artistas. Talvez necessárias ao artista, à raiz da sua criação e a uma forma de ser que em si gera um olhar alargado sobre as coisas e as esculpe de originalidade.

Dos homens do Renascimento se dizia que eram homens de contradição – tão depressa tomados de quimeras idealistas que os faziam esquecer de si, como empenhados, orgulhosamente empenhados, na afirmação violenta de si.

Por causa dessa afirmação da personalidade, a biografa tomou então, na literatura, um lugar importante que persiste até aos nossos dias.

Ora, é precisamente biografia (mais precisamente autobiografia) o que Côrtes-Rodrigues nos deixa ao longo de toda a sua obra em verso e em prosa – que a vida de cada um são os lugares, e as coisas, e as pessoas que nos percorreram e nos marcaram de nós (de isto que somos) sem outra oportunidade de termos sido outros.

Desses lugares, dessas pessoas, dessas coisas nos conta exaustivamente Côrtes-Rodrigues – isso, afinal, que o configurou da forma como o Conhecemos e que é, portanto, biografia. Aliás, penso que toda a obra que se deixa é autobiográfica: o autor está lá todo inteiro. Projecta-se nela, mesmo quando parece falar de outra coisa.

Insisto sobre este detalhe porque penso que o nosso poeta é muito especialmente um homem que se confessa, (deleitadamente se confessa) nas páginas de poesia, e não menos nas da prosa que nos deixou – uma voz da terra ansiando pelo mar, quero eu dizer, ilhéu de raiz que, como tal, sonhava com o infinito.

Renan arranjou a fórmula: "O deserto engendra o monoteismo". Parafraseando Renan, eu diria também que o Mar (esse deserto de água) também engendra o monoteísmo – o sentimento religioso de um deus único que está ai para nos salvar. Infinito/Deus que o mar evoca e simboliza na sua imagem de impensada grandeza e majestade. Na sua imensa e constante Presença.

A terra é pequena comparada com o mar – compartimentada por vales e montes; por searas e florestas. Compartimentada por rios e fronteiras.

A terra é sempre Ilha. O Mar não. O mar é um infinito sem fronteiras – um céu convexo, universal, ressoante de Voz que gera um temor religioso.

A nossa gente re0ecte este temor religioso, e os nossos poetas e prosadores fazem-se eco destes sentimentos.

Mais uma vez em Côrtes-Rodrigues, e agora na prosa, a insinuar-se de tudo o que escreve, a presença límpida e serena de Deus. Um falar quase místico das coisas e das gentes na terra onde tudo é lo: to e constante.

Mais uma vez o nosso prosador/poeta, impressionado com o prodígio Do acontecer onde tudo "é lento e constante", como ele diz, sentindo nisso a mão de Deus, "porque Deus nunca tem pressa". (Voz do Longe, vol. I, p. 62)

Falo agora de Voz do Longe, título que Armando Côrtes-Rodrigues deu às crónicas que entre 1961-1966 leu no Emissor Regional dos Açores e que o Instituto Cultural de Ponta Delgada editou.

Na sua evocação do Longe, fala tantas vezes da "paz religiosa dos entardeceres" e do silêncio" muito mais impenetrável e raro do que todos os outros – o silêncio dos místicos – clareiras abertas na profundeza das almas em convívio com Deu", que não há dúvida que estamos perante aquele espírito poético e cristão de sentir a que se chama Franciscanismo, já bem patente na sua poesia.

De franciscano quis ir vestido para a cova. Como franciscano se rende de admiração pelas vidas exemplares que se despojaram do mundo: acima de todos seu Pai Francisco; e também São Banabaião eremita, São João, o Precursor, foram notícia nestas crónicas.

Sobre S. João, deixou, por exemplo, esta passagem, que é assim, na sua forma bela, como um pedaço esculpido de mármore que os achadores de tesouros encontram em Rodes ou em Delfos:

– "Voz do deserto, de coração aceso, não se muda: vem como é. Não procura aldeias nem cidades. Desce com sua nudez coberta com uma pele de camelo, cingida por um cinto de couro, até ao Vale profundo do Jordão". (Voz do Longe, p. 214)

Fala de Deus e das suas Criaturas. Fala de Santos.

Fala ainda, Côrtes-Rodrigoes (e sobretudo) de saudades. Voz do Longe é um Livro de Saudades. Quase não há página onde não relembre o passado. Pessoas que conheceu. Coisas acontecidas. Rostos, vozes, histórias contadas à boquinha da noite. E, como ele diz "Quanto maior a distância, maior a saudade que dela nos vem"...

É Livro de Horas do contemplativo, do viajante solitário à maneira de Rousseau.

É também, por isso, este livro, uma teoria da Felicidade, no sentimento de que o influxo desumanizante da Civilização do séc. XX pode ser compensado recorrendo cada um de nós à regeneração pela Natureza e pelo convívio com o Povo – um pouco o ideal telúrico de A Cidade e as Serras de Eça de Queirós. Cito:

– "Teimo em sentir a poesia destas tradições (refere-se à Quinta-Feira da Ascensão) como dessas tardes luminosas quando o céu entra de empalidecer e o Sol de doirar as coisas de uma luz de ternura; quando o fumo dos casais começa a subir no ar que tudo envolve de recolhimento (...)"

"Essas coisas mal lembram na hora ruidosa de uma cidade que se agita (...). Aqui na cidade todo o horizonte se confina à parede dos prédios fronteiros, ou a uma pincelada de mar azul depois do pared3o da doca. Tudo tão pouco..." (Vol. I, p.193).

Nele há uma espécie de "fanatismo" da simplicidade, a sinceridade profunda da inocência que ele simboliza na "gente boa e santa" (como ele romanticamente chama).

A compilação do seu Romanceiro Popular responde. precisamente, a esta admiração sentimental pelos simples. Foi na intimidade dos lares rústicos que ele compilou a matéria do Romanceiro:

– "A minha tendência para o Povo (conta o próprio poeta) vem por uma afinidade de coração (...) e por uma necessidade de evasão. Nós tínhamos, nessa segunda época da minha mocidade (...) uma vida muito fechada (...) Assim me interessou inicialmente o Povo cujas casas frequentei e onde ouvi lindos romances, vi dançar as nossas danças regionais, escutei cantigas e me enterneci por uma vida que ainda hoje me comove ao recordar a gente boa e santa com quem convivi nesse tempo" (nota autobiográfica).

É brando o sentir de Côrtes-Rodrigues. Brando e impressionável, feliz de falar de danças e cantigas e da valia da gente humilde que conheceu, do seu pão e do seu vinho.

Do tratamento que lhe dão de S'Armindinhos se extrai a amizade e a gratidão em relação ao senhor que os lisonjeava com a sua presença e em simplicidade se sentava à mesa com eles – no fundo, distanciado do drama, numa espécie de beatitude hedonista...

A verdade, porém, B que nesta intimidade, vai Côrtes-Rodrigues amontoando um precioso acervo de notícias e informações que nos chegam a nós, leitores, por entre o recordar de saudades. Informações que interessam a folcloristas, etnólogos, sociólogos, historiógrafos, e é todo um relembrar de nossos avós: – costumes, ditos e crenças. Festas de igreja e folguedos. Balhos e cantares. Tipos populares. Saborosas estórias amassadas no passado e alouradas ao fogo lento do tempo – condimentadas do acrescento do ficcionista que é todo aquele que conta um conto.

Quem se lembraria de Manuel André, barqueiro de outras eras que "envelheceu com o remo na mão" (...) "quando a poder de braços se abria ainda caminho para longe da costa"? Quem saberia que era ele quem "Na Tenda do Melro Negro aparava as barbas, alisava os cabelos e depois de sacudida a opa, largava para a procissão do Senhor São Pedro Gonçalves? E que era ainda ele quem, depois da procissão, bem comido e bem regado, com a companha à volta, vestia "saia de canudos de cana barulhentos" e, coroado de faia, lá ia abrir cantiga na estranhíssima Festa do Irró – folgar de carnaval meio sagrado, meio profano "com sabor milenário de perdidos aparatos báquicos"?

E quem diz do barqueiro Manuel André, diz do Alvarinho da Praia que os acasos da sorte levou "à Itália, até Milão, onde estudou canto com tão excelentes predicados naturais que logo se lhe abriram as portas do célebre Teatro, onde se exibiu triunfalmente" – a ele, um homem do povo. E diz também do Antonino dos Sermões que recitava, de memória, na íntegra, com gestos e tudo, o sermão do Lava-Pés, ouvido um ano antes, ao Senhor padre Mendonça...

E quem contaria do Natal de há tantos anos? E de romeiros e de romarias? E do "Enterro do Senhor (...) com os Irmãos da Santa Casa todos de negro, de balandrau e capuz na cabeça, com a matraca à frente"?

Livro de Memórias em suma, essa Voz do Longe, que é necessário conservar no arquivo documental que nos pertence. Crónica em prosa castiça, com muitos momentos de emoção lírica – um jeito de dizer familiar e íntimo, só por si capaz de nos fazer imergir no seu mundo de imagens, na nostalgia do seu modo, na graça do seu dito. E em todas essas páginas, o poeta não abandona o prosador. Acompanha-o sempre. Entretece-o como um fio de água por entre uma seara de Verão. Está presente nessa longa digressão que tem o comprimento da sua , ida.

Em Voz do Longe é o poeta a acompanhar o prosador: a ditar-lhe as palavras, a guiar-lhe a mão com que deve pintar os entardeceres, a inspirar-lhe "o mar a envolver a Ilha de temor e assombro", e o modo de dizer do estar só e do estar longe.

Por isso é natural que quem se lhe refira, invariavelmente o trate de Poeta – o Poeta Côrtes-Rodrigues – ficando o prosador que foi (e prosador de grande merecimento) quase no anonimato das gentes.

Trata-se de uma prosa marcada de intimidade, constituída de acasos e de monólogos interiores – um eu que monologa com pessoas, com sons, com cheiros familiares que vão desaparecendo da memória de todos nós, abafados pelo ruído das máquinas e pelas inquietações novas que nos devoram em vida. Assim Côrtes-Rodrigues é um intermediário valioso entre o agora e o outrora. Entre ó visível e o invisível de que profundamente somos feitos.

E tudo nesta narração é inefável. Não há demónios interiores a corromperem a inocência, nem "heróis problemáticos" agitados por intenções inconfessáveis. Não. Quando muito se fala do quanto dói a solidão.. E nem sempre se fala de doer – pois que, à velha maneira dos românticos, muitas vezes se compraz em estar só:

– "Ainda é das grandes delícias da vida (escreve ele) quando se tem a solidão pela melhor das companhias, repousar os olhos na verdura, passar entre (...) filas cuidadas de camélias (...) meter-se por entre árvores e extasiar-se na paz que por ali se derrama em calma e alheamento do mundo" (Voz do Longe, p.131)

Nesta narração (como eu dizia) tudo é inefável. Tudo é pacífico e tranquilo, como nas conversas de povo ao serão quando o candeeiro de petróleo se derrama em meia-luz. Lá fora grilos e estrelas, enquanto no forno esmorecem as brasas da última fornada de pão e se ouve os passos de Tia Francisquinha Penica que (e cito) "vinha todos os sábados à esmola (...). Mirradinha, pequenina (...), um feixe de ossos cobertos de pele engelhada, mas com uns olhos muito vivos e uma boca de prata, que para falar desembaraçado, não havia outra como ela".

Através daqueles dois grossos volumes de Voz do Longe se vai deixando todo um sulco longo e variado de lembranças: das eruditas ás populares. Mas é sobretudo quando invoca as populares que a sua voz se perturba. E então as palavras contêm mais do que notícias: embebem-se dos significados de raiz. Das imagens oniricamente desenterradas. Dos rituais secretos que podem levar ao desvendar da verdade escondida. Por isso estas crónicas não pertencem ao universo do jornalismo mas sim ao universo da Literatura – e ficarão para além das modas e dos gostos de ocasião.

Fonte de prazer e de conhecer, este livro de Côrtes-Rodrigues.

Tem seus defeitos: por vezes, talvez, uma excessiva acumulação do evocativo. Um certo excesso emocional, largo como um lago, mas no qual às vezes apenas flutua espuma. Mesmo um deslizar pela retórica e até pela frase feita.

Só acrescento que quem estiver isento destes (e outros) excessos, atire a primeira pedra...

No todo há bom-gosto, há imaginação, ritmo. Um descritivo vivo, colorido, por onde perpassa uma fina volúpia no manejo das palavras, no contorno das imagens. Um instinto para tirar partido das virtuosidades da língua. A sugestão gradual, subtil, das palavras não ditas. Essa busca, enfim, de efeitos musicais e de ritmos – tudo isso através dessas quase oitocentas páginas de texto de Voz do Longe – não falando daquele sentido de humor que é sal da vida e da arte que se preza.

Fernando Aires, revista Insulana, Ponta Delgada, 1991

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