Projecto Vercial

Padre António Vieira


Padre António Vieira

O Padre António Vieira (1608-1697) nasceu em Lisboa a 6 de fevereiro de 1608 e faleceu em Salvador da Bahia, Brasil, a 18 de julho de 1697. Foi missionário, pregador, diplomata, político e escritor. Aos sete anos parte com a família para a Bahia, onde o pai exercia a função de secretário da Governação. Estuda num colégio jesuíta e ingressa na Companhia de Jesus, recebendo ordens em 1635 e iniciando nessa altura o seu trabalho como pregador. Em 1641 parte para Lisboa com o governador para apresentar ao rei D. João IV a adesão à causa da Restauração. O rei encarregou-o de várias missões diplomáticas na Holanda e em Roma. Não sendo bem sucedido nestes encargos, regressou novamente ao Brasil e dedicou-se à missionação dos índios. Após a morte de D. João IV, a Inquisição acusa-o de professar opiniões heréticas (1662-1667), mas é absolvido com a subida ao trono de D. Pedro II. Depois de novo e intenso período de trabalho como diplomata em Roma e como pregador, regressa definitivamente à Bahia, onde morre com quase 90 anos de idade. Além dos Sermões (13 tomos publicados entre 1679 e 1699), escreveu Esperanças de Portugal, Clavis Prophetarum e História do Futuro. O seu sermão mais famoso é o "Sermão de Santo António aos Peixes", pregado na cidade de São Luís do Maranhão em 1654.

Bibliografia: José Pedro Paiva, Padre António Vieira, 1608-1697: Bibliografia, Biblioteca Nacional, Lisboa 1999; João Lúcio de Azevedo, História de Antônio Vieira, São Paulo, Alameda, 2008; José Van Den Besselaar, António Vieira: o Homem, a Obra, as Ideias, Lisboa, ICALP, 1981; Thomas Cohen The fire of tongues, Stanford, Stanford University Press, 1998; Margarida Vieira Mendes, A Oratória Barroca de Vieira, 2.ª ed., Lisboa Caminho, 2003; Alcir Pecora, Teatro do Sacramento, 2.ª ed., São Paulo / Campinas: Edusp/Ed. Unicamp, 2008.

Outras páginas sobre o autor:

  • Colóquio sobre o Padre António Vieira - 7 de Junho de 2008

  • A auctoritas do Padre António Vieira na cultura romântica de Oitocentos
  • As Cartas do P.e António Vieira e a retórica comunicativo-funcional
  • Terceiro Centenário da Morte do Padre António Vieira. Actas do Congresso



    SERMÕES (extractos)

    SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

    Pregado em S. Luís do Maranhão, três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino

    Vos estis sal terrae.

    S. Mateus, V, 13.

    I

    Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!

    Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus. «Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil para que seja pisado de todos.» Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.

    Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António, que hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou.

    Pregava Santo António em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria nestщlaso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava e eles ouviam.

    Se a Igreja quer que preguemos de Santo António sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: É muito bom texto para os outros santos doutores; mas para Santo António vem-lhe muito curto. Os outros santos doutores da Igreja foram sal da terra; Santo António foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento que, nas festas dos santos, é melhor pregar como eles, que pregar deles. Quanto mais que o são da minha doutrina, qualquer que ele seja tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em Arimino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele, vós o sabeis e eu por vós o sinto.

    Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina maris: «Senhora do mar»; e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.

    II

    Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa mão falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins.

    Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo António, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar. Assim o diz o grande Doutor da Igreja S. Basílio: Non carpere solum, reprehendereque possumus pisces, sed sunt in illis, et quae prosequenda sunt imitatione: «Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender nos peixes, senão também que imitar e louvar.» Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede de pescar, Sagenae missae in mare, diz que os pescadores «recolheram os peixes bons e lançaram fora os maus»: Elegerunt bonos in vasa, malos autem foras miserunt. E onde há bons e maus, há que louvar e que repreender. Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.

    Começando pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer que entre todas as criaturas viventes e sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus criou. A vós criou primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos animais da terra e a vós primeiro que ao mesmo homem. Ao homem deu Deus a monarquia e o domínio de todos os animais dos três elementos, e nas provisões em que o honrou com estes poderes, os primeiros nomeados foram os peixes: Ut praesit piscibus maris et volatilibus caeli, et bestiis, universaeque terrae. Entre todos os animais do Mundo, os peixes são os mais e os peixes os maiores. Que comparação têm em número as espécies das aves e as dos animais terrestres com as dos peixes? Que comparação na grandeza o elefante com a baleia? Por isso Moisés, cronista da criação, calando os nomes de todos os animais, só a ela nomeou pelo seu: Creavit Deus cete grandia. E os três músicos da fornalha da Babilónia o cantaram também como singular entre todos: Benedicite, cete et omnia quae moventur in aquis, Domino. Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó peixes; mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito.

    Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as que só podem dar o verdadeiro louvor, a primeira que se me oferece aos olhos hoje, é aquela obediência com que, chamados, acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu servo António. Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes e grande afronta e confusão para os homens! Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do Mundo, se pudessem, porque lhes repreendia seus vícios, porque lhes não queria falar à vontade e condescender com seus erros, e no mesmo tempo os peixes em inumerável concurso acudindo à sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando com silêncio e com sinais de admiração e assenso (como se tiveram entendimento) o que não entendiam. Quem olhasse neste passo para o mar e para a terra, e visse na terra os homens tão furiosos e obstinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de dizer? Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras. Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão.

    Muito louvor mereceis, peixes, por este respeito e devoção que tivestes aos pregadores da palavra de Deus, e tanto mais quanto não foi só esta a vez em que assim o fizestes. Ia Jonas, pregador do mesmo Deus, embarcado em um navio, quando se levantou aquela grande tempestade; e como o trataram os homens, como o trataram os peixes? Os homens lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes, e o peixe que o comeu, levou-o às praias de Nínive, para que lá pregasse e salvasse aqueles homens. É possível que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros da salvação?! Vede, peixes, e não vos venha vanglória, quanto melhores sois que os homens. Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra.

    Mas porque nestas duas acções teve maior parte a omnipotência que a natureza (como também em todas as milagrosas que obram os homens) passo às virtudes naturais e próprias vossas. Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais, se não domam nem domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem connosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os autores comummente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes; faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas a dentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quero lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes memória.

    No tempo de Noé sucedeu o dilúvio que cobriu e alagou o Mundo, e de todos os animais quais livraram melhor? Dos leões escaparam dois, leão e leoa, e assim dos outros animais da terra; das águias escaparam duas, fêmea e macho, e assim das outras aves. E dos peixes? Todos escaparam, antes não só escaparam todos, mas ficaram muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois se morreram naquele universal castigo todos os animais da terra e todas as aves, porque mão morreram também os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio: porque os outros animais, como mais domésticos ou mais vizinhos, tinham mais comunicação com os homens, os peixes viviam longe e retirados deles. Facilmente pudera Deus fazer que as águas fossem venenosas e matassem todos os peixes, assim como afogaram todos os outros animais. Bem o experimentais na força daquelas ervas com que, infeccionados os poços e lagos, a mesma água vos mata; mas como o dilúvio era um castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, e ao Mundo pelos pecados dos homens, foi altíssima providência da divina Justiça que nele houvesse esta diversidade ou distinção, para que o mesmo Mundo visse que da companhia dos homens lhe viera todo o mal; e que por isso os animais que viviam mais perto deles, foram também castigados e os que andavam longe ficaram livres.

    Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande filósofo qual era a melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe. Se isto vos pregou também Santo António – e foi este um dos benefícios de que vos exortou a dar graças ao Criador – bem vos pudera alegar consigo, que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens. Para fugir dos homens deixou a casa de seus pais e se recolheu a uma religião, onde professasse perpétua clausura. E porque nem aqui o deixavam os que ele tinha deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal. Para fugir e se esconder dos homens mudou o hábito, mudou o nome, e até a si mesmo se mudou, ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota, com que não fosse conhecido nem buscado, antes deixado de todos, como lhe sucedeu com seus próprios irmãos no capítulo geral de Assis. De ali se retirou a fazer vida solitária em um ermo, do qual nunca saíra, se Deus como por força o não manifestara e por fim acabou a vida em outro deserto, tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.




    SERMÃO DO MANDATO


    Pregado na Capela Real, no ano de 1645

    Sciens Jesus quia venit hora ejus, ut transeat ex hoc mundo ad Patrem, cum dilexisset suos, qui erant in mundo, in finem dilexit eos. – S. João, XIII, I.

    I

    Considerando eu com alguma atenção os termos tão singulares deste amoroso Evangelho e ponderando a harmonia e correspondência de todo seu discurso, tantas vezes e por tão engenhosos modos deduzido; vim a reparar finalmente {não sei se com tanta razão como novidade) que o principal intento do Evangelho foi mostrar a ciência de Cristo, e o principal intento de Cristo mostrar a ignorância dos homens.

    Sabia Cristo (diz S. João) que «era chegada a sua hora de passar deste Mundo ao Padre»: Sciens quia venit hora ejus, ut transeat ex hoc mundo ad Patrem. Sabia que «tinha depositado em sua mão os tesouros da omnipotência e que de Deus viera e para Deus tornava»: Sciens guia omnia dedit ei Pater in manus, et quia a Deo exivit, et ad Deum vadit. Sabia que entre os doze que tinha assentados à sua mesa, estava um que lhe era infiel, e que «o havia de entregar a seus inimigos»: Sciebat enim quisnam esset qui traderet eum. Até aqui mostrou o Evangelista a sabedoria de Cristo. De aqui adiante continua Cristo a mostrar a ignorância dos homens. Quando S. Pedro não queria consentir que o Senhor lhe lavasse os pés, declarou-lhe o Divino Mestre a sua ignorância, dizendo: Quod ego facio, tu nescis: «O que eu faço, Pedro, tu não o sabes.» Depois de acabado aquele tão portentoso exemplo de humildade, tornou a se assentar o Senhor, e voltando-se para os Discípulos, disse-lhes: Scitis quid fecerim vobis?: «Sabeis porventura o que acabei agora de vos fazer?» Aquela interrogação enfática tinha força de afirmação; e perguntar sabeis? foi dizer que não sabiam. De maneira que na primeira parte do Evangelho o Evangelista atendeu a mostrar a sabedoria de Cristo, e Cristo na segunda, a mostrar a ignorância dos homens.

    Mas se o fim e intento de ambos era o mesmo: se o fim e o intento de Cristo e do Evangelista era manifestar gloriosamente ao Mundo as finezas do seu amor, por que razão o Evangelista se emprega todo em ponderar a sabedoria de Cristo, e Cristo em advertir a ignorância dos homens? A razão que a mim me ocorre, e eu tenho por verdadeira e bem fundada, é porque as duas suposições em que mais apuradamente se afinou o amor de Cristo hoje, foram: da parte de Cristo a sua ciência, e da parte dos homens a nossa ignorância. Se da parte de Cristo, amando, pudera haver ignorância, e da parte dos homens, sendo amados, houvera ciência, ainda que o Senhor obrara por nós os mesmos excessos, ficariam eles e o seu amor (não no preço mas na estimação) de muito inferiores quilates. Pois para que o Mundo levante o pensamento de considerações vulgares e comece a sentir tão altamente das finezas dos de Cristo, como elas merecem, advirta-se {diz o Evangelista) que Cristo amou, sabendo: Sciens Jesus: e advirta-se (diz Cristo) que os homens foram amados, ignorando: Tu nescis.

    Está proposto o pensamento mas bem vejo que não está declarado. Em conformidade e confirmação dele pretendo mostrar hoje, que só Cristo amou finamente, porque amou sabendo: Sciens; e só os homens foram finamente amados, porque foram amados ignorando: Nescis; unindo-se. Porém, e trocando-se de tal sorte o sciens com o nescis e o nescis com o sciens; que estando a ignorância da parte dos homens e a ciência da parte de Cristo, Cristo amou, sabendo como se amara, ignorando; e os homens .foram amados, ignorando, como se foram amados, sabendo. Vá agora o amor destorcendo este fios. E espero que todos vejam a fineza deles.

    II

    Primeiramente só Cristo amou, porque amou sabendo: Sciens. Para inteligência desta amorosa verdade, havemos de supor outra não menos certa, e é que, no Mundo e entre os homens, isto que vulgarmente se chama amor, não é amor, é ignorância. Pintaram os Antigos ao amor menino; e a razão, dizia eu o ano passado, que era porque nenhum amor dura tanto que chegue a ser velho. Mas esta interpretação tem contra si o exemplo de Jacob com Raquel, o de Jónatas com David, e outros grandes, ainda que poucos. Pois se há também amor que dure muitos anos, porque no-lo pintam os sábios sempre menino? Desta vez cuido que hei-de acertar a causa. Pinta-se o amor sempre menino, porque ainda que passe dos sete anos, como o de Jacob, nunca chega à idade de uso da razão. Usar de razão e amar, são duas cousas que não se juntam. A alma de um menino que vem a ser? Uma vontade com afectos e um entendimento sem uso. Tal é o amor vulgar. Tudo conquista o amor, quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o entendimento. Ninguém teve a vontade febricitante, que não tivesse o entendimento frenético. O amor deixará de variar, se for firme, mas não deixará de tresvariar se é amor. Nunca o fogo abrasou a vontade, que o fumo não cegasse o entendimento. Nunca houve enfermidade no coração. que não houvesse fraqueza no juízo. Por isso os mesmos pintores do amor lhe vendaram os olhos. E como o primeiro efeito ou a última disposição do amor, é cegar o entendimento, daqui vem que isto que vulgarmente se chama amor. tem mais partes de ignorância; e quantas partes tem de ignorância, tantas lhe faltam de amor. Quem ama porque conhece, é amante; quem ama porque ignora é néscio. Assim como a ignorância na ofensa diminui o delito, assim no amor diminui o merecimento. Quem, ignorando, ofendeu, em rigor não é delinquente; quem, ignorando, amou, em rigor não é amante.

    É tal a dependência que tem o amor destas duas suposições, que o que parece fineza, fundado em ignorância, não é amor; e o que não parece amor, fundado em ciência, é grande fineza. As duas primeiras pessoas deste Evangelho nos darão a prova: Cristo e S. Pedro. Transfigurou-se Cristo no Monte Tabor, e vendo S. Pedro que o Senhor tratava com Moisés e Elias de ir morrer a Jerusalém, para o desviar da morte, deu-lhe de conselho que ficasse ali: Domine, bonum est nos hic esse. Esta resolução de S. Pedro, considerada como a considerou Orígenes, foi o maior acto de amor que se fez, nem pode fazer no Mundo, porque se Cristo não ia morrer a Jerusalém, não se remia o género humano; se não se remia o género humano, S. Pedro não podia ir ao Céu: e que quisesse o grande Apóstolo privar-se da glória do Céu, porque Cristo não morresse na Terra; que antepusesse a vida temporal de seu Senhor à vida eterna sua, foi a maior fineza de amor a que podia aspirar o coração mais alentado. Deixemos a S. Pedro, e assim vamos a Cristo.

    Em todas as cousas que Cristo obrou neste Mundo, manifestou sempre o muito que amava os homens; contudo, uma palavra disse na cruz, em que parece se não mostrou muito amante: Sitio: «Tenho sede.» Padecer Cristo aquela rigorosa sede, amor foi grande; mas dizer que a padecia e significar que lhe dessem remédio, parece que não foi amor. Afecto natural, sim; afecto amoroso, não. Quem diz a vozes o que padece, ou busca o alívio na comunicação ou espera o remédio no socorro; e é certo que não ama muito a sua dor, quem a deseja diminuída ou aliviada. Quem pede remédio ao que padece, não quer padecer; não querer padecer, não é amar: logo, não foi acto de amor em Cristo dizer: Sitio: «Tenho sede.» Contraponhamos agora esta acção de Cristo na cruz e a de S. Pedro no Tabor. A de S. Pedro, parece que tem muito de fineza; a de Cristo, parece que não tem nada de amor. Será isto assim?

    Dois Evangelistas o resolveram com duas palavras O Evangelista S. João com um sciens; e o Evangelista S. Lucas com um nesciens. O que em S. Pedro parecia fineza, não era amor, porque estava fundado em ignorância: Nesciens quid diceret. O que em Cristo não pare cia amor, era fineza, porque estava fundado em ciência: Sciens quia omniu consummata sunt, ut consummaretur scriptura, dixit: Sitio. Apliquemos por cada parte Quando S. Pedro disse: Bonum est nos hic esse, «não sabia o que dizia»: Nesciens guid diceret, porque estava transportado e fora de si. E assim todas aquelas finezas que considerávamos, pareciam amor, e eram ignorâncias; pareciam afectos da vontade e eram erros do entendimento. Se aquela resolução de S. Pedro se fundara no conhecimento das consequências que dissemos, não há dúvida que fora o mais excelente acto de amor a que podia chegar a bizarria de um coração amoroso; mas como a resolução se fundava na ignorância do mesmo que dizia, em vez de sair com título de amante, saiu com nome néscio, porque amar ignorando, não é amar, é não saber.

    Não assim Cristo. Porque quando disse Sitio, sabia mui bem que, acabados já todos os outros tormentos, faltava só por cumprir a profecia do fel: Sciens quia omnia consummata sunt, ut consummaretur scriptura, dixit: Sitio. E assim aquelas tibiezas que considerávamos, parecia que não eram amor, e eram as maiores finezas; parecia que eram um desejo natural, e eram o mais amoroso e requintado afecto. Se Cristo dissera: – Tenho sede, – cuidando que lhe haviam de dar água, era pedir alívio; mas dizer: – Tenho sede, – sabendo que lhe haviam de dar fel, era pedir novo tormento. E não pode chegar a mais um amor ambicioso de padecer, que pedir os tormentos por alívios, e para remediar uma pena, dizer que lhe acudam com outra. Dizer Cristo que tinha sede, não foi solicitar remédio à necessidade própria; foi fazer lembrança à crueldade alheia. Como se dissera: Lembrai-vos, homens. do fel, que vos esquece: Sitio. Tão diferente era a sede de Cristo do que parecia: parecia desejo de alívios, e era hidropisia de tormentos. De sorte que a ciência com que obrava Cristo e a ignorância com que obrava Pedro, trocaram estes dois afectos de maneira que o que em Pedro parecia fineza, por ser fundado em ignorância, não era amor: e o que em Cristo não parecia amor, por ser fundado em ciência, era fineza. E como a ciência ou a ignorância é a que dá ou tira o ser, e a que diminui ou acrescenta a perfeição do amor, por isso o Evangelista S. João se funda todo em mostrar o que Cristo sabia, para provar o que amava: Sciens quiu venit hora ejus, in finem dilexit eos.



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