Projecto Vercial

Ramiro Teixeira


Ramiro Teixeira

Ramiro Teixeira Mourão Inácio nasceu em 1938 em Marvila, Santarém. Fixou residência na cidade do Porto, exercendo funções de directoria no Banco Borges & Irmão, actualmente integrado no Banco Português de Investimento. Tem-se notabilizado como crítico literário e ensaísta, colaborando em vários jornais e revistas, de que se destacam o Jornal de Notícias e o J. L.

Obras: Joyce e a Construção do Romance Moderno (1979); Neo-Realismo, Alves Redol e seus Reflexos (1981); A Banca Nacionalizada Perante o Desafio da Banca Privada (1985); António Rebordão Navarro. Entre a Realidade e a Ficção (1985); Além Texto. Ensaios de Crítica e de Jornalismo Literário (1989); As Origens da Literatura (Antiguidade e Idade Média) (1993); Humanismo, Renascimento e Reforma (1997); Ficção Portuguesa Pós-Abril (2000); Santo António e São Francisco – Verbo e Mística. História e Biobibliografia (2004). Colaborou ainda em Uma Pequena Onda. 20 Artistas. 20 Escritores.




NEO-REALISMO, ALVES REDOL E SEUS REFLEXOS (extracto)

Nascido que fui em 1938, só em 1957/58, é que as grandes personalidades da vida portuguesa me começaram a interessar.

Tal interesse, por esta altura, devo-o, sem dúvida, a uma certa forma de precocidade intelectual, a um certo tipo de autodidactismo, recurso último dos que sentindo a necessidade de se afirmarem e definirem como cidadãos, sem outros meios que não essa vontade .pessoal, cumpriam já o seu destino comum, que era o de, tarde ou cedo, angariarem as bases, os conhecimentos, que haveriam de permitir o julgamento dos outros e o da sua própria época.

Hoje, face è geração que desponta, de idade igual à que então o autor destas linhas possuía, esta confissão pode mais parecer ridiculamente enfatuada, a solicitar a catalogação do espírito de quem a profere no plano da imbecilidade, no execrável rol dos bufões que se auto elogiam, do que, propriamente, no inverso.

(...) Para desculpar esta heresia, bom será termos em conta de que o homem, pese embora as excepções, reflecte sempre uma grande parte do meio que o circunda, que o rodeia, embora, naturalmente, em si contenha a força e a ousadia para ultrapassar as forças que o delimitam.

Nesta .perspectiva, bom será igualmente recordarmos que, quando a minha geração nasceu, ainda o analfabetismo era permitido e que o uso do pé descalço era mais comum e usual do que o do pé calçado.

Quando aos onze anos comecei a trabalhar, após concluir o então chamado «Ciclo Preparatório», cumpria um destino que se não era um estigma nem por isso deixava de valer como tal. De resto, começar a trabalhar aos onze anos, dentro de uma certa óptica de valores e até de extractos de uma mesma classe social, era, entre outras coisas, situar-se acima dos que começavam aos dez e, consequentemente, fixar-se num plano bem superior em relação aos que nem sequer possuíam ainda as condições para a frequência das primeiras letras.

A este respeito vale a pena apresentar alguns números: em 1940 a taxa de analfabetismo em Portugal era de 55%, mantendo-se, dez anos depois, ainda em 45%! Só em 1953 é que se tomaram medidas mais eficazes para ultrapassar esta gangrena social, através das chamadas «Campanhas de Educação Para Adultos». Todavia, em 1968, ainda a taxa do analfabetismo se situava em 38%, não obstante a densidade da população escolar, ao nível da instrução primária, atingir o máximo de 350 000 alunos, contra apenas 32 000 em 1926, 74 000 em 1940 e 95 000 em 1950!

Comparando estes números com os actuais e com as condições que se nos deparam, malgrado certo tipo de optimismo, teremos de retirar urna ilação extremamente importante, a qual é ser a situação presente não muito diferente, nos seus efeitos, da situação existente há quarenta anos atrás. Esta conclusão, aparentemente paradoxal, resulta da circunstância de as sucessivas reformas do ensino terem esquecido as reais necessidades da Nação.

Há quarenta anos atrás não existia o progresso económico por falta de técnicos e de cultura capaz de os gerar; hoje há cultura, mas, por desordenada e desviada das reais necessidades do país, em vez de contribuir e constituir um factor de produtividade, antes funciona como um peso morto da Nação. De facto, enquanto as universidades despejam anualmente milhares de letrados e de técnicos de nível superior, os quais não encontram colocação, o país continua desesperadamente a necessitar de artífices qualificados que assegurem a base da pirâmide – isto para não referirmos aquelas profissões artesanais que tendem a desaparecer por não haver ninguém que aproveite a herança dos seus maiores. Nada disto, porém, é novo: Alexandre Herculano já o proclamava, em vão, no seu tempo.

Deixemos, entretanto, estas considerações que nos levariam longe e regressemos ao rumo determinado pelo nosso trabalho.

Aceitemos, portanto, que, ao tempo, numa média geral, a normalidade era esta – feita a quarta classe, o jovem adquiria a potencialidade das coisas rentáveis, que o investimento estatal e familiar na pessoa humana a mais não iam.

Digo, estatal e familiar, porque, pese embora a alguns, o entendimento entre estas duas componentes sociais era convergente. Na média burguesia, por exemplo, em muitos lares havia ainda o conceito de que às meninas bastava saber tocar piano e bordar na perfeição para se considerarem com uma educação primorosa; e mesmo em relação aos filhos varões, se estes enveredavam pelos caminhos da cabulice e da estroina, havia sempre alguém da geração anterior que desculpava o moço, dizendo que essa coisa de tanto estudar até dava volta ao miolo!

Para o dia em que se faça o estudo da sociedade portuguesa deste meio século à luz dos conhecimentos escolares, será relevante reflectir sobre a situação peculiar dos quadros superiores das empresas dadoras de trabalho – a maior parte deles não possuía qualquer grau académico, sendo a sua posição devedora de dois aspectos: ou provinha da interligação das relações que a classe burguesa estabelecia entre si ou era oriunda de uma força humana extraordinária, íntima, que, através de esforços árduos e conhecimentos empíricos, arrojava um qualquer filho do povo para a posição de empresário ou para cargos de maior envergadura.

Neo-Realismo, Alves Redol e seus Reflexos, Porto, 1981, pp. 15-18 (reprodução autorizada pelo autor).



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